24.2.12

Para que servem as fantasias? - Contardo Calligaris


NA MINHA adolescência, em Milão, no Carnaval, era raro que alguém promovesse uma festa à fantasia; em geral, os poucos estabelecimentos que alugavam fantasias propunham figurinos abandonados por companhias de teatro falidas: a festa cheirava a naftalina, de dar dor de cabeça.
Antes disso, na minha infância, as mães fantasiavam suas crianças e as levavam pelas ruas. No meu caso, isso acontecia em Veneza, onde, por sorte, havia mais crianças fantasiadas do que em Milão - eu não era a única vítima dessa inspiração materna.


Mais tarde, imaginei que, com aqueles passeios de fantasia, minha mãe quisesse me mostrar que, na vida, é sempre possível ser outro: Polichinela, Arlequim, Scaramouche e, muitas vezes, Pierrot. A prevalência de Pierrot demonstra, aliás, que, fantasiando-me, ela não pretendia me ensinar um atalho para chegar à eterna felicidade; o que lhe importava me transmitir era só a alegria de se reinventar, de ter uma vida variada - feliz ou triste, como a de Pierrot, tanto fazia.


De qualquer forma, na época, eu criticava aqueles passeios. Era para todos acharem que eu era outra pessoa? Fracasso: não íamos enganar ninguém, visto que ela não estava fantasiada, e os vizinhos, reconhecendo-a, saberiam imediatamente que a criança era eu.


Esse raciocínio era bem veneziano. Na Veneza antiga, havia as máscaras de nariz comprido, no qual as pessoas socavam ervas que filtrassem as pestilências, e havia, Carnaval ou não, a vontade de se deslocar pelas ruelas da cidade no anonimato. Os venezianos protegiam sua vida privada  (política e amorosa) vestindo todos capa e tricórnio pretos com a mesma máscara básica, branca ou preta.
Essas máscaras para preservar o anonimato eram, por assim dizer, fantasias para poder continuar sendo si mesmo (no caso, às escondidas). No Carnaval de Veneza hodierno, na rua ou nos bailes, máscaras e fantasias não servem mais para que possamos ser nós mesmos anonimamente, mas para que o sonho ou a ilusão de podermos ser diferentes sejam reconhecidos por todos, numa espécie de reciprocidade: te felicito por tua fantasia se você me felicita pela minha.


Em suma, já houve fantasias para sermos nós mesmos e, hoje, há sobretudo fantasias para sonhar e fingir ser outro. Não desdenho essa função da fantasia. Afinal, talvez fosse para manter vivo o sonho ou a ficção de ser outro que minha mãe me levava fantasiado pelas ruas.


Passei o feriado no Rio, onde o Carnaval de rua voltou, com a multiplicação dos blocos e com um clima permanente (e civilizado) de festa no asfalto (o da zona sul, no mínimo). Tanto na rua como na Sapucaí, hoje, a fantasia me parece servir mais para sonhar em sermos outros do que para autorizar lados escondidos de nós mesmos, que a fantasia, por assim dizer, permitiria.


Mas eis que alguns amigos não concordam: segundo eles, as fantasias serviriam, justamente, para que ousemos ser nós mesmos. Os antigos venezianos, para agir "soltos", precisavam apenas do anonimato - e por isso eles se fantasiavam. Nós, para chegar à mesma "soltura", precisaríamos vencer poderosas inibições; a fantasia (com a ajuda da cerveja) nos levaria a acreditar que, uma vez fantasiados, sendo um pouco diferentes, estaríamos (até que enfim) à altura de nossos próprios impulsos reprimidos. Prova disso, acrescentam os mesmos amigos, são os excessos sexuais que acontecem no Carnaval: tudo seria permitido porque, por um instante, achamos que não somos nós, é a fantasia que cai na gandaia.


De fato, existe um lugar-comum, segundo o qual, no Carnaval, a gente se permitiria perigosos excessos sexuais - é por isso que o Ministério da Saúde concentra suas campanhas de prevenção no Carnaval. Mas é apenas um lugar-comum.


Foi publicada já em 2010 ("Rev. Assoc. Med. Bras.", vol. 56, nº 4, SP 2010; http://migre.me/7ZKpc) uma pesquisa (prolongando a dissertação de mestrado de Wilma Nancy Campos Arze, http://migre.me/80OQl) que mostra o seguinte: durante o Carnaval, em matéria de sexo, não pode acontecer nada muito diferente do de sempre, visto que, como consequência do Carnaval, não aumentam nem as infecções por doenças sexualmente transmissíveis nem as gravidezes indesejadas.


Conclusão: a ideia de que o Carnaval seja um momento orgiástico, em que soltamos desejos reprimidos, é apenas um aspecto do sonho de sermos um pouco diferentes do que somos - ou seja, é apenas mais uma fantasia de Carnaval.

10.2.12

Os diferentes são todos doentes? - Contardo Calligaris


Aconteceu no mesmo dia. Primeiro, houve uma mãe falando da homossexualidade do filho, que ela, em tese, acabava de descobrir: "É uma doença, não é?", perguntou. Ela queria encontrar, na minha confirmação, uma razão de perdoar o filho por ele ser como é. 

Mais tarde, alguém, falando de um parente próximo que é toxicômano, afirmou mais do que perguntou: "Ele é doente" -no tom de quem procura uma confirmação que permita perdoar o inelutável. 

Nos dois casos, respondi com cautela, mais ou menos desta forma: "Certo, deve haver razões para ele ser assim, mas ele não é doente como alguém que pega um vírus ou uma bactéria, nem como alguém que seja invadido por um câncer". A observação convidava meus interlocutores a questionar o que eles entendiam por "doente". A mãe do primeiro exemplo acrescentou que, de fato, não devia se tratar tanto de uma doença quanto de uma disposição genética. 

Meu segundo interlocutor poderia ter dito a mesma coisa. Afinal, logo na sexta passada, a revista "Science" publicou uma pesquisa de Karen Ersche, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), defendendo a tese de que existe uma predisposição genética à toxicomania (veja-se o caderno "Saúde" da Folha de 3 de fevereiro e o texto original por www.migre.me/7OLiy - de fato, sem entrar em detalhes, a pesquisa de Ersche mostra que deve haver uma predisposição genética à toxicomania, embora essa predisposição não seleo destino de ninguém). 

Desde quinta-feira passada, também recebi vários comentários à minha última coluna: muitos diziam que, claro, "cross-dressers", travestis e transexuais devem ser tratados com respeito por uma razão simples: "eles são doentes".Parece que a possibilidade de respeitar a diferença passa pelo reconhecimento de que essa diferença constitui uma patologia ou uma espécie de malformação congênita (no fundo, a exceção genética é isso). 

Alguns perguntarão: "não é melhor assim?". Sem essa "injeção" de patologia (ou de teratologia), os diferentes seriam apenas julgados em nome de um moralismo qualquer: os drogados seriam vagabundos, os homossexuais, sem-vergonhas, e, quanto aos "cross-dressers" e etc., nem se fala.
Em outras palavras, a substituição da moral tradicional ou religiosa pela medicina, em geral, produz uma nova tolerância das diferenças: elas não são punidas, são diagnosticadas. 

Mais um exemplo. Obviamente, para nossa proteção, não deixamos de prender os criminosos, mas já "sabemos" que muitos deles não são "ruins", eles só têm um problema de córtex pré-frontal - por causa dessa malformação, continuam impulsivos que nem adolescentes. 

O neurocientista David Eagleman ("Incógnito", ed. Rocco) chegou a propor que a gente treine nossos criminosos de modo que eles gozem de uma "normalidade" cerebral parecida com a da gente. Aí, sim, poderíamos condená-los com toda justiça. Sem isso, puniríamos "doentes", não é?Perdoamos facilmente, mas não é por misericórdia ou compreensão, é porque respeitamos e desculpamos doentes e vítimas de anomalias genéticas. É um progresso? 

Acima de seu sistema jurídico, cada sociedade produz e alimenta um sistema de crenças, regras e expectativas que facilita a coexistência mais ou menos harmoniosa de seus cidadãos. Para essa função, a modernidade escolheu a medicina (do corpo e das almas). Com isso, o controle sobre nossas vidas seria aparentemente mais suave, mais "liberal". Mas é só uma aparência. Pense bem. Certo, se toda exceção ou anormalidade for doença ou malformação, os diferentes não serão propriamente punidos. No entanto, a sociedade esperará que eles sejam "curados". 

Outro "problema": se os desvios da norma forem tolerados por serem efeitos de doença ou malformação, o que aconteceria com quem pratica desvios, mas não apresenta as "malformações" que o desculpariam? O que acontece se eu quero me drogar, ser "cross-dresser" ou, mais geralmente, infrator só porque estou a fim de uma "farra" e sem poder alegar nenhuma das predisposições genéticas para essas "condições"? Aí vai ser o quê? Voltamos às punições corporais? 

Em suma, gostaria que fosse possível ser anormal sem ser "doente". E, se fosse o caso, me sentiria mais livre sendo punido do que sendo "curado".

2.2.12

fabianescas - dilema moral joanino

Pai, eu estava pensando aqui: suponha que exista uma pessoa que seja viciada em doar coisas. Ela tem muito dinheiro, é milionária, mas tem a doação como vício. Se ela quisesse doar um tanto de dinheiro pra você, seria correto você aceitar?