Quando o livro pertence àquela categoria dita "fora de série", é bom que prestemos atenção inclusive em algum possível significado latente em seu ponto final. Este é caso de "Dialética do Esclarecimento". Lá no fundo, depois que tudo parece ter sido dito, nos esboços não aproveitados, há este texto primoroso. Permito-me fazer algumas digressões no final.
A gênese da burrice
O símbolo da inteligência é o caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos, a vida intectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis.
Os animais mais evoluídos devem o que são à sua maior liberdade; sua existência mostra que, outrora, suas antenas foram dirigidas em novas direções e não foram retiradas... A repressão das possibilidades pela resistência imediata da natureza ambiente prolongou-se interiormente, com o atrofiamento dos órgãos pelo medo. Cada olhar que o animal lança anuncia uma forma nova dos seres vivos que poderia surgir da espécie determinada a que pertence o ser individual.
Esse olhar tateante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás de si a boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro.
A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas. As perguntas sem fim da criança já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para a qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente. A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada, por exemplo quando o leão em sus jaula não pára de ir e vir, e o neurótico repete a ação de defesa, que já se mostrara inútil. Se as repetições já se reduziram na criança, ou a inibição foi excessivamente brutal, a atenção pode se voltar numa outra direção, a criança ficou mais rica de experiências, como se diz, mas freqüentemente no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres duros e capazes, podem tornar as pessoas burras - no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira, da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violência sofrida torna a boa vontade em má.
Há uma divisão que pode ser feita a partir dos dados do texto. Ela não é estanque: é um tanto quanto viva e e instável já que, afinal, lida com fatos humanos. Diz respeito à existência de uma burrice cognitiva numa ponta e, de outro lado, àquela que pode ser tomada como afetiva. É desta que falarei um pouco.
Em um dado momento, os autores se referem à ação do neurótico que repete a defesa. É a forma que ele encontra para lidar com sua cicatriz, que ao mesmo tempo que dói o desvincula da realidade. A cicatriz do neurótico e seu invólucro são fáceis de ser entendidos: uma vez usado o órgão do afeto, e estando a ponteira deste órgão machucado, ele acaba por reeditar a metáfora da antena do caracol - se estende pouco, avança até o limite de não sujeitar-se ao decepamento. O membro em recuperação encontra-se por si só manco, e não pode se dar ao luxo de avançar o suficiente simplesmente porque o que lhe é intrínseco vive agora somente em forma potencial.
Assim o neurótico repete. E repete porque não se livra da cicatriz e seu órgão é o único que lhe existe ligado à função. Repete porque cada situação dada é percebida como a originária, a dolorosa. A única saída do neurótico é a reinterpretação. É a verificação de que o órgão é tocado por algo novo, diferente do cortante: é desconstruir, tornando a cicatriz, ao mesmo tempo, o mais maleável e o mais resistente possível.
O que há de preocupante entretanto, e aí então a neurose involui à uma espécie de protopervesão, é a possibilidade de rearranjo do órgão, o seu estabelecimento em contrário de si: o afeto passa a desafeto, a timidez passa à arrogância, a construção passa ao desmoronamento - a antena, para que consiga a defesa, não mais se recolhe e tenta indistintamente - ela se transmuta em tentáculos e presas afiadas. O alcançe do outro não é mais toque: é estocada, luta, geração de desprazer para com o desejado.
O interessante aqui é sabermos que - e isto aparece na psicanálise já desde seus mais antigos trabalhos - incrementando os sintomas, há uma percepção do doente de que ele se encontra em melhores condições. A defesa se torna melhor sucedida quando o desvio é mais eficaz. A situação terrível é lida como prazerosa por conta dos mecanismos embusteiros. O masoquismo é um caso exemplar. Nele, a perversão se instala de vez e permanece.
Assim como a agulha é anunciada como dor apenas na entrada e na saída, parecendo fazer parte do organismo quando na carne, o mal passa a significar prazer ao masoquista quando, de início, não se movimenta. A rotação pode ser então, com o tempo, completamente realizada - perversão = per verso = pelo contrário. O sujeito ou o fato responsável pelo desconforto, ainda que pleno, é reconhecido como necessário e bondoso quando presente e pode iniciar seus vai e vens dolorosos. Os sujeitos e fatos para os quais as antenas poderiam se aproximar com menos problemas são reconhecidos, quando tocados, como indecentes causadores de cicatriz. Morte é vida, ainda que digam o inverso. O desejo do indivíduo é respeitado, ainda que isso signifique ser abusado. Menos vale mais.
O montante da burrice afetiva é o mesmo da felicidade trazida pelo prazer da inversão. Uma simbiose então deve se iniciar: ao masoquista agora feliz une-se o naricista e/ou sádico. A lente convergente está fortemente instalada nos sistemas que se aproximam da ou repetem a relação perversa. O alcoólatra perverso ama a bebida com a mesma força com que odeia o alimento. Reinicia seu amor diariamente. O apaixonado perverso adora seu amante na mesma medida em que ele, o traindo, fica. E reitera seu método, sempre. A felicidade nunca foi nem será índice de saúde. Quando Nietzsche diz que é preciso haver caos dentro de si para que se possa dar luz a uma estrela dançante não profere um texto de agenda para meninas: fala sobre criação e, ao seu modo peculiar, de cura.
Por muitas vezes o câncer só aparece quando é chegado o estágio final, mostrando tudo o que tem mostrar. O câncer da burrice afetiva por muitas e muitas vezes repete o fado. A cura só se apresenta a quem se sabe e se sente doente e, calado e aceitando como eterno o pathos de estar-se constantemente se contruindo, prepara-se para arriscar novas e sadias cicatrizes.
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