Há uns anos, quando era obrigado a freqüentar a rodoviária de Campinas todas as noites de sexta, algo no qual eu nunca havia reparado me apareceu com força: o caráter expiatório das partidas e das chegadas.
Eu ficava esperando e observando, por algum tempo, no lugar onde os carros encostavam para que as pessoas fossem pêgas ou deixadas. Abismava: quantos sorrisos, quanta felicidade corporeamente demonstrada. Todos os problemas pareciam encontrar seu fim ali, naqueles últimos ou primeiros abraços, naqueles ois ou tchaus, nos acenos.
Não há como negar que este seja um padrão: sempre que há uma quebra, uma passagem, uma possibilidade de mudança, um bom montante ou quase tudo o que foi vivido é observado através de um ponderamento torto. Num dito popular aproximado: basta morrer pra virar santo.
E no réveillon todo o nosso ano tende a ser tornar santo. Todos os acontecimentos, por mais absurdos que tenham sido, ganham firulas ternas de interpretação. É o momento do perdão dos outros e de nós mesmos. É o momento da reconfiguração dos fatos para algo aceitável; é a hora para nos esbaldarmos no uso daquilo a que costumamos dar o nome de racionalização.
Deliramos a fim de tornar a vida mais admissível. Criamos estórias para que a espera do que vem seja mais suportável. E se o que vier for cáustico, destruidor? - nada que dure mais do que 365 dias, a medida a qual nos acostumamos como período máximo para o suporte da realidade, para seu encaramento verdadeiro, para a vivência dos nossos diferentes tipos de luto.
O réveillon é a rodoviária do ano.
________________________________________________________________________
A palavra latina para porta é ianua*. Isto se deu pelo seguinte: a principal característica física de um dos mais importantes deuses romanos é a de ter duas faces, uma em cada "lado" do crânio. O nome do deus: Ianus.
Mas porta não foi a única coisa que recebeu termo inspirado neste deus. Havia uma outra palavra latina bastante usada e que tem nele a sua origem: Ianuarius. Ianuarius é como se designava o primeiro mês do ano. Não é preciso fazer muitos malabarismos pra perceber que Ianuarius é o nosso Janeiro. E o que é Janeiro, então?
É o mês que tem duas caras: uma para quem fica, e outra para quem chega. Uma face para o ano que finda e outra para o que se inicia.
Janeiro é a porta da rodoviária.
*Há uma versão que inverte a ordem: Ianus teria este nome, então, por conta de ianua. Eu obviamente acredito mais e prefiro a que eu narrei.
30.12.08
28.12.08
A banda do ano
E no meio da monótona mesmice das diferenças, eis que surgem as raposas ligeiras a botar ordem no cool e no galinheiro.
Eleição fácil pois não havia concorrentes.
Ai, ai...
Meu inferno astral segue firme, o que faz com que não acredite mais nisso. O que há mesmo é minha existência física e psíquica torta, com um paraíso astral no meio.
Como sou nietzschiano, quero que se dane: Amor fati! Amor fati! - grito por aí, tendo o cuidado de guardar para os momentos de fraqueza um pouco de paroxetina, tramadol e diazepam, batidos com leite, banana e mamão.
Como sou nietzschiano, quero que se dane: Amor fati! Amor fati! - grito por aí, tendo o cuidado de guardar para os momentos de fraqueza um pouco de paroxetina, tramadol e diazepam, batidos com leite, banana e mamão.
27.12.08
O show do ano
Dia 22 de junho. Um domingo com noite das bem paulistanas: frio, muito frio, e uma bela de uma garoa. No Teatro Municipal, lugar que eu tinha muita vontade conhecer, Bob McFerrin.
Comecei tropeçando no tapete da escada que dá acesso às galerias, quase caindo de boca. Ótimo que as bobagens tenham acabado por aí. Devidamente instalado, olhava deslumbrado os ornamentos do lugar. A iluminação. As pessoas.
No palco, só uma cadeira. Sequer um tecido como cenário.
McFerrin chegou usando uma velha camiseta preta, uma calça jeans surrada, um sapato nada novo. Nas mãos, um microfone e uma garrafa d'água. E foi apenas disso que ele precisou.
Genial. Não há muito o que dizer.
O que interessava ali era só a música. A música em sua forma mais pura, mais humana. Os únicos instrumentos eram a voz e o corpo. O público participava o tempo todo. A música é algo possível a todos. A expiação é possível. Cantava-se de vários lugares: público no palco, inclusive. Aliás, público também dançando no palco. Aliás, público intrumento musical tocado pelo maestro (vídeo).
Bob McFerrin tem a simpatia e o carisma dos gênios que se sabem instrumento. Dos que eu tive a sorte de ver ao vivo, só João e Santana - cada um a sua maneira - me deram impressão parecida.
Ao final todos extasiados e felizes por terem visto. Por terem feito. Pela absoluta falta de soberba de um homem que poderia carregá-la sem problemas porque faz o que quer com a voz. Pela música estonteante. Por saber aquilo inesquecível.
Obrigado à pessoa maravilhosa que estava comigo, mostrou-me isso, e me deu o show do ano de presente.
Comecei tropeçando no tapete da escada que dá acesso às galerias, quase caindo de boca. Ótimo que as bobagens tenham acabado por aí. Devidamente instalado, olhava deslumbrado os ornamentos do lugar. A iluminação. As pessoas.
No palco, só uma cadeira. Sequer um tecido como cenário.
McFerrin chegou usando uma velha camiseta preta, uma calça jeans surrada, um sapato nada novo. Nas mãos, um microfone e uma garrafa d'água. E foi apenas disso que ele precisou.
Genial. Não há muito o que dizer.
O que interessava ali era só a música. A música em sua forma mais pura, mais humana. Os únicos instrumentos eram a voz e o corpo. O público participava o tempo todo. A música é algo possível a todos. A expiação é possível. Cantava-se de vários lugares: público no palco, inclusive. Aliás, público também dançando no palco. Aliás, público intrumento musical tocado pelo maestro (vídeo).
Bob McFerrin tem a simpatia e o carisma dos gênios que se sabem instrumento. Dos que eu tive a sorte de ver ao vivo, só João e Santana - cada um a sua maneira - me deram impressão parecida.
Ao final todos extasiados e felizes por terem visto. Por terem feito. Pela absoluta falta de soberba de um homem que poderia carregá-la sem problemas porque faz o que quer com a voz. Pela música estonteante. Por saber aquilo inesquecível.
Obrigado à pessoa maravilhosa que estava comigo, mostrou-me isso, e me deu o show do ano de presente.
23.12.08
A vida dos outros
Se houvesse uma versão da "Caras" que falasse a respeito das pessoas que admiro, com certeza eu compraria. Com quantos anos fizeram tal e tal coisa, como eram os hábitos, o lugar onde moravam, o local onde produziam: todas estas coisas sempre me interessaram, sabe-se lá o motivo. Aliás, sabe-se lá não: acredito que venha ser uma espécie de voyerismo pragmático, uma tentativa de identificação por cópia - e de cópia por identificação. Quem sabe se eu fizer igual a...
Há dois sites que estão me facilitando a vida no que diz respeito a estas questões. O primeiro deles, o Daily Routines, como se vê em seu subtítulo, conta como escritores, artistas e outras pessoas interessantes organizam ou organizavam seus dias. O outro, uma página do portal cultural do The Guardian, mostra como são ou eram os escritórios de quem produz filosofia, literatura, ciência e adjacências.
Com os dois devidamente salvos na lista de favoritos, é possível fazer o seguinte:
Charles Darwin
7h. Acordava e saía para uma caminhada.
7h45. Café da manhã, sozinho.
8h–9h30. Trabalhava em seu escritório; considerava esse seu período mais produtivo.
9h30–10h30. Ia para a sala e lia suas cartas, então lia alto as cartas da família.
10h30–12 ou 12h15. Retornava ao escritório, e considerava este o fim do seu horário de trabalho.
12h. Caminhava, primeiro uma visita à estufa, depois pelo jardim de areia, por tanto tempo quanto possível dependendo de sua saúde, acompanhado de um cachorro.
12h45. Almoçava com toda a família, era sua refeição principal. Após, lia o Time e respondia cartas.
15h. Cochilava no quarto ou no sofá e fumava um cigarro, ouvia a narrativa de um livro leve lido por sua mulher, Emma.
16h. Caminhava, em geral pelo jardim de areia, às vezes para mais longe, com freqüência acompanhado de alguém.
16h30–17h30. Trabalhava no escritório resolvendo os últimos problemas do dia.
18h. Descansava no quarto enquanto Emma lia em voz alta.
19h30. Tomava um chá enquanto a família jantava. Em seus últimos anos, nunca permanecia na sala de jantar com os homens, mas tomava o rumo da saleta com as mulheres. Se não havia convidados, jogava duas partidas de gamão com Emma, depois lia um pouco, então Emma tocava piano e lia mais alguma coisa em voz alta.
22h. Deixava a saleta e se deitava às 22h30. Dormia mal.
Um ótimo programa para quando curiosos como eu não têm muito o que fazer - como eu.
Há dois sites que estão me facilitando a vida no que diz respeito a estas questões. O primeiro deles, o Daily Routines, como se vê em seu subtítulo, conta como escritores, artistas e outras pessoas interessantes organizam ou organizavam seus dias. O outro, uma página do portal cultural do The Guardian, mostra como são ou eram os escritórios de quem produz filosofia, literatura, ciência e adjacências.
Com os dois devidamente salvos na lista de favoritos, é possível fazer o seguinte:
Charles Darwin
7h. Acordava e saía para uma caminhada.
7h45. Café da manhã, sozinho.
8h–9h30. Trabalhava em seu escritório; considerava esse seu período mais produtivo.
9h30–10h30. Ia para a sala e lia suas cartas, então lia alto as cartas da família.
10h30–12 ou 12h15. Retornava ao escritório, e considerava este o fim do seu horário de trabalho.
12h. Caminhava, primeiro uma visita à estufa, depois pelo jardim de areia, por tanto tempo quanto possível dependendo de sua saúde, acompanhado de um cachorro.
12h45. Almoçava com toda a família, era sua refeição principal. Após, lia o Time e respondia cartas.
15h. Cochilava no quarto ou no sofá e fumava um cigarro, ouvia a narrativa de um livro leve lido por sua mulher, Emma.
16h. Caminhava, em geral pelo jardim de areia, às vezes para mais longe, com freqüência acompanhado de alguém.
16h30–17h30. Trabalhava no escritório resolvendo os últimos problemas do dia.
18h. Descansava no quarto enquanto Emma lia em voz alta.
19h30. Tomava um chá enquanto a família jantava. Em seus últimos anos, nunca permanecia na sala de jantar com os homens, mas tomava o rumo da saleta com as mulheres. Se não havia convidados, jogava duas partidas de gamão com Emma, depois lia um pouco, então Emma tocava piano e lia mais alguma coisa em voz alta.
22h. Deixava a saleta e se deitava às 22h30. Dormia mal.
Um ótimo programa para quando curiosos como eu não têm muito o que fazer - como eu.
22.12.08
19.12.08
Idiossincrasias simbólicas
Em minha relação estranha com algumas palavras - relação esta que todos acabamos por ter -, gosto particularmente de dois momentos.
O primeiro é a ligação indestrutiva que se realiza entre os termos rúcula e ridícula. Sempre que ouço ou falo sobre um deles me vem o outro em mente. Não sei como mudar isso. O resultado é o seguinte: os pés de rúcula me parecem sempre esdrúxulos, dando a sensação de que acabaram de fazer algo imbecil, e, em contrapartida, toda vez que penso ou vejo uma pessoa que classifico como ridícula a enxergo encoberta por uma espécie de invólucro em tom esverdeado, assim como me parece de pronto que ela possui um sabor um tanto amargo, mas que eu gosto.
Salada de pessoas ridículas, rúculas circulando por aí.
A segunda coisa está ligada àquela canção do Gilberto Gil que era tema do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Naquele momento em que ele diz "o sol nascente é tão belo" eu entendia - e ainda entendo - "o sol nascente à tobello". Eu acho essa palavra linda: tobello! Uma das mais bonitas que eu conheço. E o que é tobello? Como eu delirei para resolver isso? Ué: tobello é um tipo, um gênero. Bife à milanesa, pizza à portuguesa, sol nascente à tobello. Óbvio.
Mais tarde, para reforçar a minha relação estranha, aprendi que o poente, em italiano, é chamado de "tramonto" - l'ora del tramonto. Perfeito: o nascente é tobello, o poente é tramonto. L'ora del tobello.
Considerando tudo posso concluir que: duas rúculas comendo uma pizza de rídiculas é algo possível e que pode ser ainda mais prazeroso se feito, com bastante riso, no nascente à tobello.
A linguagem é um instabilíssimo parque de diversões.
O primeiro é a ligação indestrutiva que se realiza entre os termos rúcula e ridícula. Sempre que ouço ou falo sobre um deles me vem o outro em mente. Não sei como mudar isso. O resultado é o seguinte: os pés de rúcula me parecem sempre esdrúxulos, dando a sensação de que acabaram de fazer algo imbecil, e, em contrapartida, toda vez que penso ou vejo uma pessoa que classifico como ridícula a enxergo encoberta por uma espécie de invólucro em tom esverdeado, assim como me parece de pronto que ela possui um sabor um tanto amargo, mas que eu gosto.
Salada de pessoas ridículas, rúculas circulando por aí.
A segunda coisa está ligada àquela canção do Gilberto Gil que era tema do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Naquele momento em que ele diz "o sol nascente é tão belo" eu entendia - e ainda entendo - "o sol nascente à tobello". Eu acho essa palavra linda: tobello! Uma das mais bonitas que eu conheço. E o que é tobello? Como eu delirei para resolver isso? Ué: tobello é um tipo, um gênero. Bife à milanesa, pizza à portuguesa, sol nascente à tobello. Óbvio.
Mais tarde, para reforçar a minha relação estranha, aprendi que o poente, em italiano, é chamado de "tramonto" - l'ora del tramonto. Perfeito: o nascente é tobello, o poente é tramonto. L'ora del tobello.
Considerando tudo posso concluir que: duas rúculas comendo uma pizza de rídiculas é algo possível e que pode ser ainda mais prazeroso se feito, com bastante riso, no nascente à tobello.
A linguagem é um instabilíssimo parque de diversões.
16.12.08
Lembrando
Da série Reedições:
Ana e o mar
Y tu, que has hecho de mi pobre flor?
Não..., nada..., definitivamente
Nada possuis de mar.
E azuis e conchas e tessituras
De turvadora claridade jamais
A ti remeterão.
És, em verdade, de
Madeira.
Vê-se no cravo e na
Baunilha do quando
Caminhas.
No olhar dura
E decididamente
Castanho.
Em pernas e braços
Prontos para enlaces
De raiz.
Na pele
Enseivada.
(Não, não venham-me
Com morosas infinitudes,
Ventos, maresias, areias e pedras!
Tragam-me a da ramagem e fuste!
Tragam-me a que aguardo, áulico,
Com guardadas carícias de pássaro
E palavras de chuva:
Tragam-me a que um dia acompanharei florejar).
Não..., nada..., definitivamente
Nada possuis de mar.
A derradeira prova nesta
Enorme sombra que crias.
Ramagens e relva onde agora,
Arrebatado por bandarilhas
De farpas, obrigado me deito.
Ana e o mar
Y tu, que has hecho de mi pobre flor?
Não..., nada..., definitivamente
Nada possuis de mar.
E azuis e conchas e tessituras
De turvadora claridade jamais
A ti remeterão.
És, em verdade, de
Madeira.
Vê-se no cravo e na
Baunilha do quando
Caminhas.
No olhar dura
E decididamente
Castanho.
Em pernas e braços
Prontos para enlaces
De raiz.
Na pele
Enseivada.
(Não, não venham-me
Com morosas infinitudes,
Ventos, maresias, areias e pedras!
Tragam-me a da ramagem e fuste!
Tragam-me a que aguardo, áulico,
Com guardadas carícias de pássaro
E palavras de chuva:
Tragam-me a que um dia acompanharei florejar).
Não..., nada..., definitivamente
Nada possuis de mar.
A derradeira prova nesta
Enorme sombra que crias.
Ramagens e relva onde agora,
Arrebatado por bandarilhas
De farpas, obrigado me deito.
15.12.08
Grande Dave
Dave Brubeck não faz música: faz hipnose. Seu piano causa redemoinhos mentais, confusões voluptuosas, baixa qualquer guarda e nos deixa expostos.
A sua forma de trabalho é metódica: os temas fluem circularmente à nossa volta até que o processo é invertido e nos coloca em transe - a cabeça é o que gira, o lugar de onde vem as batidas e notas precisas é descentrado. Não se sabe mais onde se está e de onde o mundo vem.
A sensação é de torpor. O sax aparece para dar a textura, o cheiro. As ondas então nos carregam por aí, seres incapazes de oferecer reação que nos tornamos. O baixo e a bateria fazem o contraponto: sim, é possível que percebamos técnica absoluta ainda que em confusa vigília, e há por demais prazer no acesso a este gênero de matemática irregular que se acopla ao pseudodelírio.
Dave Brubeck não faz música: faz naves espaciais.
A sua forma de trabalho é metódica: os temas fluem circularmente à nossa volta até que o processo é invertido e nos coloca em transe - a cabeça é o que gira, o lugar de onde vem as batidas e notas precisas é descentrado. Não se sabe mais onde se está e de onde o mundo vem.
A sensação é de torpor. O sax aparece para dar a textura, o cheiro. As ondas então nos carregam por aí, seres incapazes de oferecer reação que nos tornamos. O baixo e a bateria fazem o contraponto: sim, é possível que percebamos técnica absoluta ainda que em confusa vigília, e há por demais prazer no acesso a este gênero de matemática irregular que se acopla ao pseudodelírio.
Dave Brubeck não faz música: faz naves espaciais.
13.12.08
Desajeito
Todo início leva consigo o destrambelhamento. Os primeiros passos, as primeiras transas, os primeiros picolés, as primeiras palavras: em todos os começos o ritmo descompassado, o tropeço, a falseadura e a falta de jeito irão, inadvertidamente, dar as caras. Faz pouco e erra, faz demais e ultrapassa. Lacunas e excessos sem que haja a mínima idéia do que seja o meio.
É interessante e, porque não, divertido, notar como esse atrapalhamento é capaz de surgir nos lugares mais abstrusos. No homem tímido que começa a falar e mais preocupado com o "estar a" do que com qualquer outra coisa desacerta em tudo: interlocutor, volume e conteúdo. Na menina que começa a se pintar e pavoneia o que nela poderia haver de encantamento. Na mulher que acredita ser chegada a hora do relumbramento e exagera.
Há uma destas transmutações que me acossa: a da passagem, a partir de qualquer pólo original, do apolíneo ao dionisíaco, da moderação ao excesso. Tudo que há ao redor e por dentro parece muitas das vezes pendular por estas pontas. Eu quero, eu posso seguir sem riscos para o outro lado: o dos exagerados, o dos festivos, e abandonar meu posto de basbaque. No inverso: então eu posso sim me mudar em ser observador, em ser do canto, em admirador longínquo.
Mas quais cacos surgem na passagem, quais gafes são inerentes à tentativa de mudança ou ao simples reconhecimento do outro lado?
De sophrosyne a hybris ando me atrapalhando. De um a outro cometo ridiculices e me estranho - e incomodo com minha falta jeito.
Até quando?
Até o equilíbrio, não é? - penso a borbotões na tentativa de substituir meu jeito monótono por lufadas. - Hummm..., com esta resposta fica claro que voltou ao começo de onde, é provável, sequer saiu, não é? - diz com seu riso preso o lado direito de meu cérebro descaído.
Ao lado esquerdo diminuto não é permitido sequer o esboço de uma risada.
É interessante e, porque não, divertido, notar como esse atrapalhamento é capaz de surgir nos lugares mais abstrusos. No homem tímido que começa a falar e mais preocupado com o "estar a" do que com qualquer outra coisa desacerta em tudo: interlocutor, volume e conteúdo. Na menina que começa a se pintar e pavoneia o que nela poderia haver de encantamento. Na mulher que acredita ser chegada a hora do relumbramento e exagera.
Há uma destas transmutações que me acossa: a da passagem, a partir de qualquer pólo original, do apolíneo ao dionisíaco, da moderação ao excesso. Tudo que há ao redor e por dentro parece muitas das vezes pendular por estas pontas. Eu quero, eu posso seguir sem riscos para o outro lado: o dos exagerados, o dos festivos, e abandonar meu posto de basbaque. No inverso: então eu posso sim me mudar em ser observador, em ser do canto, em admirador longínquo.
Mas quais cacos surgem na passagem, quais gafes são inerentes à tentativa de mudança ou ao simples reconhecimento do outro lado?
De sophrosyne a hybris ando me atrapalhando. De um a outro cometo ridiculices e me estranho - e incomodo com minha falta jeito.
Até quando?
Até o equilíbrio, não é? - penso a borbotões na tentativa de substituir meu jeito monótono por lufadas. - Hummm..., com esta resposta fica claro que voltou ao começo de onde, é provável, sequer saiu, não é? - diz com seu riso preso o lado direito de meu cérebro descaído.
Ao lado esquerdo diminuto não é permitido sequer o esboço de uma risada.
12.12.08
11.12.08
Fito Páez - Llueve sobre mojado
Como agora eu sou uma pessoa má, usarei meu blog para causar transtornos. O que vai aqui não é, portanto, uma canção: é sarcasmo puro!!!
News
Antes de prosseguir com a vida e com textos menos parecidos com páginas de diário, quero levar ao conhecimento das 12 pessoas que lêem este blog três coisas.
A primeira delas é que: sim, ao que parece, o negócio pro meu lado melhorou. Como esperado, a organização dos astros agora permite com que ocorrências menos dramáticas permeiem a minha existência. O que vem a seguir mostra isso.
A segunda delas: ganhei um presente dos mais belos e carinhosos da minha futura esposa. Depois de ter me enganado o dia todo, depois de ter me feito pensar coisas terríveis e sentido raiva, resignação, ódio, tristeza e melancolia, naquele parque de diversões emocional que a indiferença é capaz de fazer ingressar os neuróticos, ela me apareceu com este texto. Eu li e fiquei sem saber o que fazer por alguns minutos. Passado o deslumbramento inicial eu já sabia o que fazer, mas não em qual seqüência: se beliscões primeiro e depois cócegas, ou se o inverso. De qualquer maneira nosso relacionamento tem que evoluir muito, mas muito mesmo, até chegar a este ponto. Explico: é que nós nunca sequer nos vimos. Oxalá isto um dia aconteça - mas tá difícil. Como eu sempre fui um sujeito pós-moderno, ou seja, minhas referências inexistem ou são as mais confusas possíveis, chego a pensar que - quem sabe -, talvez nem precisássemos mesmo nos encontrar. O que vale é o afeto e a banda larga em dia, não é? Hummm... acho que não gostei disso: sou bem à moda antiga. E confuso mesmo, como está demonstrado.
Terceira: bem, sobre a terceira não ficarei divagando - ela fala, e mais do que satisfatoriamente, por si. Outro presente inesquecível e por mim impensável. Quase morri afogado vendo. Obrigado Fê: é lindo, é lindo demais isso. Morram de inveja. Tem o nome de Presente de aniversário para um amigo.
A primeira delas é que: sim, ao que parece, o negócio pro meu lado melhorou. Como esperado, a organização dos astros agora permite com que ocorrências menos dramáticas permeiem a minha existência. O que vem a seguir mostra isso.
A segunda delas: ganhei um presente dos mais belos e carinhosos da minha futura esposa. Depois de ter me enganado o dia todo, depois de ter me feito pensar coisas terríveis e sentido raiva, resignação, ódio, tristeza e melancolia, naquele parque de diversões emocional que a indiferença é capaz de fazer ingressar os neuróticos, ela me apareceu com este texto. Eu li e fiquei sem saber o que fazer por alguns minutos. Passado o deslumbramento inicial eu já sabia o que fazer, mas não em qual seqüência: se beliscões primeiro e depois cócegas, ou se o inverso. De qualquer maneira nosso relacionamento tem que evoluir muito, mas muito mesmo, até chegar a este ponto. Explico: é que nós nunca sequer nos vimos. Oxalá isto um dia aconteça - mas tá difícil. Como eu sempre fui um sujeito pós-moderno, ou seja, minhas referências inexistem ou são as mais confusas possíveis, chego a pensar que - quem sabe -, talvez nem precisássemos mesmo nos encontrar. O que vale é o afeto e a banda larga em dia, não é? Hummm... acho que não gostei disso: sou bem à moda antiga. E confuso mesmo, como está demonstrado.
Terceira: bem, sobre a terceira não ficarei divagando - ela fala, e mais do que satisfatoriamente, por si. Outro presente inesquecível e por mim impensável. Quase morri afogado vendo. Obrigado Fê: é lindo, é lindo demais isso. Morram de inveja. Tem o nome de Presente de aniversário para um amigo.
10.12.08
Ela vem chegando...
Ela está chegando.
Daqui a pouco nos veremos de novo.
Ela é linda.
Ela é irritantemente inteligente.
Ela tem uma risada deliciosa.
Ela é tão sortuda que conheceu o Roger Waters sem querer (e me mandou um e-mail histérico logo que chegou em casa).
Ela é madrinha do meu filho.
Ela conheceu um príncipe dinamarquês e foi viver seu sonho.
Ela tem uma família maravilhosa.
Ela é a mulher da minha vida, e sabe disso.
Ela é capaz de me fazer chorar feito criança (de verdade) toda vez que vai embora.
Seja bem-vinda, amiga...
8.12.08
5.12.08
Yo no creo en brujas, pero que...
Quanto mais está a vida de um homem governada por acidentes, mais aumenta neste a superstição.
Hume, em sua História natural da religião, 1757
Antes que vocês comecem a ler de verdade este post chora-pitangas, é de bom senso que coloquem à frente do monitor: uma edição do Corão, uma da Bíblia, patuás - todos os possíveis, alho, uma cruz, imagens de santos e um copo com água e sal grosso. O último será particularmente necessário no final do processo.
Feito isso - e espero que vocês tenham feito mesmo já que é para o bem de todos, posso começar a saga sem correr o risco de ser acusado do que seja. Vamos lá.
Vocês já ouviram falar de inferno astral? Pois é: eu nunca havia fornecido a devida atenção a este negócio, considerado o seu possível valor, imaginado que seria por ele atingido.
Misifios à parte, sempre fui muito bem provido daquilo que Freud chamou de princípio de realidade, o que me impediu por toda vida de acreditar em coisas esotéricas e/ ou exotéricas, no próprio Freud ou mesmo em minha mãe.
Pois bem: agora tudo mudou. Uma enxurrada de acontecimentos desabados nos últimos dias está me fazendo mudar de idéia. Fatos perversos e estranhos estão fazendo com que estabeleça um novo padrão interpretativo da natureza. Universal do Reino de Deus, Universo em Desencanto, Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Lugbara, Universo para Cristo, Bushongo e Lotuko: aí vou eu.
Mas vamos ao fatos dramáticos para que vocês também deixem de nutrir dúvidas sobre o funcionamento cósmico.
Nos últimos 30 dias eu: a) fui acometido por duas cólicas renais, b) tive um balaco-baco com uma pessoa que eu amo de verdade e que me deixou muito, mas muito triste, c) perdi um casamento - deixei de me casar com uma moça legal que eu conheci, coisa com a qual não me conformo até agora e que também me chateou demais, d) estou com uma inflamação na região da mandíbula o que me causou dor, febre e o apelido semanal de Kiko.
OK. OK. Eu sou exagerado, não é? Essas coisas acontecem com todo mundo. Tentei manter um padrão mínimo de sanidade pensando desta forma, mas isto até me deparar com um evento há cerca de 40 minutos. Vejam bem, notem bem e acreditem: não foi delírio ou alucinação - foi um sinal. Só pode ter sido isso - um sinal. Eu eu entendi.
Estava caminhando em direção à minha casa quando notei que uma pomba passava sobre mim, numa velocidade considerável e a cerca de 4 metros de altura. Tão logo percebi o fato, notei que uma outra havia acabado de sair voando de um telhado que estava por volta de 20 metros à frente. E o aconteceu? Sim, meus caros: elas bateram, colidiram, deram um encontrão. Póf... e as pobres caíram estateladas.
Foi o evento mais nonsense ao qual já tive acesso. Tá, eu aceito: afora certa vez em que um sujeito cruzou a Alberto Sarmento correndo atrás de uma roda de carro, que descia rolando em direção ao centro, às 5h30 da manhã, enquanto eu e Emerson tomávamos a última cerveja do dia.
Acontece que nesta época nada mais havia acontecido de estranho ou ruim. Nesta época eu era um sujeito em paz, não afetado por sortilégios cosmogônicos e que, por isso, podia manter a capa bem costurada pela Aufklärung.
Hoje fui iluminado de outra forma. Agora eu sei tudo. Neste momento acredito mesmo que o tal do inferno astral exista, que ele me afetou e afeta, e mais: que posso causar mal às pessoas-coisas-animais que me cercam.
Por isso escrevo este post de dentro do guarda-roupa. Por isso peço a vocês que, após lerem isso, façam uso da água com sal grosso que está aí ao lado, e lavem as mãos.
Torçam para que mais nada, pelamor, aconteça até segunda.
Hume, em sua História natural da religião, 1757
Antes que vocês comecem a ler de verdade este post chora-pitangas, é de bom senso que coloquem à frente do monitor: uma edição do Corão, uma da Bíblia, patuás - todos os possíveis, alho, uma cruz, imagens de santos e um copo com água e sal grosso. O último será particularmente necessário no final do processo.
Feito isso - e espero que vocês tenham feito mesmo já que é para o bem de todos, posso começar a saga sem correr o risco de ser acusado do que seja. Vamos lá.
Vocês já ouviram falar de inferno astral? Pois é: eu nunca havia fornecido a devida atenção a este negócio, considerado o seu possível valor, imaginado que seria por ele atingido.
Misifios à parte, sempre fui muito bem provido daquilo que Freud chamou de princípio de realidade, o que me impediu por toda vida de acreditar em coisas esotéricas e/ ou exotéricas, no próprio Freud ou mesmo em minha mãe.
Pois bem: agora tudo mudou. Uma enxurrada de acontecimentos desabados nos últimos dias está me fazendo mudar de idéia. Fatos perversos e estranhos estão fazendo com que estabeleça um novo padrão interpretativo da natureza. Universal do Reino de Deus, Universo em Desencanto, Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Lugbara, Universo para Cristo, Bushongo e Lotuko: aí vou eu.
Mas vamos ao fatos dramáticos para que vocês também deixem de nutrir dúvidas sobre o funcionamento cósmico.
Nos últimos 30 dias eu: a) fui acometido por duas cólicas renais, b) tive um balaco-baco com uma pessoa que eu amo de verdade e que me deixou muito, mas muito triste, c) perdi um casamento - deixei de me casar com uma moça legal que eu conheci, coisa com a qual não me conformo até agora e que também me chateou demais, d) estou com uma inflamação na região da mandíbula o que me causou dor, febre e o apelido semanal de Kiko.
OK. OK. Eu sou exagerado, não é? Essas coisas acontecem com todo mundo. Tentei manter um padrão mínimo de sanidade pensando desta forma, mas isto até me deparar com um evento há cerca de 40 minutos. Vejam bem, notem bem e acreditem: não foi delírio ou alucinação - foi um sinal. Só pode ter sido isso - um sinal. Eu eu entendi.
Estava caminhando em direção à minha casa quando notei que uma pomba passava sobre mim, numa velocidade considerável e a cerca de 4 metros de altura. Tão logo percebi o fato, notei que uma outra havia acabado de sair voando de um telhado que estava por volta de 20 metros à frente. E o aconteceu? Sim, meus caros: elas bateram, colidiram, deram um encontrão. Póf... e as pobres caíram estateladas.
Foi o evento mais nonsense ao qual já tive acesso. Tá, eu aceito: afora certa vez em que um sujeito cruzou a Alberto Sarmento correndo atrás de uma roda de carro, que descia rolando em direção ao centro, às 5h30 da manhã, enquanto eu e Emerson tomávamos a última cerveja do dia.
Acontece que nesta época nada mais havia acontecido de estranho ou ruim. Nesta época eu era um sujeito em paz, não afetado por sortilégios cosmogônicos e que, por isso, podia manter a capa bem costurada pela Aufklärung.
Hoje fui iluminado de outra forma. Agora eu sei tudo. Neste momento acredito mesmo que o tal do inferno astral exista, que ele me afetou e afeta, e mais: que posso causar mal às pessoas-coisas-animais que me cercam.
Por isso escrevo este post de dentro do guarda-roupa. Por isso peço a vocês que, após lerem isso, façam uso da água com sal grosso que está aí ao lado, e lavem as mãos.
Torçam para que mais nada, pelamor, aconteça até segunda.
4.12.08
Os futuristas estão chegando...
É por isso que eu adoro o Piva: ele é, em suma, um futurista!
Prova: vejam estes versos (pelos quais sou completamente apaixonado) de Ardengo Soffici. São tão... pivanianos*...
L'infinito ha un profumo di frutta matura
di benzina
di cosce di poppe di capelli pettinati dopo la doccia
delle mie ascelle chi adoro
il gelo infiammato del cocomero tuffato a lungo nel pozzo
Bacio la vulva del firmamento senza rumore
Recrio tortamente assim:
O infinito tem perfume de fruta madura
de benzina
de coxas de peitos de cabelos penteados após o banho
de minhas axilas que adoro
o gelo inflamado da melancia engolfada há muito no poço
Beijo a vulva do firmamento sem ruído
* Os versos acima que ganharam página em 1915 num poema cujo nome é Aeroplano.
3.12.08
Engraçadinho com ressalvas, é claro
Novas versões (além das 278 já existentes) da fábula da cigarra e da formiga:
Versão inglesa
A formiga trabalha duro durante todo o verão de calor escorchante e prepara suas provisões para o inverno.
A cigarra acha que a formiga é estúpida. Ela dança, sorri e canta durante o verão inteiro.
O inverno chega. A formiga está bem abrigada no quentinho do formigueiro que possui um formidável estoque de alimentos
A cigarra treme de frio. Ela não tem onde morar nem do que comer. Resultado: morre de frio e de fome.
Fim
Versão francesa
A formiga trabalha sem parar durante todo verão. Ela constrói sua casa e estoca alimentos.
A cigarra acha que a formiga é idiota. Ela diverte-se, sorri e canta durante o verão inteiro.
O inverno chega. A formiga está bem abrigada no quentinho do formigueiro e come muito e bem.
A cigarra tremendo de frio, organiza uma entrevista coletiva para a imprensa. Ela pergunta por que a formiga tem direito de ficar no quentinho e comer bem enquanto que outros, menos sortudos como ela, sentem frio e fome.
A televisão organiza programas de debates entre insetos renomados nos quais mostra a cigarra morrendo de frio, assim como vídeos da formiga em um formigueiro bem aconchegante e com a mesa repleta de alimentos.
Os franceses ficam espantados. Indignação geral. Eles querem saber por que seu país tão rico permite a cigarra viver na “precariedade”, enquanto outros vivem na abundância.
As associações contra a pobreza organizam protestos em frente ao formigueiro.
A esquerda nacional pergunta por que a formiga ficou tão rica explorando a cigarra? O governo é interpelado. Quer o aumento dos impostos da formiga para que finalmente, ela pague a “parte justa” em relação aos seus rendimentos.
Em resposta às pesquisas de opinião, o governo redige uma proposta de lei sobre a igualdade econômica, retroativa ao verão, e antidiscriminatória. Na Assembléia Nacional, parlamentares da direita e da esquerda votam favoravelmente.
A casa da formiga é confiscada. Ela não tem dinheiro suficiente para soldar os impostos elevados nem as multas decorrentes do atraso no pagamento.
A formiga deixa a França. Ela instala-se com sucesso na outra margem do Canal da Mancha, na Inglaterra.
A imprensa francesa realiza reportagens louvando o bem estar da cigarra, doravante, terminando as ultimas provisões da formiga ainda que a primavera esteja distante.
A antiga casa da formiga transformou-se em “habitação social” da cigarra. O lugar se deteriora porque a atual ocupante nada faz para preservá-lo.
Emergem criticas contundentes ao governo que não previu fornecer alocações de renovação para cigarra.
Ao custo de 10 milhões de euros, o governo cria uma comissão para estudar o problema.
Os jornais Libération e L'Humanité comentam o fracasso do governo para reverter a situação das ilegalidades sociais na França.
Versão inglesa
A formiga trabalha duro durante todo o verão de calor escorchante e prepara suas provisões para o inverno.
A cigarra acha que a formiga é estúpida. Ela dança, sorri e canta durante o verão inteiro.
O inverno chega. A formiga está bem abrigada no quentinho do formigueiro que possui um formidável estoque de alimentos
A cigarra treme de frio. Ela não tem onde morar nem do que comer. Resultado: morre de frio e de fome.
Fim
Versão francesa
A formiga trabalha sem parar durante todo verão. Ela constrói sua casa e estoca alimentos.
A cigarra acha que a formiga é idiota. Ela diverte-se, sorri e canta durante o verão inteiro.
O inverno chega. A formiga está bem abrigada no quentinho do formigueiro e come muito e bem.
A cigarra tremendo de frio, organiza uma entrevista coletiva para a imprensa. Ela pergunta por que a formiga tem direito de ficar no quentinho e comer bem enquanto que outros, menos sortudos como ela, sentem frio e fome.
A televisão organiza programas de debates entre insetos renomados nos quais mostra a cigarra morrendo de frio, assim como vídeos da formiga em um formigueiro bem aconchegante e com a mesa repleta de alimentos.
Os franceses ficam espantados. Indignação geral. Eles querem saber por que seu país tão rico permite a cigarra viver na “precariedade”, enquanto outros vivem na abundância.
As associações contra a pobreza organizam protestos em frente ao formigueiro.
A esquerda nacional pergunta por que a formiga ficou tão rica explorando a cigarra? O governo é interpelado. Quer o aumento dos impostos da formiga para que finalmente, ela pague a “parte justa” em relação aos seus rendimentos.
Em resposta às pesquisas de opinião, o governo redige uma proposta de lei sobre a igualdade econômica, retroativa ao verão, e antidiscriminatória. Na Assembléia Nacional, parlamentares da direita e da esquerda votam favoravelmente.
A casa da formiga é confiscada. Ela não tem dinheiro suficiente para soldar os impostos elevados nem as multas decorrentes do atraso no pagamento.
A formiga deixa a França. Ela instala-se com sucesso na outra margem do Canal da Mancha, na Inglaterra.
A imprensa francesa realiza reportagens louvando o bem estar da cigarra, doravante, terminando as ultimas provisões da formiga ainda que a primavera esteja distante.
A antiga casa da formiga transformou-se em “habitação social” da cigarra. O lugar se deteriora porque a atual ocupante nada faz para preservá-lo.
Emergem criticas contundentes ao governo que não previu fornecer alocações de renovação para cigarra.
Ao custo de 10 milhões de euros, o governo cria uma comissão para estudar o problema.
Os jornais Libération e L'Humanité comentam o fracasso do governo para reverter a situação das ilegalidades sociais na França.
2.12.08
Atitulado
Fiquei um bom tempo sem sair de casa. Dois meses, quem sabe. Na semana retrasada o ébrio voltou para rever os amigos e já recomeçou mal: esqueceu a chave no carro de um deles e foi obrigado a pular o portão de casa às 4h. Ter sobrevivido foi um milagre. Já devidamente instalado atrás de um oblongo arbusto de azaléias e esperando amanhecer, pude ficar olhando o céu. Fazia tempo que isto não acontecia.
Quando estava entrando na adolescência, ia às vezes acampar com meu pai e seus amigos. Seguíamos de carro até um vila que fica um pouco depois de Parati e, naquele povoado que sequer imagino como se encontra hoje, pegávamos um barco. Ele nos deixava em um lugar chamado "Ilha do Algodão", que de ilha nada tinha, a não ser o fato de poder se chegar ali apenas pelo mar. Era uma praia pequena, linda. Ficávamos ali 10 dias, sem contato algum com o mundo. O uso do relógio era vetado. Um barqueiro vinha, de 2 em 2 dias, saber se estava todo mundo vivo.
Uma das coisas que eu aprendi naquela praia foi olhar o céu, à noite. Não há muito o que se fazer das 21h às 6h num lugar destes. Não há escolha. Descobre-se cedo, entretanto, que ficar olhando para cima pode ser uma experiência fabulosa. Há algo de magnífico ali; a sensação de vácuo, de pequenez e de instigamento são somadas e cravadas na entrada do cérebro. Azul vermelho e prata; azul vermelho e prata: aquilo é um planeta. Prata prata prata: aquilo é uma estrela. Cerra os olhos e vê o caminho leitoso, denso, cercado de preto preto preto. Sente vontade de se jogar na colcha gigantesca. O que haverá ali? Não sei, mas eu vou pular.
Nunca mais me relacionei com o céu desta forma. No dia em que pulei o portão, metade foi olhar que agora pouco vê e metade foi memória devidamente nostálgica. Nada havia de novo além da constatação de que algo se perdeu ou está se perdendo.
______________________________________________________________________
Meu amigo Guilherme tem um blog. Meu amigo Guilherme é dono de incessantes sacadas geniais. Meu amigo Guilherme escreve coisas interessantíssimas. Meu amigo Guilherme é poeta e assim se denomina e assim o denominam não porque deseja ser: ele o é, de verdade. Eu, amigo do meu amigo Guilherme, às vezes,desastradamente, tento. Há uma tentativa minha em seu blog.
Quanto topei com a coisa, gelei. A ilustrá-la uma imagem de Hopper - por mim desconhecida -, artista que meu amigo não sabia ser um de meus prediletos. Meu amigo Guilherme tem dessas coisas: ele carrega a percepção transcendente dos poetas.
Quando estava entrando na adolescência, ia às vezes acampar com meu pai e seus amigos. Seguíamos de carro até um vila que fica um pouco depois de Parati e, naquele povoado que sequer imagino como se encontra hoje, pegávamos um barco. Ele nos deixava em um lugar chamado "Ilha do Algodão", que de ilha nada tinha, a não ser o fato de poder se chegar ali apenas pelo mar. Era uma praia pequena, linda. Ficávamos ali 10 dias, sem contato algum com o mundo. O uso do relógio era vetado. Um barqueiro vinha, de 2 em 2 dias, saber se estava todo mundo vivo.
Uma das coisas que eu aprendi naquela praia foi olhar o céu, à noite. Não há muito o que se fazer das 21h às 6h num lugar destes. Não há escolha. Descobre-se cedo, entretanto, que ficar olhando para cima pode ser uma experiência fabulosa. Há algo de magnífico ali; a sensação de vácuo, de pequenez e de instigamento são somadas e cravadas na entrada do cérebro. Azul vermelho e prata; azul vermelho e prata: aquilo é um planeta. Prata prata prata: aquilo é uma estrela. Cerra os olhos e vê o caminho leitoso, denso, cercado de preto preto preto. Sente vontade de se jogar na colcha gigantesca. O que haverá ali? Não sei, mas eu vou pular.
Nunca mais me relacionei com o céu desta forma. No dia em que pulei o portão, metade foi olhar que agora pouco vê e metade foi memória devidamente nostálgica. Nada havia de novo além da constatação de que algo se perdeu ou está se perdendo.
______________________________________________________________________
Meu amigo Guilherme tem um blog. Meu amigo Guilherme é dono de incessantes sacadas geniais. Meu amigo Guilherme escreve coisas interessantíssimas. Meu amigo Guilherme é poeta e assim se denomina e assim o denominam não porque deseja ser: ele o é, de verdade. Eu, amigo do meu amigo Guilherme, às vezes,desastradamente, tento. Há uma tentativa minha em seu blog.
Quanto topei com a coisa, gelei. A ilustrá-la uma imagem de Hopper - por mim desconhecida -, artista que meu amigo não sabia ser um de meus prediletos. Meu amigo Guilherme tem dessas coisas: ele carrega a percepção transcendente dos poetas.
28.11.08
27.11.08
Porque merecemos, às vezes, um pouco de João Cabral
Paisagem pelo telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
26.11.08
Oscar Peterson - Alice in Wonderland
Este é tipo de coisa para o qual se diz: como pode existir algo assim?
Espantoso...
O esclarecimento da psicanálise
Quando o livro pertence àquela categoria dita "fora de série", é bom que prestemos atenção inclusive em algum possível significado latente em seu ponto final. Este é caso de "Dialética do Esclarecimento". Lá no fundo, depois que tudo parece ter sido dito, nos esboços não aproveitados, há este texto primoroso. Permito-me fazer algumas digressões no final.
A gênese da burrice
O símbolo da inteligência é o caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos, a vida intectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis.
Os animais mais evoluídos devem o que são à sua maior liberdade; sua existência mostra que, outrora, suas antenas foram dirigidas em novas direções e não foram retiradas... A repressão das possibilidades pela resistência imediata da natureza ambiente prolongou-se interiormente, com o atrofiamento dos órgãos pelo medo. Cada olhar que o animal lança anuncia uma forma nova dos seres vivos que poderia surgir da espécie determinada a que pertence o ser individual.
Esse olhar tateante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás de si a boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro.
A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas. As perguntas sem fim da criança já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para a qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente. A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada, por exemplo quando o leão em sus jaula não pára de ir e vir, e o neurótico repete a ação de defesa, que já se mostrara inútil. Se as repetições já se reduziram na criança, ou a inibição foi excessivamente brutal, a atenção pode se voltar numa outra direção, a criança ficou mais rica de experiências, como se diz, mas freqüentemente no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres duros e capazes, podem tornar as pessoas burras - no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira, da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violência sofrida torna a boa vontade em má.
Há uma divisão que pode ser feita a partir dos dados do texto. Ela não é estanque: é um tanto quanto viva e e instável já que, afinal, lida com fatos humanos. Diz respeito à existência de uma burrice cognitiva numa ponta e, de outro lado, àquela que pode ser tomada como afetiva. É desta que falarei um pouco.
Em um dado momento, os autores se referem à ação do neurótico que repete a defesa. É a forma que ele encontra para lidar com sua cicatriz, que ao mesmo tempo que dói o desvincula da realidade. A cicatriz do neurótico e seu invólucro são fáceis de ser entendidos: uma vez usado o órgão do afeto, e estando a ponteira deste órgão machucado, ele acaba por reeditar a metáfora da antena do caracol - se estende pouco, avança até o limite de não sujeitar-se ao decepamento. O membro em recuperação encontra-se por si só manco, e não pode se dar ao luxo de avançar o suficiente simplesmente porque o que lhe é intrínseco vive agora somente em forma potencial.
Assim o neurótico repete. E repete porque não se livra da cicatriz e seu órgão é o único que lhe existe ligado à função. Repete porque cada situação dada é percebida como a originária, a dolorosa. A única saída do neurótico é a reinterpretação. É a verificação de que o órgão é tocado por algo novo, diferente do cortante: é desconstruir, tornando a cicatriz, ao mesmo tempo, o mais maleável e o mais resistente possível.
O que há de preocupante entretanto, e aí então a neurose involui à uma espécie de protopervesão, é a possibilidade de rearranjo do órgão, o seu estabelecimento em contrário de si: o afeto passa a desafeto, a timidez passa à arrogância, a construção passa ao desmoronamento - a antena, para que consiga a defesa, não mais se recolhe e tenta indistintamente - ela se transmuta em tentáculos e presas afiadas. O alcançe do outro não é mais toque: é estocada, luta, geração de desprazer para com o desejado.
O interessante aqui é sabermos que - e isto aparece na psicanálise já desde seus mais antigos trabalhos - incrementando os sintomas, há uma percepção do doente de que ele se encontra em melhores condições. A defesa se torna melhor sucedida quando o desvio é mais eficaz. A situação terrível é lida como prazerosa por conta dos mecanismos embusteiros. O masoquismo é um caso exemplar. Nele, a perversão se instala de vez e permanece.
Assim como a agulha é anunciada como dor apenas na entrada e na saída, parecendo fazer parte do organismo quando na carne, o mal passa a significar prazer ao masoquista quando, de início, não se movimenta. A rotação pode ser então, com o tempo, completamente realizada - perversão = per verso = pelo contrário. O sujeito ou o fato responsável pelo desconforto, ainda que pleno, é reconhecido como necessário e bondoso quando presente e pode iniciar seus vai e vens dolorosos. Os sujeitos e fatos para os quais as antenas poderiam se aproximar com menos problemas são reconhecidos, quando tocados, como indecentes causadores de cicatriz. Morte é vida, ainda que digam o inverso. O desejo do indivíduo é respeitado, ainda que isso signifique ser abusado. Menos vale mais.
O montante da burrice afetiva é o mesmo da felicidade trazida pelo prazer da inversão. Uma simbiose então deve se iniciar: ao masoquista agora feliz une-se o naricista e/ou sádico. A lente convergente está fortemente instalada nos sistemas que se aproximam da ou repetem a relação perversa. O alcoólatra perverso ama a bebida com a mesma força com que odeia o alimento. Reinicia seu amor diariamente. O apaixonado perverso adora seu amante na mesma medida em que ele, o traindo, fica. E reitera seu método, sempre. A felicidade nunca foi nem será índice de saúde. Quando Nietzsche diz que é preciso haver caos dentro de si para que se possa dar luz a uma estrela dançante não profere um texto de agenda para meninas: fala sobre criação e, ao seu modo peculiar, de cura.
Por muitas vezes o câncer só aparece quando é chegado o estágio final, mostrando tudo o que tem mostrar. O câncer da burrice afetiva por muitas e muitas vezes repete o fado. A cura só se apresenta a quem se sabe e se sente doente e, calado e aceitando como eterno o pathos de estar-se constantemente se contruindo, prepara-se para arriscar novas e sadias cicatrizes.
A gênese da burrice
O símbolo da inteligência é o caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos, a vida intectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis.
Os animais mais evoluídos devem o que são à sua maior liberdade; sua existência mostra que, outrora, suas antenas foram dirigidas em novas direções e não foram retiradas... A repressão das possibilidades pela resistência imediata da natureza ambiente prolongou-se interiormente, com o atrofiamento dos órgãos pelo medo. Cada olhar que o animal lança anuncia uma forma nova dos seres vivos que poderia surgir da espécie determinada a que pertence o ser individual.
Esse olhar tateante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás de si a boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro.
A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas. As perguntas sem fim da criança já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para a qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente. A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada, por exemplo quando o leão em sus jaula não pára de ir e vir, e o neurótico repete a ação de defesa, que já se mostrara inútil. Se as repetições já se reduziram na criança, ou a inibição foi excessivamente brutal, a atenção pode se voltar numa outra direção, a criança ficou mais rica de experiências, como se diz, mas freqüentemente no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres duros e capazes, podem tornar as pessoas burras - no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira, da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violência sofrida torna a boa vontade em má.
Há uma divisão que pode ser feita a partir dos dados do texto. Ela não é estanque: é um tanto quanto viva e e instável já que, afinal, lida com fatos humanos. Diz respeito à existência de uma burrice cognitiva numa ponta e, de outro lado, àquela que pode ser tomada como afetiva. É desta que falarei um pouco.
Em um dado momento, os autores se referem à ação do neurótico que repete a defesa. É a forma que ele encontra para lidar com sua cicatriz, que ao mesmo tempo que dói o desvincula da realidade. A cicatriz do neurótico e seu invólucro são fáceis de ser entendidos: uma vez usado o órgão do afeto, e estando a ponteira deste órgão machucado, ele acaba por reeditar a metáfora da antena do caracol - se estende pouco, avança até o limite de não sujeitar-se ao decepamento. O membro em recuperação encontra-se por si só manco, e não pode se dar ao luxo de avançar o suficiente simplesmente porque o que lhe é intrínseco vive agora somente em forma potencial.
Assim o neurótico repete. E repete porque não se livra da cicatriz e seu órgão é o único que lhe existe ligado à função. Repete porque cada situação dada é percebida como a originária, a dolorosa. A única saída do neurótico é a reinterpretação. É a verificação de que o órgão é tocado por algo novo, diferente do cortante: é desconstruir, tornando a cicatriz, ao mesmo tempo, o mais maleável e o mais resistente possível.
O que há de preocupante entretanto, e aí então a neurose involui à uma espécie de protopervesão, é a possibilidade de rearranjo do órgão, o seu estabelecimento em contrário de si: o afeto passa a desafeto, a timidez passa à arrogância, a construção passa ao desmoronamento - a antena, para que consiga a defesa, não mais se recolhe e tenta indistintamente - ela se transmuta em tentáculos e presas afiadas. O alcançe do outro não é mais toque: é estocada, luta, geração de desprazer para com o desejado.
O interessante aqui é sabermos que - e isto aparece na psicanálise já desde seus mais antigos trabalhos - incrementando os sintomas, há uma percepção do doente de que ele se encontra em melhores condições. A defesa se torna melhor sucedida quando o desvio é mais eficaz. A situação terrível é lida como prazerosa por conta dos mecanismos embusteiros. O masoquismo é um caso exemplar. Nele, a perversão se instala de vez e permanece.
Assim como a agulha é anunciada como dor apenas na entrada e na saída, parecendo fazer parte do organismo quando na carne, o mal passa a significar prazer ao masoquista quando, de início, não se movimenta. A rotação pode ser então, com o tempo, completamente realizada - perversão = per verso = pelo contrário. O sujeito ou o fato responsável pelo desconforto, ainda que pleno, é reconhecido como necessário e bondoso quando presente e pode iniciar seus vai e vens dolorosos. Os sujeitos e fatos para os quais as antenas poderiam se aproximar com menos problemas são reconhecidos, quando tocados, como indecentes causadores de cicatriz. Morte é vida, ainda que digam o inverso. O desejo do indivíduo é respeitado, ainda que isso signifique ser abusado. Menos vale mais.
O montante da burrice afetiva é o mesmo da felicidade trazida pelo prazer da inversão. Uma simbiose então deve se iniciar: ao masoquista agora feliz une-se o naricista e/ou sádico. A lente convergente está fortemente instalada nos sistemas que se aproximam da ou repetem a relação perversa. O alcoólatra perverso ama a bebida com a mesma força com que odeia o alimento. Reinicia seu amor diariamente. O apaixonado perverso adora seu amante na mesma medida em que ele, o traindo, fica. E reitera seu método, sempre. A felicidade nunca foi nem será índice de saúde. Quando Nietzsche diz que é preciso haver caos dentro de si para que se possa dar luz a uma estrela dançante não profere um texto de agenda para meninas: fala sobre criação e, ao seu modo peculiar, de cura.
Por muitas vezes o câncer só aparece quando é chegado o estágio final, mostrando tudo o que tem mostrar. O câncer da burrice afetiva por muitas e muitas vezes repete o fado. A cura só se apresenta a quem se sabe e se sente doente e, calado e aceitando como eterno o pathos de estar-se constantemente se contruindo, prepara-se para arriscar novas e sadias cicatrizes.
22.11.08
Scherzo, ma non troppo
parecedosas mulhemieres voandocas meacenam
pertoda porta e minhaefE50 atravessa o sonho e me
acordalha pelostím panosmolhaDoçuras e Água fresca
a oa cordar incordado cordatoCuore
somedaywe’llwalkintheraysofabeautifulsun
somedaywhentheworldismuchlighterLikeaflowerinthe
darkIdon´treflectheLightnowhereandtrytoflyaroundtheMoon
nãonão reflitero a luz sãoapenas de ornitoriso que faço
eosaposeasienasais de Tiananmenbad drink gin mentre io
peço umrum para viagem e não deveria papar de beber
até tentar ósculosemeustestículosts Mas de queadianta
seas crianças ainda morremnolíbanoirãafricanesquina
(o ator agora deverá Chorar compulsivamente)
placas de titânio no cérebro e a fenda parainjecçãoDasparoxítinas
que colorem as imagens que penetram pelos olhos naprogramação
da semana teremos "- idealismo de agulha –" ou
eis-me um prozaqueano na promoção troque dois ComprimidoS azuis
mais dois gols do camisa dez e e ganhe essa tal felicidade queraumacasinhaunacolinaQuandoagentequeramar.
pertoda porta e minhaefE50 atravessa o sonho e me
acordalha pelostím panosmolhaDoçuras e Água fresca
a oa cordar incordado cordatoCuore
somedaywe’llwalkintheraysofabeautifulsun
somedaywhentheworldismuchlighterLikeaflowerinthe
darkIdon´treflectheLightnowhereandtrytoflyaroundtheMoon
nãonão reflitero a luz sãoapenas de ornitoriso que faço
eosaposeasienasais de Tiananmenbad drink gin mentre io
peço umrum para viagem e não deveria papar de beber
até tentar ósculosemeustestículosts Mas de queadianta
seas crianças ainda morremnolíbanoirãafricanesquina
(o ator agora deverá Chorar compulsivamente)
placas de titânio no cérebro e a fenda parainjecçãoDasparoxítinas
que colorem as imagens que penetram pelos olhos naprogramação
da semana teremos "- idealismo de agulha –" ou
eis-me um prozaqueano na promoção troque dois ComprimidoS azuis
mais dois gols do camisa dez e e ganhe essa tal felicidade queraumacasinhaunacolinaQuandoagentequeramar.
Ego (Mei, Mihi, Me)
Hoje eu me cansei de mim mesmo. Cheguei ao meu limite comigo. Tive vontade de me bater.
Não é pra menos, acredito: quem suportaria sem percalços uma relação tão longa e pegajosa dessas? São 33 anos, quase 34, sem me abandonar por um só minuto. Nos sonhos, no banho, no almoço, na caminhada, na escrita, na punheta, no amarrar os sapatos: sempre eu lá, comigo, divagando idiotices e genialidades, dando pitacos sobre mim, me achando o máximo, me perguntando o motivo da tolice.
Cansei-me de mim porque pareço jamais reconhecer o que estou fazendo ou conjecturando quando na verdade sei muito bem o que se passa. Porque me confundo e me perco e me desacato e me espanto e me estranho e me enluto e me acredito e me troço e me esqueço e quando me recordo normalmente já é tarde e errei por me deslembrar e me irrito com o olvidado e com o lembrado e com o incessantemente repetido olha o que você fez!
Preciso de um tempo de mim de um modo urgente. Férias de mim. Eu sem mim esquiando em Bariloche. Eu sem mim nas ilhas gregas. Eu sem mim vendo o Davi de Michelangelo. Eu sem mim com a moça bonita rindo no teleférico de Poços de Caldas. Eu sem mim vendo peitos no Mardi Gras de New Orleans. Eu sem mim nem que seja na hora de...
Careço da minha falta. Alguém, por favor, me leve pra passear para que eu me dê um tempo! Sim, como se eu fosse o poodle e o dono do poodle que o esquece. Quem sabe um centro espírita? Um terreiro umbanda? Uma regressão até me ver guerreiro mongol e não saber o que me digo?
São 33 anos comigo, quase 34. Fabiano: puta que o pariu, por todos os santos, saravá meu pai - me esqueça um pouco - é só o que lhe peço, a mim.
Não é pra menos, acredito: quem suportaria sem percalços uma relação tão longa e pegajosa dessas? São 33 anos, quase 34, sem me abandonar por um só minuto. Nos sonhos, no banho, no almoço, na caminhada, na escrita, na punheta, no amarrar os sapatos: sempre eu lá, comigo, divagando idiotices e genialidades, dando pitacos sobre mim, me achando o máximo, me perguntando o motivo da tolice.
Cansei-me de mim porque pareço jamais reconhecer o que estou fazendo ou conjecturando quando na verdade sei muito bem o que se passa. Porque me confundo e me perco e me desacato e me espanto e me estranho e me enluto e me acredito e me troço e me esqueço e quando me recordo normalmente já é tarde e errei por me deslembrar e me irrito com o olvidado e com o lembrado e com o incessantemente repetido olha o que você fez!
Preciso de um tempo de mim de um modo urgente. Férias de mim. Eu sem mim esquiando em Bariloche. Eu sem mim nas ilhas gregas. Eu sem mim vendo o Davi de Michelangelo. Eu sem mim com a moça bonita rindo no teleférico de Poços de Caldas. Eu sem mim vendo peitos no Mardi Gras de New Orleans. Eu sem mim nem que seja na hora de...
Careço da minha falta. Alguém, por favor, me leve pra passear para que eu me dê um tempo! Sim, como se eu fosse o poodle e o dono do poodle que o esquece. Quem sabe um centro espírita? Um terreiro umbanda? Uma regressão até me ver guerreiro mongol e não saber o que me digo?
São 33 anos comigo, quase 34. Fabiano: puta que o pariu, por todos os santos, saravá meu pai - me esqueça um pouco - é só o que lhe peço, a mim.
20.11.08
brasilianescas (nova série)
Nome do estádio do Duque de Caxias F.C, do Rio de Janeiro: Romário de Souza Farias.
Apelido do lugar: Marrentão.
Apelido do lugar: Marrentão.
18.11.08
Buscopost
Há quem diga que a dor venha do desejo de não sentir dor. Budismos e niilismos à parte, o meu caso é um tanto quanto menos complicado, denso, metafísico: a minha dor não vem de outro lugar que não sejam os rins mesmo e, cacete, como dói!
Domingo houve mais uma participação minha no Buscodia feliz. Acorda com aquela dor bastante caracterítica nas partes baixas, tenta negar o acontecimento que se inicia lenta e pavorosamente, levanta, toma um banho, aceita a situação já que então seu ventre todo pulsa e retorce e espeta, bota uma roupa e vai pro hospital.
Chega no lugar é tratado com alguém que - se é que isso um dia existiu - dá carteirada com uma granada ameaçando explodir tudo: moça, é rim. Ai meu deus, corre pra dentro. Gente, é cólica renal, é cólica renal! A médica olha pra você, a enfermeira olha pra você e pra médica, você olha pro seu cadarço porque não consegue sair da posição fetal e todos já sabem o que fazer: Voltaren na bunda, Buscopan e Dipirona - ou às vezes Tramadol - na veia. Qual veia? Como você já está pálido, sem pressão e achando que morrer talvez não fosse um mal negócio, as ditas desaparecem e a moça fica rodando uma agulha dentro do seu braço como se estivesse fazendo crochê. Tá doendo? Talvez estivesse pra alguém que soubesse ao menos em que planeta se encontrava.
Dez minutos: este é tempo da salvação. Sua boca seca e o mundo começa a ficar lindo não apenas pela redução da dor mas porque a zuretisse se inicia: mundo em câmara lenta, visão completamente turva (não dá pra ver a hora no relógio), sonolência - bem-vindo meu caro, bem-vindo ao Buscomundo!
Uma hora depois você já é um sujeito quase normal. Tira aquela coisa do braço, pega os resultados dos exames e volta pra casa onde tomará no máximo dois comprimidos de Buscopan Composto quatro vezes ao dia. Foi o que fiz hoje. Por isso dormi o dia todo, por isso escrevi este texto praticamente deitado porque ainda dói um pouco e essa coisa de comprimido não resolve muito, e por isso fiz gelatina há quarenta minutos e tenho disposição pra esperar ficar pronta. Aliás, vou dar uma olhada nesta coisa agora porque acho que já dá pra comer e eu tô morrendo de vontade.
Um Buscobeijo a todos...
Domingo houve mais uma participação minha no Buscodia feliz. Acorda com aquela dor bastante caracterítica nas partes baixas, tenta negar o acontecimento que se inicia lenta e pavorosamente, levanta, toma um banho, aceita a situação já que então seu ventre todo pulsa e retorce e espeta, bota uma roupa e vai pro hospital.
Chega no lugar é tratado com alguém que - se é que isso um dia existiu - dá carteirada com uma granada ameaçando explodir tudo: moça, é rim. Ai meu deus, corre pra dentro. Gente, é cólica renal, é cólica renal! A médica olha pra você, a enfermeira olha pra você e pra médica, você olha pro seu cadarço porque não consegue sair da posição fetal e todos já sabem o que fazer: Voltaren na bunda, Buscopan e Dipirona - ou às vezes Tramadol - na veia. Qual veia? Como você já está pálido, sem pressão e achando que morrer talvez não fosse um mal negócio, as ditas desaparecem e a moça fica rodando uma agulha dentro do seu braço como se estivesse fazendo crochê. Tá doendo? Talvez estivesse pra alguém que soubesse ao menos em que planeta se encontrava.
Dez minutos: este é tempo da salvação. Sua boca seca e o mundo começa a ficar lindo não apenas pela redução da dor mas porque a zuretisse se inicia: mundo em câmara lenta, visão completamente turva (não dá pra ver a hora no relógio), sonolência - bem-vindo meu caro, bem-vindo ao Buscomundo!
Uma hora depois você já é um sujeito quase normal. Tira aquela coisa do braço, pega os resultados dos exames e volta pra casa onde tomará no máximo dois comprimidos de Buscopan Composto quatro vezes ao dia. Foi o que fiz hoje. Por isso dormi o dia todo, por isso escrevi este texto praticamente deitado porque ainda dói um pouco e essa coisa de comprimido não resolve muito, e por isso fiz gelatina há quarenta minutos e tenho disposição pra esperar ficar pronta. Aliás, vou dar uma olhada nesta coisa agora porque acho que já dá pra comer e eu tô morrendo de vontade.
Um Buscobeijo a todos...
14.11.08
13.11.08
I can't see me loving nobody but you, for all my life...
Nietzsche disse certa feita que, sem música, a vida seria um erro. Eu acrescentaria aí, fomando uma listinha das coisas sem as quais a vida seria um erro, as Tostitas e o chutney.
Idiossincrasias à parte, uma coisa que sempre me espantou foi a capacidade que a música tem de potencializar aquilo que lhe cerca. Um texto bobo é um texto bobo, até que lhe adicionem uma boa música e ele passa a ganhar contornos de algo mais do que decente. Uma prova disso está nas próprias letras das canções: longe de chegarem perto de um poema denso, ao serem musicadas fazem parecer com que Peninha possa se aproximar bastante de Pessoa. É esse tipo de persuasão causada pelo impacto musical que faz com chamemos muitos de nossos compositores de "poetas". Não, não e não: Chico Buarque está a uns 25.879 quilômetros de ser João Cabral neste aspecto. Como explicar isso num país em que Sarney é membro da Academia de Letras? Deixa pra lá...
Voltando ao assunto, é um tanto óbvio que não sejam apenas as palavras as únicas potencializadas pelos sons minimamente coordenados. As imagens também o são, e se torna cada vez mais difícil observarmos algo sem umas notas na cachola. O mecanismo da trilha sonora invadiu o cotidiano, e os MP3 da vida possibilitam que uma ida ao centro da cidade se torne um evento de grandes proporções. Uma "Fanfarra ao homem comum" do Copland faz qualquer um descer a rua 13 de maio no mínimo arrepiado por conta do filminho individual que ajuda produzir.
Bem, essa coisa toda acima só apareceu porque o que eu queria mesmo dizer é algo bem curto e em certo sentido bastante pontual: o uso da música numa propaganda. Desde o século passado quando me deliciava vendo o comercial do cigarro Hollywood ao som de Run Like Hell que isso me chama bastante a atenção. Que a criação de temas que, em certo sentido, contextualizam a marca dando o tom do que ela quer ser fazendo uso de imagens atreladas à musica me deliciam. Sim, me deliciam* - porque o que se vê ali é algo do campo da distração, do vídeo clipe, e querendo ou não, faz com que passemos o tempo de espera de um modo um tanto mais divertido.
Há um comercial no ar no qual conseguiram fazer o tal casamento anúncio - imagem - música de uma maneira magistral. Pra quem ainda não viu, a propaganda do Ford Focus é fabulosa: divertida no ponto certo, leve e não insistente. A música usada? Happy Together, dos Turtles: uma canção que rendeu mais dinheiro por sua aplicação comercial do que por venda de disco. Há no site da banda, que hoje se resume a dois senhores um tanto quanto ridículos porque se recusam a envelhecer, até uma página onde se vê uma listagem dos anúncios feitos com a música.
Pra não dizerem que dei crédito apenas ao resultado, e não ao seu real causador, aí vai o clipe de 1967.
É isso.
*Aos pentelhos arrubrados que vão me encher o saco por eu estar falando de propagandas comerciais: guardando a devida proporção, não é porque sou ateu que não vou gostar de arte sacra. Sacaram?
Idiossincrasias à parte, uma coisa que sempre me espantou foi a capacidade que a música tem de potencializar aquilo que lhe cerca. Um texto bobo é um texto bobo, até que lhe adicionem uma boa música e ele passa a ganhar contornos de algo mais do que decente. Uma prova disso está nas próprias letras das canções: longe de chegarem perto de um poema denso, ao serem musicadas fazem parecer com que Peninha possa se aproximar bastante de Pessoa. É esse tipo de persuasão causada pelo impacto musical que faz com chamemos muitos de nossos compositores de "poetas". Não, não e não: Chico Buarque está a uns 25.879 quilômetros de ser João Cabral neste aspecto. Como explicar isso num país em que Sarney é membro da Academia de Letras? Deixa pra lá...
Voltando ao assunto, é um tanto óbvio que não sejam apenas as palavras as únicas potencializadas pelos sons minimamente coordenados. As imagens também o são, e se torna cada vez mais difícil observarmos algo sem umas notas na cachola. O mecanismo da trilha sonora invadiu o cotidiano, e os MP3 da vida possibilitam que uma ida ao centro da cidade se torne um evento de grandes proporções. Uma "Fanfarra ao homem comum" do Copland faz qualquer um descer a rua 13 de maio no mínimo arrepiado por conta do filminho individual que ajuda produzir.
Bem, essa coisa toda acima só apareceu porque o que eu queria mesmo dizer é algo bem curto e em certo sentido bastante pontual: o uso da música numa propaganda. Desde o século passado quando me deliciava vendo o comercial do cigarro Hollywood ao som de Run Like Hell que isso me chama bastante a atenção. Que a criação de temas que, em certo sentido, contextualizam a marca dando o tom do que ela quer ser fazendo uso de imagens atreladas à musica me deliciam. Sim, me deliciam* - porque o que se vê ali é algo do campo da distração, do vídeo clipe, e querendo ou não, faz com que passemos o tempo de espera de um modo um tanto mais divertido.
Há um comercial no ar no qual conseguiram fazer o tal casamento anúncio - imagem - música de uma maneira magistral. Pra quem ainda não viu, a propaganda do Ford Focus é fabulosa: divertida no ponto certo, leve e não insistente. A música usada? Happy Together, dos Turtles: uma canção que rendeu mais dinheiro por sua aplicação comercial do que por venda de disco. Há no site da banda, que hoje se resume a dois senhores um tanto quanto ridículos porque se recusam a envelhecer, até uma página onde se vê uma listagem dos anúncios feitos com a música.
Pra não dizerem que dei crédito apenas ao resultado, e não ao seu real causador, aí vai o clipe de 1967.
É isso.
*Aos pentelhos arrubrados que vão me encher o saco por eu estar falando de propagandas comerciais: guardando a devida proporção, não é porque sou ateu que não vou gostar de arte sacra. Sacaram?
7.11.08
Pulando poças
Há momentos da vida que são decisivos. Há instantes nos quais nossas escolhas acabam por determinar um número gigantesco de acontecimentos, fatos, memórias, e mesmo de outras opções que você fará durante toda a vida, numa espécie de caminho como aquele feito por pedras de dominó que derrubam umas as outras, formando uma figura qualquer no final.
Ontem houve isso.
Passei a tarde fazendo provas para um emprego ruim. Mostrando que eu sei a diferença entre "há" e "a", que posso calcular porcentagens, que consigo entender sequências lógicas simples. É difícil constranger-se consigo mesmo, decepcionar-se com as expectativas que criou sobre si. Isso talvez seja o que nomeiam por frustração.
Saí dali um quanto tanto derrotado. Fui buscar meu filho na escola. O tempo estava péssimo.
Demos dois passos e a chuva desabou: pesada, quente, absolutamente horizontal. Foi aí que veio a escolha: não, não - não vamos nos esconder, esperar, ou o que seja - vamos embora. Mas pai? Ih, você de papel, é? Não: huhu!!!
E viemos na chuva, morrendo de rir, chutando as águas das guias, pulando em poças, levando banho dos carros pra ver quem se ensopava mais. Fujimos das árvores porque embaixo de árvore não se molha, tiramos as camisetas e as enrolamos no ar, fizemos penteados engraçados nos cabelos que pingavam. Chegamos em casa às gargalhadas, tiramos a roupa na garagem e entramos de cueca e todo mundo riu.
Além de saber a diferença entre "há" e "a", de calcular porcentagens e de entender sequências lógicas simples, é possível que eu saiba divertir e criar boas memórias, como a peça de dominó feita de chuva, de poças saltadas.
Hoje, sinceramente, isso já me basta.
Ontem houve isso.
Passei a tarde fazendo provas para um emprego ruim. Mostrando que eu sei a diferença entre "há" e "a", que posso calcular porcentagens, que consigo entender sequências lógicas simples. É difícil constranger-se consigo mesmo, decepcionar-se com as expectativas que criou sobre si. Isso talvez seja o que nomeiam por frustração.
Saí dali um quanto tanto derrotado. Fui buscar meu filho na escola. O tempo estava péssimo.
Demos dois passos e a chuva desabou: pesada, quente, absolutamente horizontal. Foi aí que veio a escolha: não, não - não vamos nos esconder, esperar, ou o que seja - vamos embora. Mas pai? Ih, você de papel, é? Não: huhu!!!
E viemos na chuva, morrendo de rir, chutando as águas das guias, pulando em poças, levando banho dos carros pra ver quem se ensopava mais. Fujimos das árvores porque embaixo de árvore não se molha, tiramos as camisetas e as enrolamos no ar, fizemos penteados engraçados nos cabelos que pingavam. Chegamos em casa às gargalhadas, tiramos a roupa na garagem e entramos de cueca e todo mundo riu.
Além de saber a diferença entre "há" e "a", de calcular porcentagens e de entender sequências lógicas simples, é possível que eu saiba divertir e criar boas memórias, como a peça de dominó feita de chuva, de poças saltadas.
Hoje, sinceramente, isso já me basta.
6.11.08
5.11.08
João Pereira Coutinho
Para que não conhece João Pereira Coutinho, trata-se de um português que escreve coisas das mais sensatas e de uma maneira impecável. Provável que uma de suas principais qualidades seja a de reduzir complexidades conceituais em temas diários, palpáveis, demasiadamente humanos. O texto é de uma claridade infalível e pode-se sentir, ao ascultá-lo com cuidado, um tanto daquela tristeza, daquela angústia, daquele sofrimento curto tão característico da lusitânia: o fado que se observa em cada olhar português.
Mando dois de uma só tacada. Não deixem de ler. Para quem se interessar, inseri o link para o site aí ao lado.
A Sagrada Família
Já tudo foi dito e escrito sobre o último livro de Reinaldo Azevedo, "O País dos Petralhas" (Record, 337 págs.). Uma feroz e divertida denúncia da política brasileira e do "establishment" petista atualmente em cena? Sem dúvida.
Mas existe uma passagem do livro que não é para rir. É para ler, meditar, talvez chorar. Acontece a propósito de nada: Reinaldo Azevedo prepara-se para sair de férias e, em momento de trégua, partilha com os leitores do blog a memória feliz de um livro aparentemente menor, "A Morte de um Apicultor", do sueco Lars Gustafsson.
Quem leu Gustafsson? Curiosamente, eu li. E perguntei-me, durante anos, se seria a única criatura do mundo a lembrar com ternura desse livro imensamente melancólico e belo. É a história de um velho, condenado por doença mortal, que vai anotando, em vários cadernos, os pensamentos, as rotinas e até as dores físicas de uma vida a caminho do fim. "Recomeçamos. Não nos rendemos", escreve o velho, vezes sem conta. E, com essa frase, termina a sua odisséia, momentos antes de a ambulância vir buscá-lo.
Reinaldo Azevedo evoca "A Morte de um Apicultor" para dizer o que de mais profundo alguém pode dizer sobre a função de uma democracia civilizada: ela existe, precisamente, para que possamos tratar das nossas vidas banais. Para que possamos ser como o velho apicultor do livro: simplesmente interessados nas nossas rotinas, nas nossas famílias, nas nossas memórias privadas. E conclui o colunista: o que é imperdoável na política brasileira não é apenas a corrupção, a boçalidade e a ignorância dos próceres. O que é imperdoável é a existência de uma elite política moralmente miserável que impede esse espaço pessoal e intransmissível onde podemos ser "senhores das nossas lendas" e alheios ao ruído do mundo. No Brasil, tudo é ruído. E no resto do mundo?
No resto do mundo, talvez não. A tese pertence a Luc Ferry e ninguém diria que Luc Ferry e Reinaldo Azevedo dariam um bom par. Mas as aparências enganam. Em "Famílias, Amo Vocês", um breve ensaio publicado no Brasil pela Objetiva, Luc Ferry retoma a observação pessoal de Reinaldo e elabora uma questão filosófica fundamental: nos tempos que passam, seremos capazes de nos sacrificar por algo ou por alguém? Ao olharmos para o brilhante século 20 e para o longo cortejo de matanças em que a centúria foi pródiga, encontramos milhões de seres humanos que marcharam e mataram em nome de puras abstrações. A Nação. O Partido. O Progresso. A Raça. O Império. O baile terminou em chamas e, hoje, no meio das cinzas, alguns zelotes ideologicamente nostálgicos lamentam o "recolhimento individualista" das nossas sociedades "burguesas" e clamam pelo inevitável, e tantas vezes sanguinário, regresso da "imaginação ao poder".
A resposta de Luc Ferry é a oposta: devemos festejar o recuo das grandes causas; e devemos, sobretudo, celebrar as pequenas. Devemos celebrar os nossos familiares, os nossos amigos. A nossa tribo. O nosso "pequeno pelotão", como dizia Burke no século 18. São eles as causas por que vale a pena lutar. São eles que constituem o princípio e o fim das nossas "transcendências".
Nas palavras do filósofo francês, houve uma "divinização do humano" ou, se preferirem, uma "transcendência na imanência" que leva o Homem ocidental a apenas "sair de si mesmo" para participar no destino daqueles que lhe estão mais próximos. As nossas utopias são pessoais, não coletivas; e esse recuo é prova da nossa maturidade política e de uma certa decência moral.
Ao longo da história, as famílias sempre estiveram ao serviço da política e foram, por vezes, estilhaçadas por ela? É hora de virar o disco: uma sociedade política civilizada deve servir as famílias; deve permitir que estas possam cultivar as suas virtudes sem a intervenção e os constantes abusos do Estado.
E o Brasil será essa sociedade política civilizada no dia em que o ruído do mundo der lugar ao silêncio dos lares. No dia em que for possível, como escreve Reinaldo Azevedo, ter uma alma, cultivar intimidades, guardar as pequenas coisas ridículas, sem que a República conspire com suas sujidades e violências. Será esse o dia em que o famoso dilema de Camus deixará de fazer sentido: a justiça ou a minha mãe?
Obviamente, a mãe.
Porque, como diria um velho apicultor sueco, nós nunca nos rendemos perante o que nos é sagrado. Recomeçamos.
_____________________________________________________________________________
É a política, estúpido!
Vejam só como eu sou ingênuo: uns tempos atrás, em Nova York, acordei pelas dez da manhã, saí para a rua e encontrei dezenas e dezenas de jornalistas à minha espera. Eu, pelo menos, acreditava que sim. E acreditava mais: num acesso de megalomania, julguei que a Academia Sueca resolvera reconhecer, pela primeira vez na sua história, a crônica como gênero literário digno de um Nobel.
Puro engano. Olhando em volta, descobri que o meu hotel ficava ao lado da sede da Lehman Brothers. Ali, a dois passos da minha cama, Wall Street entrava pelo buraco. Limitei-me a sorrir e, levemente ressacado, marchei para a Starbucks mais próxima, em busca da cafeína redentora.
Por que motivo sorria eu?
Não pretendo abismar os leitores desta Folha com meus conhecimentos econômicos, aliás primitivos. Mas posso confessar, de alma aberta, que a presente crise financeira estava escrita nas estrelas!
Eu sei que os leitores estão cansados da crise e não estão dispostos a ler mais uma análise sobre ela. O vocabulário é esotérico ("leverage", "toxic debt", "shorting") e o caos geral dos mercados tem reflexo direto na cabeça histérica dos comentadores.
Mas é importante, no meio do nevoeiro, começar por dizer que a crise financeira atual não é, apenas, uma crise financeira. É também uma crise política, que nasceu diretamente de uma concepção igualitária de sociedade que só podia terminar pessimamente.
Essa concepção nasceu no seio de várias administrações americanas que, nos últimos anos, movidas por noções aberrantes de "igualdade" social, entendiam ser possível operar o milagre da multiplicação do consumo.
Comprar casa, por exemplo, não era o resultado de anos de trabalho, poupança e investimento esse trio que, infelizmente, não está ao alcance de todos. Comprar casa era um direito e, mais, um dever. E como cumprir esse dever, que permitia, ainda por cima, fazer de cada investimento um novo negócio para um novo investimento?
Ninguém tem recursos ilimitados; mas houve, pelos vistos, empréstimos ilimitados: bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a privados. Quando os empréstimos começaram a não ser pagos (inevitável); e quando o mercado imobiliário, depois da euforia, começou a derreter (idem), o mundo acordou para a evidência de que a única coisa que começava a faltar no sistema era, tão simplesmente, dinheiro.
Não foi a ganância de Wall Street que pariu a crise presente. Foi a ganância de toda a gente: governos, bancos, pessoas.
A euforia terminou em depressão e hoje, com a economia mundial à beira do abismo, talvez só um plano global de intervenção pública na banca possa evitar o descalabro. Um plano de emergência que, como todas as emergências, deve ser forte e temporário.
Mas seria um erro passar pelo momento atual sem aprender as suas lições. Quais? Dos governos, espera-se que aprendam como é perigoso e abusivo projetar construções ideológicas equitativas no funcionamento impessoal do mercado. Das pessoas, espera-se que relembrem o que têm e o que podem gastar, esse cálculo mínimo que é a base de qualquer economia doméstica. E, da banca, espera-se apenas que o velho equilíbrio entre prudência e risco possa regressar. De preferência, sem as pressões de cima ou as ilusões de baixo.
Uma receita básica? Precisamente. Mas, às vezes, é necessário começar pelo básico.
Mando dois de uma só tacada. Não deixem de ler. Para quem se interessar, inseri o link para o site aí ao lado.
A Sagrada Família
Já tudo foi dito e escrito sobre o último livro de Reinaldo Azevedo, "O País dos Petralhas" (Record, 337 págs.). Uma feroz e divertida denúncia da política brasileira e do "establishment" petista atualmente em cena? Sem dúvida.
Mas existe uma passagem do livro que não é para rir. É para ler, meditar, talvez chorar. Acontece a propósito de nada: Reinaldo Azevedo prepara-se para sair de férias e, em momento de trégua, partilha com os leitores do blog a memória feliz de um livro aparentemente menor, "A Morte de um Apicultor", do sueco Lars Gustafsson.
Quem leu Gustafsson? Curiosamente, eu li. E perguntei-me, durante anos, se seria a única criatura do mundo a lembrar com ternura desse livro imensamente melancólico e belo. É a história de um velho, condenado por doença mortal, que vai anotando, em vários cadernos, os pensamentos, as rotinas e até as dores físicas de uma vida a caminho do fim. "Recomeçamos. Não nos rendemos", escreve o velho, vezes sem conta. E, com essa frase, termina a sua odisséia, momentos antes de a ambulância vir buscá-lo.
Reinaldo Azevedo evoca "A Morte de um Apicultor" para dizer o que de mais profundo alguém pode dizer sobre a função de uma democracia civilizada: ela existe, precisamente, para que possamos tratar das nossas vidas banais. Para que possamos ser como o velho apicultor do livro: simplesmente interessados nas nossas rotinas, nas nossas famílias, nas nossas memórias privadas. E conclui o colunista: o que é imperdoável na política brasileira não é apenas a corrupção, a boçalidade e a ignorância dos próceres. O que é imperdoável é a existência de uma elite política moralmente miserável que impede esse espaço pessoal e intransmissível onde podemos ser "senhores das nossas lendas" e alheios ao ruído do mundo. No Brasil, tudo é ruído. E no resto do mundo?
No resto do mundo, talvez não. A tese pertence a Luc Ferry e ninguém diria que Luc Ferry e Reinaldo Azevedo dariam um bom par. Mas as aparências enganam. Em "Famílias, Amo Vocês", um breve ensaio publicado no Brasil pela Objetiva, Luc Ferry retoma a observação pessoal de Reinaldo e elabora uma questão filosófica fundamental: nos tempos que passam, seremos capazes de nos sacrificar por algo ou por alguém? Ao olharmos para o brilhante século 20 e para o longo cortejo de matanças em que a centúria foi pródiga, encontramos milhões de seres humanos que marcharam e mataram em nome de puras abstrações. A Nação. O Partido. O Progresso. A Raça. O Império. O baile terminou em chamas e, hoje, no meio das cinzas, alguns zelotes ideologicamente nostálgicos lamentam o "recolhimento individualista" das nossas sociedades "burguesas" e clamam pelo inevitável, e tantas vezes sanguinário, regresso da "imaginação ao poder".
A resposta de Luc Ferry é a oposta: devemos festejar o recuo das grandes causas; e devemos, sobretudo, celebrar as pequenas. Devemos celebrar os nossos familiares, os nossos amigos. A nossa tribo. O nosso "pequeno pelotão", como dizia Burke no século 18. São eles as causas por que vale a pena lutar. São eles que constituem o princípio e o fim das nossas "transcendências".
Nas palavras do filósofo francês, houve uma "divinização do humano" ou, se preferirem, uma "transcendência na imanência" que leva o Homem ocidental a apenas "sair de si mesmo" para participar no destino daqueles que lhe estão mais próximos. As nossas utopias são pessoais, não coletivas; e esse recuo é prova da nossa maturidade política e de uma certa decência moral.
Ao longo da história, as famílias sempre estiveram ao serviço da política e foram, por vezes, estilhaçadas por ela? É hora de virar o disco: uma sociedade política civilizada deve servir as famílias; deve permitir que estas possam cultivar as suas virtudes sem a intervenção e os constantes abusos do Estado.
E o Brasil será essa sociedade política civilizada no dia em que o ruído do mundo der lugar ao silêncio dos lares. No dia em que for possível, como escreve Reinaldo Azevedo, ter uma alma, cultivar intimidades, guardar as pequenas coisas ridículas, sem que a República conspire com suas sujidades e violências. Será esse o dia em que o famoso dilema de Camus deixará de fazer sentido: a justiça ou a minha mãe?
Obviamente, a mãe.
Porque, como diria um velho apicultor sueco, nós nunca nos rendemos perante o que nos é sagrado. Recomeçamos.
_____________________________________________________________________________
É a política, estúpido!
Vejam só como eu sou ingênuo: uns tempos atrás, em Nova York, acordei pelas dez da manhã, saí para a rua e encontrei dezenas e dezenas de jornalistas à minha espera. Eu, pelo menos, acreditava que sim. E acreditava mais: num acesso de megalomania, julguei que a Academia Sueca resolvera reconhecer, pela primeira vez na sua história, a crônica como gênero literário digno de um Nobel.
Puro engano. Olhando em volta, descobri que o meu hotel ficava ao lado da sede da Lehman Brothers. Ali, a dois passos da minha cama, Wall Street entrava pelo buraco. Limitei-me a sorrir e, levemente ressacado, marchei para a Starbucks mais próxima, em busca da cafeína redentora.
Por que motivo sorria eu?
Não pretendo abismar os leitores desta Folha com meus conhecimentos econômicos, aliás primitivos. Mas posso confessar, de alma aberta, que a presente crise financeira estava escrita nas estrelas!
Eu sei que os leitores estão cansados da crise e não estão dispostos a ler mais uma análise sobre ela. O vocabulário é esotérico ("leverage", "toxic debt", "shorting") e o caos geral dos mercados tem reflexo direto na cabeça histérica dos comentadores.
Mas é importante, no meio do nevoeiro, começar por dizer que a crise financeira atual não é, apenas, uma crise financeira. É também uma crise política, que nasceu diretamente de uma concepção igualitária de sociedade que só podia terminar pessimamente.
Essa concepção nasceu no seio de várias administrações americanas que, nos últimos anos, movidas por noções aberrantes de "igualdade" social, entendiam ser possível operar o milagre da multiplicação do consumo.
Comprar casa, por exemplo, não era o resultado de anos de trabalho, poupança e investimento esse trio que, infelizmente, não está ao alcance de todos. Comprar casa era um direito e, mais, um dever. E como cumprir esse dever, que permitia, ainda por cima, fazer de cada investimento um novo negócio para um novo investimento?
Ninguém tem recursos ilimitados; mas houve, pelos vistos, empréstimos ilimitados: bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a privados. Quando os empréstimos começaram a não ser pagos (inevitável); e quando o mercado imobiliário, depois da euforia, começou a derreter (idem), o mundo acordou para a evidência de que a única coisa que começava a faltar no sistema era, tão simplesmente, dinheiro.
Não foi a ganância de Wall Street que pariu a crise presente. Foi a ganância de toda a gente: governos, bancos, pessoas.
A euforia terminou em depressão e hoje, com a economia mundial à beira do abismo, talvez só um plano global de intervenção pública na banca possa evitar o descalabro. Um plano de emergência que, como todas as emergências, deve ser forte e temporário.
Mas seria um erro passar pelo momento atual sem aprender as suas lições. Quais? Dos governos, espera-se que aprendam como é perigoso e abusivo projetar construções ideológicas equitativas no funcionamento impessoal do mercado. Das pessoas, espera-se que relembrem o que têm e o que podem gastar, esse cálculo mínimo que é a base de qualquer economia doméstica. E, da banca, espera-se apenas que o velho equilíbrio entre prudência e risco possa regressar. De preferência, sem as pressões de cima ou as ilusões de baixo.
Uma receita básica? Precisamente. Mas, às vezes, é necessário começar pelo básico.
31.10.08
O nome da(s) coisa(s)
Se a gente se atentar, ainda que pouco, a respeito do tamanho dos termos dos quais nos utilizamos para nomear as coisas, vai perceber que um padrão será encontrado. E o padrão é o seguinte: as coisas mais importantes para um ser humano são nomeadas por termos curtos, pequenos, simples. Exemplos: pai, mãe, vó, sol, água, pão, mão, pé. Palavras fáceis de se dizer e essenciais à vida.
Quando as coisas começam a se distanciar desta essencialidade tornando-se, por assim dizer, um tanto quanto supérfluas, os nomes começam a crescer e se complicar. Talvez isso explique o fato de eu jamais ter ido a um otorrinolaringologista.
Mas, enfim: a questão que me levou a escrever este post e a começar por esta digressão torta diz respeito ao tamanho e à estranheza do nome deste blog.
Deciopivanianas seria, segundo o padrão explicado aí em cima, um termo para designar uma existência das mais desimportantes. Ainda que isto possa ser verdade, me nego a acreditar que as coisas se passem desta maneira.
Em conversa com uma amiga na semana passada, que reclamava que não nunca se lembrava do nome do blog porque é complicado, estranho, encontrei a saída para reverter a situação. Depois de explicar de onde tinha saído o nome, ela me disse: Ah, agora ficou mais fácil.
Pois então, vamos facilitar as coisas pra todo mundo.
O termo usado para designar este blog foi criado a partir da junção do nome de dois de meus poetas favoritos.
1 - O primeiro deles, Décio Pignatari:
Que tira da cachola coisas assim:
2 - Já o segundo é Roberto Piva:
Que:
Notem uma coisa: Décio, Piva. Nomes pequenos que marcam em folhas coisas absurdas como estas que eu mostrei. Juntando os dois e formando um palavrão, sai este blog que dá pra quebrar o galho.
Agora melhorou?
Quando as coisas começam a se distanciar desta essencialidade tornando-se, por assim dizer, um tanto quanto supérfluas, os nomes começam a crescer e se complicar. Talvez isso explique o fato de eu jamais ter ido a um otorrinolaringologista.
Mas, enfim: a questão que me levou a escrever este post e a começar por esta digressão torta diz respeito ao tamanho e à estranheza do nome deste blog.
Deciopivanianas seria, segundo o padrão explicado aí em cima, um termo para designar uma existência das mais desimportantes. Ainda que isto possa ser verdade, me nego a acreditar que as coisas se passem desta maneira.
Em conversa com uma amiga na semana passada, que reclamava que não nunca se lembrava do nome do blog porque é complicado, estranho, encontrei a saída para reverter a situação. Depois de explicar de onde tinha saído o nome, ela me disse: Ah, agora ficou mais fácil.
Pois então, vamos facilitar as coisas pra todo mundo.
O termo usado para designar este blog foi criado a partir da junção do nome de dois de meus poetas favoritos.
1 - O primeiro deles, Décio Pignatari:
Que tira da cachola coisas assim:
2 - Já o segundo é Roberto Piva:
Que:
Notem uma coisa: Décio, Piva. Nomes pequenos que marcam em folhas coisas absurdas como estas que eu mostrei. Juntando os dois e formando um palavrão, sai este blog que dá pra quebrar o galho.
Agora melhorou?
25.10.08
A rasidão
A rasidão não é algo que aparece de surpresa. Assim como um balde furado se esvazia, uma piscina se esvazia, uma latrina se esvazia, você também é capaz de esvaziar-se. E mais: assim como os objetos citados, você não tem a mínima consciência de estar a perder algo. A sua, ou a nossa diferença para com os baldes e as piscinas e as latrinas se dá apenas quando a coisa já se perdeu, esvaiu-se, morteceu.
Quando este ponto é chegado, a renitência das coisas diárias força o surgimento de uma consciência que é trazida de fora. O que se exige não encontra onde nadar, se angustia e se bate, bate em você, que sufoca e só então repara.
Só poder reproduzir automatismos é um dos primeiros sinaisintomas da rasidão. Ele não dói, não pode ser percebido comportamentalmente e, portanto, não exige remédios ou terapias.
Já o segundo sinalsintoma da rasidão machuca bastante, muito. É quando ela se torna reflexiva, ou seja, você reconhece com todos os pregos, arames farpados, agulhas, alfinetes e lanças que são inerentes ao reconhecer, que perdeu a manivela do ímpeto.
E o que sou eu sem alavanca? Boçal, é mais do que provável.
Um rato.
Uma semilatrina, um semibalde, uma semipiscina.
A rasidão impede, dentre todas as outras isquemias, que se articule o suficiente sobre ela.
Quando este ponto é chegado, a renitência das coisas diárias força o surgimento de uma consciência que é trazida de fora. O que se exige não encontra onde nadar, se angustia e se bate, bate em você, que sufoca e só então repara.
Só poder reproduzir automatismos é um dos primeiros sinaisintomas da rasidão. Ele não dói, não pode ser percebido comportamentalmente e, portanto, não exige remédios ou terapias.
Já o segundo sinalsintoma da rasidão machuca bastante, muito. É quando ela se torna reflexiva, ou seja, você reconhece com todos os pregos, arames farpados, agulhas, alfinetes e lanças que são inerentes ao reconhecer, que perdeu a manivela do ímpeto.
E o que sou eu sem alavanca? Boçal, é mais do que provável.
Um rato.
Uma semilatrina, um semibalde, uma semipiscina.
A rasidão impede, dentre todas as outras isquemias, que se articule o suficiente sobre ela.
24.10.08
My sweet Lord, with every mistake we must surely be learning: um post de e para beatlemaníaco
Achei um negócio lindo, maravilhoso, de chorar, no Youtube: é o show feito em homenagem ao George Harrison, logo depois que ele morreu.
Fora as coisas muito legais em termos sonoros: trinta e oito guitarras, três baterias tocando ao mesmo tempo e tudo o mais que pode ser visto aí embaixo, há algo por demais interessante no quesito regra três: a entrada de Billy Preston nos teclados e de Eric Clapton na guitarra principal.
Para quem não é beatlemaníaco, uma explicação: tanto Billy Preston quanto Eric Clapton foram os únicos sujeitos convidados a participar de gravações com o fab-four. Clapton, no Álbum Branco (o meu preferido), foi responsável pela guitarra em While my guitar gently weeps. Já Billy Preston fez uma boa quantidade de faixas em Let it be.
Como Eric pode ser considerado o quinto beatle e Billy o sexto, pode-se dizer, com as óbvias ressalvas, que o time, nos vídeos aí embaixo, chega a estar quase completo. Pena que Billy Preston tenha morrido no ano passado, deixando uma baita lacuna.
De qualquer maneira, preparem os lenços. O vocal de Preston está imbatível em My sweet Lord. A guitarra de Clapton... bem, acho que não preciso dizer algo que seja. Ringo, como sempre, uma figura. Já Paul mantém o seu eterno modo talentoso de ser.
Beatlemaníacos, uni-vos! E os que não são, venham também. Vale a pena: eu agarântio!!!
P.S - Ah: o sujeito que está ali no palco, com um violão quase maior do que ele, não é nenhuma aparição. É o George filho, Dhani.
Fora as coisas muito legais em termos sonoros: trinta e oito guitarras, três baterias tocando ao mesmo tempo e tudo o mais que pode ser visto aí embaixo, há algo por demais interessante no quesito regra três: a entrada de Billy Preston nos teclados e de Eric Clapton na guitarra principal.
Para quem não é beatlemaníaco, uma explicação: tanto Billy Preston quanto Eric Clapton foram os únicos sujeitos convidados a participar de gravações com o fab-four. Clapton, no Álbum Branco (o meu preferido), foi responsável pela guitarra em While my guitar gently weeps. Já Billy Preston fez uma boa quantidade de faixas em Let it be.
Como Eric pode ser considerado o quinto beatle e Billy o sexto, pode-se dizer, com as óbvias ressalvas, que o time, nos vídeos aí embaixo, chega a estar quase completo. Pena que Billy Preston tenha morrido no ano passado, deixando uma baita lacuna.
De qualquer maneira, preparem os lenços. O vocal de Preston está imbatível em My sweet Lord. A guitarra de Clapton... bem, acho que não preciso dizer algo que seja. Ringo, como sempre, uma figura. Já Paul mantém o seu eterno modo talentoso de ser.
Beatlemaníacos, uni-vos! E os que não são, venham também. Vale a pena: eu agarântio!!!
P.S - Ah: o sujeito que está ali no palco, com um violão quase maior do que ele, não é nenhuma aparição. É o George filho, Dhani.
17.10.08
Há dez anos. Parabéns João!
- Mas por que você quer depilar as pernas justo hoje? Tá frio, chovendo, não vamos sair de casa...
- Eu quero, ué. Será que você pode me ajudar? É óbvio que não consigo com este barrigão.
- Tudo bem, tudo bem. Vai entrando no banho.
- Você acha que está ficando bom?
- Eu sei lá. Não consigo enxergar também. Ao menos não tá doendo... ou seja, você não está me cortando.
- Pois é. Agora vira, vou fazer a parte de trás. Meus joelhos estão me matando. Que situação, viu...
- Parece velho...
- Flávia!?!?
- Oi.
- Tem um negócio pendurado entre as suas pernas.
- O que? Como assim?
- Sei lá. Parece uma clara de ovo gigantesca.
- Pára de brincar.
- É sério.
- Será que vai nascer?
- Pois é... eu acho que sim.
- Ai caramba, me ajuda!
- Você está sentindo alguma coisa?
- Não.
- Vou me trocar. Güenta aí.
- Hã? E essa coisa? Precisa limpar.
- Pois, é: precisar, precisa. Mas eu é que não ponho a mão nisso. Não sei se vai doer. Nunca ouvi falar disso antes. É seu, faz parte de você (rindo) você dá um jeito nisso.
- Estamos sem carro. Vou encontrar um vizinho. Bete: o João tá nascendo e estamos sem carro - daria pra vocês levarem a gente pro hospital? Flávia, a Bete e o Chico vêm vindo.
- Tá. Mas não tá doendo. Só estou nervosa.
- Fica calma. Já peguei as coisas. Vamos lá.
- Nossa, Chico: numa van?
- Pois é, tem que ser confortável.
- Já tá todo mundo na van? Vambora...
- Meu Deus, o Chico quase entrou com a van no hospital!
- Assim fica mais fácil, ela anda menos.
- Chico, você é louco.
- E então?
- Olha, aquilo era somente uma espécie de tampão. É algo gelatinoso que fica na base da placenta.
- E?
- Não significa que vai nascer agora. Monitoramos e está tudo normal. Podem ficar tranqüilos.
- Vamos pra casa? Você está se sentindo bem?
- Sim. Vamos.
- Caramba Flávia, mas que pratinho de estrogonofe, hein? Você vai conseguir se deitar depois disso tudo?
- Tô morrendo de fome. Tá uma delícia. E olha só o seu prato, tá maior que o meu!
- Já escovei os dentes: vamos nos deitar?
- Vamos.
- Está confortável? Posso apagar a luz?
- Pode.
- Boa noite. Até amanhã...
- Que barulho foi esse?
- Você também ouviu?
- Sim: parecia uma bexiga estourando... fez puf...
- Foi. Um baita estouro. Foi dentro da minha barriga.
- Hã?
- Tô sentindo alguma coisa vazando...
- Foi a bolsa.
- Foi a bolsa.
- Tá doendo muito.
- Calma, são as contrações. Eu coloco a roupa em você. Este vestido é mais fácil, né?
- Não vou sair daqui, tá doendo muito!
- Flávia, como é que você não vai sair daqui? Vai ter a criança aqui?
- Não vou sair, tá doendo muito!
- Tá bom Flávia, tá bom...
- Boa sorte hein! Fica calma...
- Oi Lêda.
- Cadê a Flávia?
- Acabou de passar numa maca. Foi pra lá. Disseram que já vai nascer.
- Ai meus Deus!
- Oi mãe.
- E aí?
- Nada ainda.
- Você tá bem? Tá com fome? São seis da manhã e acho que você ainda não comeu.
- Pois é. Vou enfrentar a chuva e comprar alguma coisa numa lanchonete logo ali.
- Vai lá.
- Já volto.
- O senhor é o pai do João?
- Sim.
- Seu filho acabou de nascer.
- Sério? E aí: foi tudo bem? Ele está bem? Ela está bem?
- Estão sim: foi tudo tranqüilo.
- Ouviram? Pelamor né: chorando abraçadas? Vou ter que contar pra tudo mundo qual foi o "Momento Piegas" da história...
- Vocês já podem subir pra ver o bebê. Mas são duas pessoas por vez.
- Quem de vocês duas vai comigo?
- Vai você primeiro, Lêda.
- Tá bom.
- Ai, caramba... olha ele aí.. eu não acredito... como é que estão as coisas?
- Comigo tá tudo bem. Com dor. Querendo sair daqui o mais rápido possível. Mas tudo bem. Ele tá ótimo. E lindo né? Já mamou, não teve problemas...
- Olha a mãozinha...
- Mãe, você não vem ver seu neto: parece louca... fica aí só tirando foto.
- Tô indo. É que se chega alguém talvez não deixe fotografar...
- Ai meu Deus! Oi João...
- Eu vou descer porque sua mãe deve estar ansiosa. Você fica aí.
- Ué, Emílio? E minha mãe?
- Ela disse que quer estar perto da sua avó quando ela for ver. Tem medo que ela passe mal. Aí pediu pra eu subir.
- Olha ele aí, rapaz...
- Aha...
- Está tudo bem mesmo? Há previsão pra saída?
- Amanhã. Acho que amanhã já saímos.
- Vamos Emilião?
- Vamos lá, cara. Parabéns...
- Fiquem direitinho, ok?
- Pôxa, como você está se sentindo?
- Não sei: sinceramente não sei. É algo que vai ser daqui pra frente. Não adianta dizer que quando nasce você já ama loucamente. Você sequer conviveu! Mas é maravilhoso, você não tem idéia. O João nasceu cara, o João nasceu!
_______________________________________________________________________
- Tá com sono, pai?
- Mais ou menos, por quê?
- Eu queria usar aí.
- Usa o do Pedro... eu já tô terminando... escrevendo uma coisa pro seu aniversário.
- Tá...
- E agora, tá com sono agora João?
- Tô.
- Vamos?
- Vamos lá...
- Vou desligar aqui então...
- Eu quero, ué. Será que você pode me ajudar? É óbvio que não consigo com este barrigão.
- Tudo bem, tudo bem. Vai entrando no banho.
- Você acha que está ficando bom?
- Eu sei lá. Não consigo enxergar também. Ao menos não tá doendo... ou seja, você não está me cortando.
- Pois é. Agora vira, vou fazer a parte de trás. Meus joelhos estão me matando. Que situação, viu...
- Parece velho...
- Flávia!?!?
- Oi.
- Tem um negócio pendurado entre as suas pernas.
- O que? Como assim?
- Sei lá. Parece uma clara de ovo gigantesca.
- Pára de brincar.
- É sério.
- Será que vai nascer?
- Pois é... eu acho que sim.
- Ai caramba, me ajuda!
- Você está sentindo alguma coisa?
- Não.
- Vou me trocar. Güenta aí.
- Hã? E essa coisa? Precisa limpar.
- Pois, é: precisar, precisa. Mas eu é que não ponho a mão nisso. Não sei se vai doer. Nunca ouvi falar disso antes. É seu, faz parte de você (rindo) você dá um jeito nisso.
- Estamos sem carro. Vou encontrar um vizinho. Bete: o João tá nascendo e estamos sem carro - daria pra vocês levarem a gente pro hospital? Flávia, a Bete e o Chico vêm vindo.
- Tá. Mas não tá doendo. Só estou nervosa.
- Fica calma. Já peguei as coisas. Vamos lá.
- Nossa, Chico: numa van?
- Pois é, tem que ser confortável.
- Já tá todo mundo na van? Vambora...
- Meu Deus, o Chico quase entrou com a van no hospital!
- Assim fica mais fácil, ela anda menos.
- Chico, você é louco.
- E então?
- Olha, aquilo era somente uma espécie de tampão. É algo gelatinoso que fica na base da placenta.
- E?
- Não significa que vai nascer agora. Monitoramos e está tudo normal. Podem ficar tranqüilos.
- Vamos pra casa? Você está se sentindo bem?
- Sim. Vamos.
- Caramba Flávia, mas que pratinho de estrogonofe, hein? Você vai conseguir se deitar depois disso tudo?
- Tô morrendo de fome. Tá uma delícia. E olha só o seu prato, tá maior que o meu!
- Já escovei os dentes: vamos nos deitar?
- Vamos.
- Está confortável? Posso apagar a luz?
- Pode.
- Boa noite. Até amanhã...
- Que barulho foi esse?
- Você também ouviu?
- Sim: parecia uma bexiga estourando... fez puf...
- Foi. Um baita estouro. Foi dentro da minha barriga.
- Hã?
- Tô sentindo alguma coisa vazando...
- Foi a bolsa.
- Foi a bolsa.
- Tá doendo muito.
- Calma, são as contrações. Eu coloco a roupa em você. Este vestido é mais fácil, né?
- Não vou sair daqui, tá doendo muito!
- Flávia, como é que você não vai sair daqui? Vai ter a criança aqui?
- Não vou sair, tá doendo muito!
- Tá bom Flávia, tá bom...
- Boa sorte hein! Fica calma...
- Oi Lêda.
- Cadê a Flávia?
- Acabou de passar numa maca. Foi pra lá. Disseram que já vai nascer.
- Ai meus Deus!
- Oi mãe.
- E aí?
- Nada ainda.
- Você tá bem? Tá com fome? São seis da manhã e acho que você ainda não comeu.
- Pois é. Vou enfrentar a chuva e comprar alguma coisa numa lanchonete logo ali.
- Vai lá.
- Já volto.
- O senhor é o pai do João?
- Sim.
- Seu filho acabou de nascer.
- Sério? E aí: foi tudo bem? Ele está bem? Ela está bem?
- Estão sim: foi tudo tranqüilo.
- Ouviram? Pelamor né: chorando abraçadas? Vou ter que contar pra tudo mundo qual foi o "Momento Piegas" da história...
- Vocês já podem subir pra ver o bebê. Mas são duas pessoas por vez.
- Quem de vocês duas vai comigo?
- Vai você primeiro, Lêda.
- Tá bom.
- Ai, caramba... olha ele aí.. eu não acredito... como é que estão as coisas?
- Comigo tá tudo bem. Com dor. Querendo sair daqui o mais rápido possível. Mas tudo bem. Ele tá ótimo. E lindo né? Já mamou, não teve problemas...
- Olha a mãozinha...
- Mãe, você não vem ver seu neto: parece louca... fica aí só tirando foto.
- Tô indo. É que se chega alguém talvez não deixe fotografar...
- Ai meu Deus! Oi João...
- Eu vou descer porque sua mãe deve estar ansiosa. Você fica aí.
- Ué, Emílio? E minha mãe?
- Ela disse que quer estar perto da sua avó quando ela for ver. Tem medo que ela passe mal. Aí pediu pra eu subir.
- Olha ele aí, rapaz...
- Aha...
- Está tudo bem mesmo? Há previsão pra saída?
- Amanhã. Acho que amanhã já saímos.
- Vamos Emilião?
- Vamos lá, cara. Parabéns...
- Fiquem direitinho, ok?
- Pôxa, como você está se sentindo?
- Não sei: sinceramente não sei. É algo que vai ser daqui pra frente. Não adianta dizer que quando nasce você já ama loucamente. Você sequer conviveu! Mas é maravilhoso, você não tem idéia. O João nasceu cara, o João nasceu!
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- Tá com sono, pai?
- Mais ou menos, por quê?
- Eu queria usar aí.
- Usa o do Pedro... eu já tô terminando... escrevendo uma coisa pro seu aniversário.
- Tá...
- E agora, tá com sono agora João?
- Tô.
- Vamos?
- Vamos lá...
- Vou desligar aqui então...
11.10.08
Platão, Juvenal, e certas estranhices no Jornal Regional 1a Edição
Lá pelo século I A.C (quanta exatidão, meu Deus!) o poeta Juvenal, em suas Sátiras, lançou o seguinte dilema: Sed quis custodiet ipsos custodes? Ou, em nossa última flor do Lácio (inculta e bela, hehe): Mas quem guardará nossos guardas?
Óbvio que a coisa tem duplo efeito: a questão não é somente quem guardará nossos guardas, mas quem "nos" guardará de nossos guardas.
Pois bem: hoje, no queridíssmo Jornal Regional, uma notícia me chamou mais do que atenção. Policiais federais estavam cobrando propina de um traficante (R$ 200.000,00) e de um dono de loja que, ao que parece, vende muita muamba (o valor aqui não foi revelado). Coisa rotineira, sabemos. Mas a pergunta sempre fica: numa situação dessa, o que se há de fazer? Ou, como já havia preconizado o nosso Capitão Nascimento: os caras vão fazer o que - chamar a polícia?
Chamaram, Capitão Nascimento. Chamaram. É claro que não houve menção sobre como se deu o processo. A informação é só a de que, tanto o traficante quanto o dono da loja, deram parte dos sujeitos. Os três policiais estão afastados, sob investigação, e responderão ao que for apurado (sim: mais provável que nada aconteça).
Agora, o interessante aqui é notar o quanto os bandidos foram, por assim dizer, platônicos em sua ação. Sim: pois a questão colocada por Juvenal acima já havia sido feita, de certa maneira, por Platão, em sua "A República". Lá pelas tantas, numa passagem que eu não sei mais onde fica (muito exato, de novo), Sócrates pergunta, a respeito das funções do Estado e das relações de moralidade entre estas funções, sobre quem deveria intervir se acaso a polícia cometesse crimes. A resposta de Platão é circularmente clara: a polícia mesmo, ora essa!
Não me lembro se depois da resposta Sócrates complicou a coisa (já que ele sempre complicava), e avançou mais na questão: - Mas e se os prejudicados são os foras da lei, e prejudicados justamente pelos que são da lei?
Hummm... acho que ele não esperava por tanto, pobre homem. Acho que ninguém esperava por este lugar onde tudo é muito estranho, e a estranheza é tão, digamos, estranha, que chega a ser engraçada.
Querem outro exemplo? No post seguinte eu darei...
Óbvio que a coisa tem duplo efeito: a questão não é somente quem guardará nossos guardas, mas quem "nos" guardará de nossos guardas.
Pois bem: hoje, no queridíssmo Jornal Regional, uma notícia me chamou mais do que atenção. Policiais federais estavam cobrando propina de um traficante (R$ 200.000,00) e de um dono de loja que, ao que parece, vende muita muamba (o valor aqui não foi revelado). Coisa rotineira, sabemos. Mas a pergunta sempre fica: numa situação dessa, o que se há de fazer? Ou, como já havia preconizado o nosso Capitão Nascimento: os caras vão fazer o que - chamar a polícia?
Chamaram, Capitão Nascimento. Chamaram. É claro que não houve menção sobre como se deu o processo. A informação é só a de que, tanto o traficante quanto o dono da loja, deram parte dos sujeitos. Os três policiais estão afastados, sob investigação, e responderão ao que for apurado (sim: mais provável que nada aconteça).
Agora, o interessante aqui é notar o quanto os bandidos foram, por assim dizer, platônicos em sua ação. Sim: pois a questão colocada por Juvenal acima já havia sido feita, de certa maneira, por Platão, em sua "A República". Lá pelas tantas, numa passagem que eu não sei mais onde fica (muito exato, de novo), Sócrates pergunta, a respeito das funções do Estado e das relações de moralidade entre estas funções, sobre quem deveria intervir se acaso a polícia cometesse crimes. A resposta de Platão é circularmente clara: a polícia mesmo, ora essa!
Não me lembro se depois da resposta Sócrates complicou a coisa (já que ele sempre complicava), e avançou mais na questão: - Mas e se os prejudicados são os foras da lei, e prejudicados justamente pelos que são da lei?
Hummm... acho que ele não esperava por tanto, pobre homem. Acho que ninguém esperava por este lugar onde tudo é muito estranho, e a estranheza é tão, digamos, estranha, que chega a ser engraçada.
Querem outro exemplo? No post seguinte eu darei...
10.10.08
6.10.08
Historieta de amor
Ele amava-a como se
Ela lhe fosse o mundo.
Ela detestava-o na mesma
Proporção (na verdade, talvez gostasse
tão somente de estar livre).
Dizia-lhe sempre até o cansaço:
- Se um dia tu morreres, vou-me
Embora junto contigo.
Certa feita, ao repetir-lhe a frase,
Não teve dúvidas.
Acidente e morte. Ataúde lacrado.
Do homem nenhuma lágrima.
Assim que a noite caiu,
reabriu o túmulo e entrou.
Pagou bem para que alguém
O selasse nova e perfeitamente.
Enquanto ele asfixiava-se e retorcia-se,
Ela observava, liberta e anciosa, as novas
Luzes da cidade que lhe surgia.
O corpo, encontrado alguns dias depois,
Com mãos e pernas abraçando a madeira,
Exibia ainda um discreto sorriso.
Cada um foi feliz ao seu modo.
Out. 93
Ela lhe fosse o mundo.
Ela detestava-o na mesma
Proporção (na verdade, talvez gostasse
tão somente de estar livre).
Dizia-lhe sempre até o cansaço:
- Se um dia tu morreres, vou-me
Embora junto contigo.
Certa feita, ao repetir-lhe a frase,
Não teve dúvidas.
Acidente e morte. Ataúde lacrado.
Do homem nenhuma lágrima.
Assim que a noite caiu,
reabriu o túmulo e entrou.
Pagou bem para que alguém
O selasse nova e perfeitamente.
Enquanto ele asfixiava-se e retorcia-se,
Ela observava, liberta e anciosa, as novas
Luzes da cidade que lhe surgia.
O corpo, encontrado alguns dias depois,
Com mãos e pernas abraçando a madeira,
Exibia ainda um discreto sorriso.
Cada um foi feliz ao seu modo.
Out. 93
4.10.08
O pardal hobbesiano
Sentei-me à mesa com uma garrafa d´água e um salgado na mão. O pardal não demorou-se a aparecer. Pousou bem à minha frente e disparou-me um olhar que me fez compreender facilmente o que se passava: - Tá bom, tá bom... toma aí um pedaço.
Coloquei o naco sobre a mesa. Ele pegou-o rapidamente e foi ao chão. Ali, prendeu-o de maneira agressiva entre o bico e voou. Foi-se embora. Achei tudo muito estranho: era a primeira vez que um pássaro havia se comportado, ao menos na minha frente, como um cão. E mais: parecia que eu conhecia aquele bicho cinza de algum lugar.
É claro que tal acontecimento foi suficiente para gerar algumas digressões, sendo a mais tola delas o fato de achar que ali, naquele momento, eu ou havia ganho um amigo, ou então reencontrado um que já houvera passado ao outro lado e se transformado, sei lá por quais regras transcendentais, num pássaro dos mais comuns.
Estava neste ponto de elaboração das minhas doidices quando o bichinho voltou. E desta vez foi mais interessante, apesar de menos discreto e de me permitir menos delírios. Postado no mesmo lugar de antes, desta feita não olhou: piou (não sei o nome do barulho do pardal, portanto vai piar mesmo). E piou, digamos, nervosamente. Um pio gritado, se é que isso existe e que vocês me entendem. Eu não tive sequer coragem de discutir. Peguei outro naco e pus sobre a mesa. Assim como antes, o folgado (agora já não era amigo novo ou espírito encarnado: era folgado) foi ao chão. Só que, desta vez, deu cabo da massa ali mesmo, partindo em seguida.
Não retornou mais porque, claro, a comida que por fim dividimos acabou logo a seguir.
___________________________________________________________________________________
Conclusões óbvias a partir do fato:
1. Estado de natureza é estado de natureza: não interessa se você está de frente para uma minhoca, um homem armado, um pardal, um crocodilo ou uma criança.
2. Se você se comportar de maneira cordata como esperam que você se comporte, você será dominado, e feito de tonto, seja por uma minhoca, por um homem armado, um pardal, um crocodilo ou uma criança.
3. Eu sou feito de tonto constantemente por minhocas, homens armados e desarmados, pardais e crianças. Estou no aguardo dos crocodilos.
4. Eu ando repetitivo. Meu pensamento é circular e me diz sempre o mesmo. Isto significa que eu digo sempre o mesmo a vocês.
5. Gostaria de conhecer pessoas novas. Por conta disso até conjecturei aceitar a amizade de um pardal, que (in)felizmente logo mostrou que não se passava de um interesseiro.
6. Não quero mais papo com pardais.
Coloquei o naco sobre a mesa. Ele pegou-o rapidamente e foi ao chão. Ali, prendeu-o de maneira agressiva entre o bico e voou. Foi-se embora. Achei tudo muito estranho: era a primeira vez que um pássaro havia se comportado, ao menos na minha frente, como um cão. E mais: parecia que eu conhecia aquele bicho cinza de algum lugar.
É claro que tal acontecimento foi suficiente para gerar algumas digressões, sendo a mais tola delas o fato de achar que ali, naquele momento, eu ou havia ganho um amigo, ou então reencontrado um que já houvera passado ao outro lado e se transformado, sei lá por quais regras transcendentais, num pássaro dos mais comuns.
Estava neste ponto de elaboração das minhas doidices quando o bichinho voltou. E desta vez foi mais interessante, apesar de menos discreto e de me permitir menos delírios. Postado no mesmo lugar de antes, desta feita não olhou: piou (não sei o nome do barulho do pardal, portanto vai piar mesmo). E piou, digamos, nervosamente. Um pio gritado, se é que isso existe e que vocês me entendem. Eu não tive sequer coragem de discutir. Peguei outro naco e pus sobre a mesa. Assim como antes, o folgado (agora já não era amigo novo ou espírito encarnado: era folgado) foi ao chão. Só que, desta vez, deu cabo da massa ali mesmo, partindo em seguida.
Não retornou mais porque, claro, a comida que por fim dividimos acabou logo a seguir.
___________________________________________________________________________________
Conclusões óbvias a partir do fato:
1. Estado de natureza é estado de natureza: não interessa se você está de frente para uma minhoca, um homem armado, um pardal, um crocodilo ou uma criança.
2. Se você se comportar de maneira cordata como esperam que você se comporte, você será dominado, e feito de tonto, seja por uma minhoca, por um homem armado, um pardal, um crocodilo ou uma criança.
3. Eu sou feito de tonto constantemente por minhocas, homens armados e desarmados, pardais e crianças. Estou no aguardo dos crocodilos.
4. Eu ando repetitivo. Meu pensamento é circular e me diz sempre o mesmo. Isto significa que eu digo sempre o mesmo a vocês.
5. Gostaria de conhecer pessoas novas. Por conta disso até conjecturei aceitar a amizade de um pardal, que (in)felizmente logo mostrou que não se passava de um interesseiro.
6. Não quero mais papo com pardais.
2.10.08
De novo, com vocês, Mr. Brian Wilson!!!
Há um site bastante interessante, fruto de uma proposta muito bacana, cujo nome é Black Cab Sessions. Não há muito o que eu deva explicar pois o nome diz tudo.
O convidado desta semana foi Sir Brian Wilson, do Beach Boys. Creio que já disse a vocês que eu acho este homem genial. Pois bem: digo de novo... hehe
Segue aqui o vídeo: tanto para diversão, quanto para uma pequena prova.
O convidado desta semana foi Sir Brian Wilson, do Beach Boys. Creio que já disse a vocês que eu acho este homem genial. Pois bem: digo de novo... hehe
Segue aqui o vídeo: tanto para diversão, quanto para uma pequena prova.
1.10.08
Olha o Romano estressado aí gente... chora cavaco!!!
Hummm... o que será que vem na próxima semana?
Corre pela internet uma carta assinada pela viúva de Paulo Freire. Nela, aproveitando a reportagem da Veja, com pesquisa de opinião sobre o ensino brasileiro, explodem velhos ódios contra mim, mantidos e cultivados até hoje à socapa. O pretexto foi a indicação, pelas jornalistas que assinam a matéria, de meu nome (e de outros) como consultor de suas análises. Sem prestar atenção ao fato (verificável por quem é dono de seus neurônios) de que as responsáveis pelas afirmações da reportagem são as jornalistas, a menção de meu nome como consultor (quem não é tolo, sabe que as assertivas não podem ser imputadas, sem prova, ao consultor, mas a quem usa, literalmente ou não, as informações) levantou o dedo duro contra minha pessoa.
Os ódios são devidos a um artigo que escrevi quando o professor era secretário da prefeita Luiza Erundina. Na ocasião, a secretaria convocou um concurso para provimento de cargo no magistério público municipal. Ao analisar a bibliografia obrigatória do concurso, fui tomado de espanto ao ver que os livros do titular da pasta eram exigidos dos candidatos. Em todo país civilizado, mesmo no Brasil, é evidente o conflito de interesses que tal atitude suscitava. Verifiquemos a consciência de um candidato que não concorda com a teses do secretário: qual a garantia de seu direito subjetivo (e objetivo, garantido constitucionalmente) de livre opinião? Trata-se de um escândalo sem justificativa ética. Indignado com a nítida agressão e uso da ordem pública para promover um conjunto doutrinário particular, escrevi o artigo Ceaucescu no Ibirapuera para a Folha de São Paulo. Como única resposta tive o silêncio ressentido da seita. Nem o titular da secretaria nem os seus áulicos se pronunciaram. Claro, seria confessar o abuso discutir a evidência, provada em Diário Oficial. A partir de então, sempre que pelo Brasil eu topava com os fiéis, percebia a hostilidade traduzida de forma grosseira, insinuações sobre minha ortodoxia de esquerda etc.
Como se tratava de fato passado e como não tinha obtido resposta pública, esqueci o caso e segui na luta contra os abusos da coisa pública, perpetrados por figuras eminentes ou por liliputianas personalidades. Após a redação do artigo, segui outras batalhas pelos direitos humanos e civis e tive o reconhecimento das mais variadas faces da sociedade brasileira. Da distinção a mim outorgada pela Associação Juízes para a Democracia à medalha da B’ nai B’ rith, recebida em 2007 (entre os agraciados nos anos anteriores cito a dra. Zilda Arns), sempre norteei minha vida pública pela defesa da dignidade, da responsabilidade, do apego aos valores éticos e morais. Se firo uma ou outra seita ideológica, política, religiosa, fico triste, mas pago o preço das retaliações.
Na carta mencionada, sou tratado de “filósofo”, assim entre aspas, e “defensor da ética do mercado”. O uso das aspas para desacreditar adversários ou críticos é norma das seitas. Houve na Alemanha uma seita que usou e abusou das aspas. Cito Victor Klemperer, lingüista que sofreu a violência física e espiritual em sua própria terra. Nos escritos do Terceiro Reich, mostra Klemperer, “Chamberlain e Churchil e Roosevelt sempre são apenas ‘estadistas’ em aspas irônicas. Einstein é um ‘pesquisador científico’, Rathenau um ‘escritor alemão’”. Não existe, na Alemanha da época, um só artigo de jornal, ou impressão de um discurso que não use tais aspas irônicas invertidas”. (Victor Klemperer, Language of the Third Reich, LTI Lingua Tertii Imperii, London, Continuum, 2000, p. 73).
Ao atacar, com aspas, minha inscrição na universidade, os redatores da carta usam instrumento retórico pouco recomendável, talvez porque ignorem a sua virulência. Eu os desculpo pela falta de conhecimento. Mas como atacaram minha honra, ao afirmarem que só penso na ética do mercado e não dos valores universais, voltarei ao assunto para informar aos leitores mais detalhes sobre o assunto. Não abri a caixa de Pandora, mas eles, agora, suportem os resultados.
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Unicamp
Corre pela internet uma carta assinada pela viúva de Paulo Freire. Nela, aproveitando a reportagem da Veja, com pesquisa de opinião sobre o ensino brasileiro, explodem velhos ódios contra mim, mantidos e cultivados até hoje à socapa. O pretexto foi a indicação, pelas jornalistas que assinam a matéria, de meu nome (e de outros) como consultor de suas análises. Sem prestar atenção ao fato (verificável por quem é dono de seus neurônios) de que as responsáveis pelas afirmações da reportagem são as jornalistas, a menção de meu nome como consultor (quem não é tolo, sabe que as assertivas não podem ser imputadas, sem prova, ao consultor, mas a quem usa, literalmente ou não, as informações) levantou o dedo duro contra minha pessoa.
Os ódios são devidos a um artigo que escrevi quando o professor era secretário da prefeita Luiza Erundina. Na ocasião, a secretaria convocou um concurso para provimento de cargo no magistério público municipal. Ao analisar a bibliografia obrigatória do concurso, fui tomado de espanto ao ver que os livros do titular da pasta eram exigidos dos candidatos. Em todo país civilizado, mesmo no Brasil, é evidente o conflito de interesses que tal atitude suscitava. Verifiquemos a consciência de um candidato que não concorda com a teses do secretário: qual a garantia de seu direito subjetivo (e objetivo, garantido constitucionalmente) de livre opinião? Trata-se de um escândalo sem justificativa ética. Indignado com a nítida agressão e uso da ordem pública para promover um conjunto doutrinário particular, escrevi o artigo Ceaucescu no Ibirapuera para a Folha de São Paulo. Como única resposta tive o silêncio ressentido da seita. Nem o titular da secretaria nem os seus áulicos se pronunciaram. Claro, seria confessar o abuso discutir a evidência, provada em Diário Oficial. A partir de então, sempre que pelo Brasil eu topava com os fiéis, percebia a hostilidade traduzida de forma grosseira, insinuações sobre minha ortodoxia de esquerda etc.
Como se tratava de fato passado e como não tinha obtido resposta pública, esqueci o caso e segui na luta contra os abusos da coisa pública, perpetrados por figuras eminentes ou por liliputianas personalidades. Após a redação do artigo, segui outras batalhas pelos direitos humanos e civis e tive o reconhecimento das mais variadas faces da sociedade brasileira. Da distinção a mim outorgada pela Associação Juízes para a Democracia à medalha da B’ nai B’ rith, recebida em 2007 (entre os agraciados nos anos anteriores cito a dra. Zilda Arns), sempre norteei minha vida pública pela defesa da dignidade, da responsabilidade, do apego aos valores éticos e morais. Se firo uma ou outra seita ideológica, política, religiosa, fico triste, mas pago o preço das retaliações.
Na carta mencionada, sou tratado de “filósofo”, assim entre aspas, e “defensor da ética do mercado”. O uso das aspas para desacreditar adversários ou críticos é norma das seitas. Houve na Alemanha uma seita que usou e abusou das aspas. Cito Victor Klemperer, lingüista que sofreu a violência física e espiritual em sua própria terra. Nos escritos do Terceiro Reich, mostra Klemperer, “Chamberlain e Churchil e Roosevelt sempre são apenas ‘estadistas’ em aspas irônicas. Einstein é um ‘pesquisador científico’, Rathenau um ‘escritor alemão’”. Não existe, na Alemanha da época, um só artigo de jornal, ou impressão de um discurso que não use tais aspas irônicas invertidas”. (Victor Klemperer, Language of the Third Reich, LTI Lingua Tertii Imperii, London, Continuum, 2000, p. 73).
Ao atacar, com aspas, minha inscrição na universidade, os redatores da carta usam instrumento retórico pouco recomendável, talvez porque ignorem a sua virulência. Eu os desculpo pela falta de conhecimento. Mas como atacaram minha honra, ao afirmarem que só penso na ética do mercado e não dos valores universais, voltarei ao assunto para informar aos leitores mais detalhes sobre o assunto. Não abri a caixa de Pandora, mas eles, agora, suportem os resultados.
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Unicamp
30.9.08
Jésus salva, ainda que por instantes...
Hoje me encontrei, sem querer, com um amigo de longa data.
Conheço o senhor Jésus Sêda desde que tenho, sei lá, uns 5 anos de idade. Como ele tem lá seus 50, devo esclerecer que primeiro ele foi amigo da minha tia Rutinha (fazia parte daquele pessoal do qual falei neste post), e só depois, depois de muito tempo, é que veio a se tornar parceiro meu.
O maior porre da minha vida, aquele no qual eu achei que iria realmente pra cucuia, foi tomado ao lado desta figura pra lá de doce. Show d'Os Nômades, banda legal sob o comando do Jorge Fantini (Sia Santa), e Fabiano se emociona pelo fato de o Cidade e Lírios (bar falecido aqui de Campinas) vender capeta, drink tão apreciado há cerca de 13 anos (estávamos em 2006, acho eu) quando este escriba foi comemorar a sua formatura de ensino médio no tão aclamado Porto Seguro.
Ok, ok. Uma cachaça pra começar o papo, e filosofia pra cá, e teatro pra lá, umas cervejas e oito, oito capetas. Fiquei mal galera, mas fiquei tão mal. Quando acordei, depois de ter certeza de que iria morrer - e desta certeza ter se emendado num bom sono - havia capeta até no teto. É a só a culpa que permite com que limpemos tudo depois, sem nojinho, e sem chiar.
________________________________________________________________________________
Pois então: fui hoje, no começo da tarde, ao colégio onde leciono e o Jésus estava lá, no comando de uma peça infantil.
Bem: agora vamos parar tudo para algumas explicações - fazer um tour de force para tentar deixar claro o que acontece em minha caixa de comando.
Eu estou mal, bem mal. Naquelas fases de pesar tudo e tentar entender onde foi que eu errei. De saber porque é eu tenho 33 anos e não tenho uma casa, estou sem carro, e não ganho um salário minimamente decente. Porque é que eu terminei o ano ganhando 1/5 do que eu ganhava no começo. Porque é que eu não consigo estar acessível às pessoas. Porque é que me tornei um enorme calo gigante. Porque é que eu quero bater em todo mas não consigo soltar sequer um tapinha, sendo que o espancamento de uns três me deixaria mais calmo. Porque é que eu ainda acho que gasto menos energia contemporizando do que chutando traseiros, já que é óbvio que isto é mentira. Porque é que eu ainda acho que as pessoas devam acreditar que eu tenho algum valor se, no fundo no fundo, filosofia não serve lá mesmo pra muito coisa. Porque é que eu não me vendo ideologicamente e ao menos arrumo uns trabalhos legais. Porque é que eu não me torno prático para o lado prático da vida e volto a me tornar sensível para o lado sensível da vida (em termos perceptivos em geral, acho que ainda vou bem).
Voltemos agora à história.
Eu estava mal, muito mal (estava não, estou) e, de repente, quando entrei na quadra da escola - onde seria a coisa - o Jésus estava lá, como eu já havia dito logo acima. E eu fui até ele. E ele me deu um abraço tão bom, mas tão bom, de minutos tão certos, de pressão tão certa, de carinho tão certo que numa linguagem, digamos assim, bíblica, regozijei. E fiquei bem feliz por um bom tempo. Umas horas acho eu, até voltar à lama na qual chafurdo neste exato momento.
Não sei o que fazer, sinceramente. Não, sei sim: o negócio é esperar, conheço bem. Mas há coisas que poderiam ajudar. Deveria aceitar algumas, mas meu estado super-gêmeos forma de tatu-bola chato e irritante me impede disto.
Então, para tentar me alegrar, tentar me fazer entender as coisas por vias que eu não entendo e não aceito, e para alegrar e agradecer ao Jésus (isto é algo que ele ama), vou apelar para uma musiquinha: uma musiquinha de um musical bem bom.
Inté...
Conheço o senhor Jésus Sêda desde que tenho, sei lá, uns 5 anos de idade. Como ele tem lá seus 50, devo esclerecer que primeiro ele foi amigo da minha tia Rutinha (fazia parte daquele pessoal do qual falei neste post), e só depois, depois de muito tempo, é que veio a se tornar parceiro meu.
O maior porre da minha vida, aquele no qual eu achei que iria realmente pra cucuia, foi tomado ao lado desta figura pra lá de doce. Show d'Os Nômades, banda legal sob o comando do Jorge Fantini (Sia Santa), e Fabiano se emociona pelo fato de o Cidade e Lírios (bar falecido aqui de Campinas) vender capeta, drink tão apreciado há cerca de 13 anos (estávamos em 2006, acho eu) quando este escriba foi comemorar a sua formatura de ensino médio no tão aclamado Porto Seguro.
Ok, ok. Uma cachaça pra começar o papo, e filosofia pra cá, e teatro pra lá, umas cervejas e oito, oito capetas. Fiquei mal galera, mas fiquei tão mal. Quando acordei, depois de ter certeza de que iria morrer - e desta certeza ter se emendado num bom sono - havia capeta até no teto. É a só a culpa que permite com que limpemos tudo depois, sem nojinho, e sem chiar.
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Pois então: fui hoje, no começo da tarde, ao colégio onde leciono e o Jésus estava lá, no comando de uma peça infantil.
Bem: agora vamos parar tudo para algumas explicações - fazer um tour de force para tentar deixar claro o que acontece em minha caixa de comando.
Eu estou mal, bem mal. Naquelas fases de pesar tudo e tentar entender onde foi que eu errei. De saber porque é eu tenho 33 anos e não tenho uma casa, estou sem carro, e não ganho um salário minimamente decente. Porque é que eu terminei o ano ganhando 1/5 do que eu ganhava no começo. Porque é que eu não consigo estar acessível às pessoas. Porque é que me tornei um enorme calo gigante. Porque é que eu quero bater em todo mas não consigo soltar sequer um tapinha, sendo que o espancamento de uns três me deixaria mais calmo. Porque é que eu ainda acho que gasto menos energia contemporizando do que chutando traseiros, já que é óbvio que isto é mentira. Porque é que eu ainda acho que as pessoas devam acreditar que eu tenho algum valor se, no fundo no fundo, filosofia não serve lá mesmo pra muito coisa. Porque é que eu não me vendo ideologicamente e ao menos arrumo uns trabalhos legais. Porque é que eu não me torno prático para o lado prático da vida e volto a me tornar sensível para o lado sensível da vida (em termos perceptivos em geral, acho que ainda vou bem).
Voltemos agora à história.
Eu estava mal, muito mal (estava não, estou) e, de repente, quando entrei na quadra da escola - onde seria a coisa - o Jésus estava lá, como eu já havia dito logo acima. E eu fui até ele. E ele me deu um abraço tão bom, mas tão bom, de minutos tão certos, de pressão tão certa, de carinho tão certo que numa linguagem, digamos assim, bíblica, regozijei. E fiquei bem feliz por um bom tempo. Umas horas acho eu, até voltar à lama na qual chafurdo neste exato momento.
Não sei o que fazer, sinceramente. Não, sei sim: o negócio é esperar, conheço bem. Mas há coisas que poderiam ajudar. Deveria aceitar algumas, mas meu estado super-gêmeos forma de tatu-bola chato e irritante me impede disto.
Então, para tentar me alegrar, tentar me fazer entender as coisas por vias que eu não entendo e não aceito, e para alegrar e agradecer ao Jésus (isto é algo que ele ama), vou apelar para uma musiquinha: uma musiquinha de um musical bem bom.
Inté...
29.9.08
Maurício Pereira - Balangandans
Ah, como eu gosto... mas como eu gosto dessa música!!! Curtam também...
Blau oder Rot? Logik...
Como vocês sabem, um combatente bem preparado deve conhecer muito bem o inimigo. É por esse e por outros motivos, sendo o principal o fato de que, no fundo no fundo, eu só pertença mesmo ao lado da lógica, que eu leio coisas rubras.
O portal Sin permiso publicou hoje uma entrevista com Eric Hobsbawm. Ficou claro, para mim, porque Hobsbawm é Hobsbawm. Há ali, por mais que suas crendices passadas tentem puxá-lo para o outro lado, uma racionalidade que impera. Um dos trechos que mais me chamou a atenção foi o seguinte:
Sin embargo, Marx no regresará como una inspiración política para la izquierda hasta que sea entendido que sus escritos no deben ser tratados como programas políticos, autoritariamente, o de otra manera, ni como descripciones de una situación real del mundo capitalista de hoy, sino más bien, como guías hacia su modo de entender la naturaleza del desarrollo capitalista. Ni tampoco podemos o debemos olvidar que él no logró una presentación bien planeada, coherente y completa de sus ideas, a pesar de los intentos de Engels y otros de construir de los manuscritos de Marx, un volumen II y III de El Capital. Como lo muestran los Grundrisse. Incluso, un Capital completo habría conformado solamente una parte del propio plan original de Marx, quizá excesivamente ambicioso.
Por otro lado, Marx no regresará a la izquierda hasta que la tendencia actual entre los activistas radicales de convertir el anticapitalismo en anti-globalismo sea abandonada. La globalización existe y, casi un colapso de la sociedad humana, es irreversible. En efecto, Marx lo reconoció como un hecho y. como un internacionalista, le dio la bienvenida, teóricamente. Lo que él criticó y lo que nosotros debemos criticar es el tipo de globalización producida por el capitalismo.
O que se vê aqui é óbvio: está longe da anencefalia a qual estamos acostumados, do pensamento daqueles que vivem no século retrasado e não respeitam sequer o preceito fundamental do método no qual acreditam; além do todas as outras cositas más.
A entrevista toda pode ser lida aqui.
O portal Sin permiso publicou hoje uma entrevista com Eric Hobsbawm. Ficou claro, para mim, porque Hobsbawm é Hobsbawm. Há ali, por mais que suas crendices passadas tentem puxá-lo para o outro lado, uma racionalidade que impera. Um dos trechos que mais me chamou a atenção foi o seguinte:
Sin embargo, Marx no regresará como una inspiración política para la izquierda hasta que sea entendido que sus escritos no deben ser tratados como programas políticos, autoritariamente, o de otra manera, ni como descripciones de una situación real del mundo capitalista de hoy, sino más bien, como guías hacia su modo de entender la naturaleza del desarrollo capitalista. Ni tampoco podemos o debemos olvidar que él no logró una presentación bien planeada, coherente y completa de sus ideas, a pesar de los intentos de Engels y otros de construir de los manuscritos de Marx, un volumen II y III de El Capital. Como lo muestran los Grundrisse. Incluso, un Capital completo habría conformado solamente una parte del propio plan original de Marx, quizá excesivamente ambicioso.
Por otro lado, Marx no regresará a la izquierda hasta que la tendencia actual entre los activistas radicales de convertir el anticapitalismo en anti-globalismo sea abandonada. La globalización existe y, casi un colapso de la sociedad humana, es irreversible. En efecto, Marx lo reconoció como un hecho y. como un internacionalista, le dio la bienvenida, teóricamente. Lo que él criticó y lo que nosotros debemos criticar es el tipo de globalización producida por el capitalismo.
O que se vê aqui é óbvio: está longe da anencefalia a qual estamos acostumados, do pensamento daqueles que vivem no século retrasado e não respeitam sequer o preceito fundamental do método no qual acreditam; além do todas as outras cositas más.
A entrevista toda pode ser lida aqui.
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