5.11.08

João Pereira Coutinho

Para que não conhece João Pereira Coutinho, trata-se de um português que escreve coisas das mais sensatas e de uma maneira impecável. Provável que uma de suas principais qualidades seja a de reduzir complexidades conceituais em temas diários, palpáveis, demasiadamente humanos. O texto é de uma claridade infalível e pode-se sentir, ao ascultá-lo com cuidado, um tanto daquela tristeza, daquela angústia, daquele sofrimento curto tão característico da lusitânia: o fado que se observa em cada olhar português.

Mando dois de uma só tacada. Não deixem de ler. Para quem se interessar, inseri o link para o site aí ao lado.


A Sagrada Família

Já tudo foi dito e escrito sobre o último livro de Reinaldo Azevedo, "O País dos Petralhas" (Record, 337 págs.). Uma feroz e divertida denúncia da política brasileira e do "establishment" petista atualmente em cena? Sem dúvida.

Mas existe uma passagem do livro que não é para rir. É para ler, meditar, talvez chorar. Acontece a propósito de nada: Reinaldo Azevedo prepara-se para sair de férias e, em momento de trégua, partilha com os leitores do blog a memória feliz de um livro aparentemente menor, "A Morte de um Apicultor", do sueco Lars Gustafsson.

Quem leu Gustafsson? Curiosamente, eu li. E perguntei-me, durante anos, se seria a única criatura do mundo a lembrar com ternura desse livro imensamente melancólico e belo. É a história de um velho, condenado por doença mortal, que vai anotando, em vários cadernos, os pensamentos, as rotinas e até as dores físicas de uma vida a caminho do fim. "Recomeçamos. Não nos rendemos", escreve o velho, vezes sem conta. E, com essa frase, termina a sua odisséia, momentos antes de a ambulância vir buscá-lo.

Reinaldo Azevedo evoca "A Morte de um Apicultor" para dizer o que de mais profundo alguém pode dizer sobre a função de uma democracia civilizada: ela existe, precisamente, para que possamos tratar das nossas vidas banais. Para que possamos ser como o velho apicultor do livro: simplesmente interessados nas nossas rotinas, nas nossas famílias, nas nossas memórias privadas. E conclui o colunista: o que é imperdoável na política brasileira não é apenas a corrupção, a boçalidade e a ignorância dos próceres. O que é imperdoável é a existência de uma elite política moralmente miserável que impede esse espaço pessoal e intransmissível onde podemos ser "senhores das nossas lendas" e alheios ao ruído do mundo. No Brasil, tudo é ruído. E no resto do mundo?

No resto do mundo, talvez não. A tese pertence a Luc Ferry e ninguém diria que Luc Ferry e Reinaldo Azevedo dariam um bom par. Mas as aparências enganam. Em "Famílias, Amo Vocês", um breve ensaio publicado no Brasil pela Objetiva, Luc Ferry retoma a observação pessoal de Reinaldo e elabora uma questão filosófica fundamental: nos tempos que passam, seremos capazes de nos sacrificar por algo ou por alguém? Ao olharmos para o brilhante século 20 e para o longo cortejo de matanças em que a centúria foi pródiga, encontramos milhões de seres humanos que marcharam e mataram em nome de puras abstrações. A Nação. O Partido. O Progresso. A Raça. O Império. O baile terminou em chamas e, hoje, no meio das cinzas, alguns zelotes ideologicamente nostálgicos lamentam o "recolhimento individualista" das nossas sociedades "burguesas" e clamam pelo inevitável, e tantas vezes sanguinário, regresso da "imaginação ao poder".

A resposta de Luc Ferry é a oposta: devemos festejar o recuo das grandes causas; e devemos, sobretudo, celebrar as pequenas. Devemos celebrar os nossos familiares, os nossos amigos. A nossa tribo. O nosso "pequeno pelotão", como dizia Burke no século 18. São eles as causas por que vale a pena lutar. São eles que constituem o princípio e o fim das nossas "transcendências".

Nas palavras do filósofo francês, houve uma "divinização do humano" ou, se preferirem, uma "transcendência na imanência" que leva o Homem ocidental a apenas "sair de si mesmo" para participar no destino daqueles que lhe estão mais próximos. As nossas utopias são pessoais, não coletivas; e esse recuo é prova da nossa maturidade política e de uma certa decência moral.

Ao longo da história, as famílias sempre estiveram ao serviço da política e foram, por vezes, estilhaçadas por ela? É hora de virar o disco: uma sociedade política civilizada deve servir as famílias; deve permitir que estas possam cultivar as suas virtudes sem a intervenção e os constantes abusos do Estado.

E o Brasil será essa sociedade política civilizada no dia em que o ruído do mundo der lugar ao silêncio dos lares. No dia em que for possível, como escreve Reinaldo Azevedo, ter uma alma, cultivar intimidades, guardar as pequenas coisas ridículas, sem que a República conspire com suas sujidades e violências. Será esse o dia em que o famoso dilema de Camus deixará de fazer sentido: a justiça ou a minha mãe?
Obviamente, a mãe.

Porque, como diria um velho apicultor sueco, nós nunca nos rendemos perante o que nos é sagrado. Recomeçamos.

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É a política, estúpido!

Vejam só como eu sou ingênuo: uns tempos atrás, em Nova York, acordei pelas dez da manhã, saí para a rua e encontrei dezenas e dezenas de jornalistas à minha espera. Eu, pelo menos, acreditava que sim. E acreditava mais: num acesso de megalomania, julguei que a Academia Sueca resolvera reconhecer, pela primeira vez na sua história, a crônica como gênero literário digno de um Nobel.

Puro engano. Olhando em volta, descobri que o meu hotel ficava ao lado da sede da Lehman Brothers. Ali, a dois passos da minha cama, Wall Street entrava pelo buraco. Limitei-me a sorrir e, levemente ressacado, marchei para a Starbucks mais próxima, em busca da cafeína redentora.

Por que motivo sorria eu?

Não pretendo abismar os leitores desta Folha com meus conhecimentos econômicos, aliás primitivos. Mas posso confessar, de alma aberta, que a presente crise financeira estava escrita nas estrelas!

Eu sei que os leitores estão cansados da crise e não estão dispostos a ler mais uma análise sobre ela. O vocabulário é esotérico ("leverage", "toxic debt", "shorting") e o caos geral dos mercados tem reflexo direto na cabeça histérica dos comentadores.

Mas é importante, no meio do nevoeiro, começar por dizer que a crise financeira atual não é, apenas, uma crise financeira. É também uma crise política, que nasceu diretamente de uma concepção igualitária de sociedade que só podia terminar pessimamente.

Essa concepção nasceu no seio de várias administrações americanas que, nos últimos anos, movidas por noções aberrantes de "igualdade" social, entendiam ser possível operar o milagre da multiplicação do consumo.

Comprar casa, por exemplo, não era o resultado de anos de trabalho, poupança e investimento esse trio que, infelizmente, não está ao alcance de todos. Comprar casa era um direito e, mais, um dever. E como cumprir esse dever, que permitia, ainda por cima, fazer de cada investimento um novo negócio para um novo investimento?

Ninguém tem recursos ilimitados; mas houve, pelos vistos, empréstimos ilimitados: bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a privados. Quando os empréstimos começaram a não ser pagos (inevitável); e quando o mercado imobiliário, depois da euforia, começou a derreter (idem), o mundo acordou para a evidência de que a única coisa que começava a faltar no sistema era, tão simplesmente, dinheiro.

Não foi a ganância de Wall Street que pariu a crise presente. Foi a ganância de toda a gente: governos, bancos, pessoas.

A euforia terminou em depressão e hoje, com a economia mundial à beira do abismo, talvez só um plano global de intervenção pública na banca possa evitar o descalabro. Um plano de emergência que, como todas as emergências, deve ser forte e temporário.

Mas seria um erro passar pelo momento atual sem aprender as suas lições. Quais? Dos governos, espera-se que aprendam como é perigoso e abusivo projetar construções ideológicas equitativas no funcionamento impessoal do mercado. Das pessoas, espera-se que relembrem o que têm e o que podem gastar, esse cálculo mínimo que é a base de qualquer economia doméstica. E, da banca, espera-se apenas que o velho equilíbrio entre prudência e risco possa regressar. De preferência, sem as pressões de cima ou as ilusões de baixo.

Uma receita básica? Precisamente. Mas, às vezes, é necessário começar pelo básico.

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