28.11.06

Muitos acontecimentos hoje.

Tive um dia cheio mas consegui resolver muitas coisas, consegui fazer coisas novas, consegui me lembrar de coisas importantes.

Sim, me lembrar. Tenho tido acessos de lembrança, mas de lembranças boas.
O fato de estar novamente circulando pela ruas do velho São Bernardo está me fazendo bem. Em cada esquina uma história. Em cada esquina uma viagem e um apagão do presente. Só tenho que me cuidar para não morrer atropelado.

Hoje passei em frente à Sociedade dos Amigos do Bairro São Bernardo. Isto existe pessoal, e foi lá a festa de casamento dos meus pais. 8745 pessoas, incluindo eu na barriga da minha mãe.
Lá também trabalhava a Tia Luzia, irmã da minha avó, uma das figuras que eu tive a maior sorte e o maior prazer de conhecer. Fumava sem parar, falava palavrão às tantas, era divertidíssima e tinha lindos, lindos olhos azuis.

A Tia Luzia era enfermeira e secretária da Sociedade.
Isto porque a Sociedade tinha médicos que atendiam a população do bairro, assim como dentistas. Eu fui várias vezes ao médico lá, e ao contrário do que pode parecer, era algo muito bem organizado: com bons médicos, boas salas para atendimento e muito carinho.

Em frente à Sociedade também foi dada a largada para o meu primeiro evento esportivo. Eu tinha uns nove anos, era uma corrida pelas ruas do bairro, e quem deu o tiro inicial foi o Ademar Ferreira da Silva. Passei a noite toda fazendo planos, bolando estratégias, contabilizando possibilidades para vencer. Mal dormi.
Já no mundo real eu corri o primeiro quarteirão, o segundo, o terceiro. No quarto me cansei, comecei a caminhar, e fui batendo papo com um outro perdedor até a linha de chegada. Foi então que eu percebi o verdadeiro sentido de "o que vale é participar": como só um ganha, o resto tem que ter uma desculpa convincente. Bem resignado, bem cristão.

Bem, passei em frente à Sociedade porque fui ensaiar na Opus. Fabiano voltará aos palcos, ainda que seja para uma participação irrisória. Mas foi muito bom, foi ótimo estar lá novamente. A mesma sala, o mesmo calor insuportável, o mesmo Carlão lembrando de todas as marcações feitas há 20 anos e esquecendo tudo em seguida.
Foi bom trabalhar com o corpo de novo: sentir, ver, experimentar em cima da carne. Tinha me esquecido disto, e hoje me lembrei, assim como das histórias da Sociedade.

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Nietzsche escreveu coisas interessantes sobre a memória. Dizia que o homem é um animal doente porque é o único animal que pode fazer promessas. O único que tem memória, e que sofre por ela. A saúde estaria no esquecimento, que para ele não seria algo passivo, falho, mas uma força ativa: o esquecimento como uma função operativa. Não é necessário comentar o que a psicanálise fez com isso: o que é o trauma? O que é o recalque?

Eu estou trocando lembranças más por boas. Tentando me curar.

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Hoje estava parado esperando para atravessar uma rua do Centro quando começou uma chuva absurda. Havia uma velhinha na minha frente, quase de costas pra mim. Uma moça parou ao lado da senhora, e ficou lá, por alguns segundos, de baixo d'água, aguardando os carros passarem. A velhinha então não teve dúvidas: dividiu o guarda-chuva que ela carregava com a moça. Disse assim: não, esperar este tempo todo aqui, você vai se molhar muito, eu te levo até aquela marquise. Achei aquilo lindo, e soltei os cachorros pro meu analista dizendo que o mundo precisava mais daquilo: de gentileza. E que se ninguém mais fazia estas coisas, eu era favor do retorno das aulas de Educação Moral e Cívica, porque se não se faz por bem, que se faça por mal: mas que se faça.
Claro que ele falou que eu era mesmo de direita.

Engraçado: tentar pôr ordem no mundo significa ser de direita. Então que se fique com a educação de esquerda, onde todo mundo faz o que quer porque é mais libertário (ué, liberdade não é coisa de direita? Ai senhor Bobbio). Onde todo mundo é igual (agora sim, igualdade é coisa de esquerda). Onde os avanços têm que ser em grupo, e por isso ninguém pode ser reprovado, o que causaria uma desestabilização no indíviduo e na "causa".

É. acho que é hora de dormir. Até mais...

21.11.06

Dos poemas antigos

Escrito na contracapa de um Neruda


Acabastes de pedir-me
um abraço.
Dei-o, dizendo que
te amo, e
guardei-o aqui,
entre estas duas
folhas claras,
pensando torná-lo
eterno feito poema.

Segue abaixo o texto da discórdia.

Dia-a-dia


O mito é nada que é tudo.

Esta é a aula de percepção com que Fernando Pessoa nos brinda em um de seus poemas de Mensagem.

O mito, aquilo que é fábula, que não tem existência, fantástico por natureza, possui o poder de esconder, sob si, uma realidade que também não existe.

De criar, a partir de si, toda uma série de acontecimentos. De gerar tudo: um mundo novo, novinho em folha.


E continua o poeta:

Este (mito), que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.


O mito e aquilo o que ele faz, e isto é óbvio, na realidade não têm existência.

O mito existe apenas na crença, na nossa crença que faz com que o nada seja algo.


E uma coisa engraçada: é até bom que ele não exista, ou que tenha uma existência pequena, pois assim ele pode ser tudo aquilo que queremos que ele seja. O mito é construído à imagem de nossas vontades.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.


Pois bem: acreditamos naquilo que não existe.


Acreditamos nas coisas que aquilo que não existe faz.

Claro que assim uma nova realidade é criada. Uma realidade que é ilusão, que é sonho, que é alucinação.

O mito é isto: dele brota todo um mundo de nadas; todo um universo que esconde aquilo que, digamos, é real. E este real, que na maioria das vezes é aquilo que não queremos, que não aceitamos, se transforma, ao se aproximar do mito, em mentira.


Assim, com o mito, a vida fica toda invertida: a verdade é mentira, e a mentira é verdade.

E enquanto isto? Enquanto preferimos acreditar neste nada, sonhar com este nada, alucinar este nada?

Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


O mito, a ideologia e senso comum às vezes são a mesma coisa. O mito, a ideologia e senso-comum nos impedem de pensar.

Pense nisso, e até semana que vem...

17.11.06

Tenho que terminar de contar as coisas de ontem, então...

Fui ao supermercado e comprei três grandes barras de chocolate e três garrafas de H2OH.
Suprimento antidepressivo. Como não posso beber (por enquanto) enfio o pé na jaca tomando H2OH. É o limite do subversivo com que Fabiano pode lidar atualmente: ficar doidão com água. Já o chocolate tem a ver com Maracangalha. Viu só como água deixa locão?

O dia de hoje começou chato. Andei de um lado para o outro pensando que não havia tido ainda uma percepção fantástica sequer, daquelas que a gente acha que vai salvar o mundo ou escrever um grande poema com ela.

Mal sabia eu, mas estava tudo reservado para a noite.

Meu irmão me convidou para o lançamento de um livro na escola dele. Chegando lá, além do lançamento, havia um sarau.
Muito bom de tão ruim que era a maioria do povo que se apresentou. Na verdade, estava mais pra show de calouros.
Melhor que qualquer sarau que eu já havia ido, já que sarau é a coisa mais chata do mundo. Aliás, não sei por que sarau existe. Aliás, sei sim: o sarau é uma reunião de narcisistas sadomasoquistas que querem foder consigo e com os outros através da arte. Arte que também, diga-se de passagem, é algo chato logo que se transforma em arte (um poema é legal enquanto poema - quando vira arte fica uma merda, como os poemas de um sarau).

Bem, o que interessa nesta história é que a Jany, a Carla e o Carlão estavam lá.
O que interessa é que a cavalaria estava montada para me colocar no colo. E conseguiram.
Ninguém tocou no assunto até que eu resolvesse falar, mas depois...
Muita força, muito aconchego, muito de tudo que pudesse me deixar pra cima.

Eu e a Carla comemos muito queijo, muitos canapés, tomamos muito ponche, conversamos muito, rimos muito.

A Jany, como sempre, extrapolou muito: jogou um frasco de essência na minha cabeça e disse que era pra me limpar das coisas ruins.

O Carlão se limitou a rir muito.

Já eu, fiquei muito feliz.

Legal também que, não sei como, a molecada já estava em polvorosa com o novo professor de Filosofia. Gente tentando se enturmar, me chamando pelo nome, eu hein!!??

Bom, enfim: redescobri o quanto gosto dos meus amigos, e o quanto eles gostam de mim. Foi confortável, reconfortante, revigorante. Isto pode não salvar o mundo, mas me salvou por hoje, e pode ser que dê poema.

Sentando aqui ainda me deparei com um e-mail dinamarquês: a cavalaria estrangeira, talvez a mais importante, também está a postos. Estou me sentindo abraçado hoje. Muito bem, obrigado.

Agora só me falta a Nália.

16.11.06

Hoje pela manhã fui a um laboratório fazer exames.
Peguei o ônibus com uma sacolinha de O Boticário contendo 1l de xixi, e andei pelo centro da cidade como se nada houvesse de estranho. Sim , as aparências enganam e, neste caso, gargalham também.

Cheguei ao lugar às 10:30h, bem a tempo de encontrar uma menininha imbecil, com cerca de 4 anos de idade, que batia com os pés no chão, que rolava, que berrava, que irritava. Ela queria ficar sentada no balcão e o pai não deixava. Motivo suficiente pro show.

Bem, o que seguiu acabou por deixar tudo às claras.
Um tempinho se passou, e a enfermeira veia à porta chamar a criatura: - Maitê, box 1.
Sim meus amigos, a criatura se chamava Maitê. Isto explica tudo, não? Se você quiser ter uma filha minimamente interessante e consciente não ponha o nome de Maitê. A culpa ali era, portanto, dos pais, e Maitê só tratava de manter a escrita.

Dois minutos depois de a pentelha entrar comecei a ouvir os berros.
Sim, Maitezinha foi fazer exame de sangue.
Todos que estavam na sala de espera se entreolharam e se sentiram vingados.
Sim Maitezinha, tudo pode piorar.
Sim Maitezinha, agora você tem motivos pra espernear.
Sim Maitezinha, é provável que você nunca aprenda a hora certa de chorar.
Esta será tua herança maldita, colocada em seu caminho antes de você nascer, Maitê.
Maitê, a culpa é também, neste caso, dos seus pais.

Maitezinha saiu e eu fui chamado: - Fabiano Roberto, Box 3. Quase mandei uma cadeira na cabeça da enfermeira. Não bastava ter levado xixi pra passear. Não bastava a dor. Não bastava a Maitezinha: ela tinha que me lembrar de que meu nome é Fabiano Roberto - sim Mônica, pode rir. Aliás, não só me lembrou, como espalhou pro lugar todo. Deveria ter aberto o xixi e jogado na cabeça de todo mundo que ria por dentro.

Fabiano Roberto fez o que tinha que fazer e foi embora.

O centro é estranho em feriados.
Muitos mendigos que, é claro, estão sempre ali, mas se tornam imperceptíveis por conta do vai e vem das pessoas. Nos dias vazios eles não se misturam à paisagem; saltam dela, se ressaltam: feios, tristes, desesperadamente sós - Ah look at all the lonely people. E Fabiano Roberto vai pelo centro fazendo sua redução fenomenológica sobre os mendigos.

À noite vi o filme do Cazuza que só eu não tinha visto. Cortes muito mal feitos entre uma cena e outra. Cortes-tapa. Cortes-sopetão. Deixaram o filme feio, irritante, parecendo cinema nacional das antigas. Chorei com "se eu não posso te levar, quero que você me leve". É lindo isto, não?

Amanhã tem mais.