6.3.12

Conhece-te a ti mesmo - Luiz Felipe Pondé

Decidi mudar. Não serei mais aquela pessoa que acha que as pessoas não mudam e que não há história, mas sim um eterno retorno do mesmo. Nietzsche nunca mais, só Rousseau e seu estado de natureza angelical.

Acredito agora nas primaveras que cortam o mundo. Fui à livraria mais próxima, ou melhor, ao iPad mais próximo, e comprei um livro que me indicaram: "Dez passos para ser um novo Pondé", autoria de um certo sábio chinês que talvez seja um neto de coreano nascido na Califórnia de pais porto-riquenhos.

O primeiro passo é aprender a respirar. Sou dono da minha respiração agora. Em seguida, alimentação. Nunca mais carne vermelha. De início, ainda frango e peixe, mas em breve pretendo me tornar um amante das rúculas e alfaces, mas sempre pedindo perdão por precisar tirá-las de sua vida doce e promissora fazendo fotossíntese. Coca-Cola, nem pensar. Além do mais, é americana! Vinho, só natural.

Um segredo: continuarei a ir aos EUA porque um tênis lá custa cinco dólares! Irei escondido e voltarei com dez malas. Mas, temos ou não direito a ter tênis baratos? Acho uma falta de respeito proibir as pessoas de comprar tênis e jogos eletrônicos baratos em Miami.

Amarei a África. Abraçarei todas as ONGs do mundo. Direi às pessoas que elas são lindas e que o mundo faz parte de uma confederação cósmica. Os maias foram o povo mais avançado da história e decidi frequentar escolas aborígenes para aprender seu complexo modo de criar sociedades mais justas.

Religião: nunca mais essa coisa pesada de judaísmo e cristianismo, religiões que nos estragam com sua moral "imposta". Candomblé também não. Claro, como é religião africana, seria aprovada pelo meu novo eu, mas em alguns terreiros baixam pombagiras, e elas foram prostitutas e adúlteras, e não quero nem chegar perto disso! Aliás, decidi que essas coisas não existem.

Minha nova religião será uma forma de budismo light, aquele tipo que cultua a energia do universo. Sei que existem outros tipos, mas aqueles são autoritários. Toco as plantas com mais cuidado e percebi que elas são mais sábias do que Freud. Claro, comprei uma estatueta de um golfinho e joguei fora aquela esfinge do Édipo horrorosa que minha irmã me deu em Londres.

Nunca mais tragédia grega, agora só revistas que nos ensinam como o mundo pode ser melhor se arrumarmos nossos sofás de forma mais harmônica com as estrelas. Contratei uma mestra em decoração oriental. Ela é uma mulher supermagra e equilibrada. Imagine que curou um câncer em seu gato com reiki.

Direi para todo mundo que não gosto de dinheiro e que gosto das pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm. Perguntarei aos artistas com consciência social o que posso dizer e fazer.
Vendi meu horroroso carro inglês. Estou aprendendo a andar de bike (já sabia andar de bicicleta, mas bike é outra vibe). Ainda que tenha que atravessar as ladeiras das Perdizes para ir trabalhar (pena que ainda tenha que fazer parte desse mundo terrível de pessoas que trocam sua dignidade por dinheiro), já me explicaram que cada pedalada evita duas moléculas de gás carbônico, o que faz de mim uma pessoa com pegada de carbono sustentável.

Sexo, agora, só verde. Se provarem que esperma polui o mundo, evitarei o orgasmo, assim como na Idade Média dizem que mulheres santas evitavam gozar para serem puras aos olhos de Deus. Enfim, sinto-me leve com meu novo eu. Provavelmente, serei mais amado, e isso é que conta, não? Acredito, agora, num mundo melhor.

De repente, acordei. Sentei na cama. Ao lado, minha mulher dormia, com seu corpo de pecadora.

Fui até a biblioteca e vi os livros de Nietzsche, Freud, Pascal, Dostoiévski, Cioran, Bernanos, Roth, Camus, Nelson Rodrigues me olhando com olhos de profetas. Os dedos indicadores em riste apontavam para mim.

Ao lado de minha estatueta da esfinge de Édipo, lia-se: "Conhece-te a ti mesmo". Voltara a ser eu mesmo. Esse miserável escravo das moiras, de felicidade complicada, doçura rara, boca seca e olhos vermelhos. Reconheci-me: sou o mesmo pecador de sempre, sem esperança.

5.3.12

Quando a ciência não se basta, ainda que ela possa quase sempre acreditar que sim


Na última terça-feira, ao dar uma olhada no caderno de Ciência da Folha, encontrei esse texto que, logo de cara, me pareceu fazer referência a algo bem problemático. Isso porque sabemos que quando a questão diz respeito à ética ou a moralidade as coisas não podem ser pressupostas de maneira tão ingênua. 

Os indivíduos burlaram regras? Se colocaram de maneira pouco apreciável e não dentro de uma conduta esperada? Pode acontecer e acontece, sempre. Mas seria isso indicativo de quê: de não respeito à ética ou do desenvolvimento de uma espécie de ética paralela?

O artigo base, do qual texto jornalístico é nada mais do que um resumo, pode ser lido na íntegra aqui.

Seria necessário algum tempo e talvez muito espaço para colocar uma mínima discussão sobre o assunto. Fato é que, quando a ciência se arrisca a fazer certas afirmações, deveria se atentar mais à narração do fato, ou sua descrição, ao invés de fazer uso de termos tão problemáticos e caros à história do pensamento humano. 

De qualquer maneira, foi-me impossível ler o artigo e não me lembrar do aforismo 92 de Humano, Demasiado Humano. Uma passada de olhos pelo texto de Nietzsche já coloca as coisas sob uma perspectiva diferente e bastante mais complexa.  

Aliás, por que será que o filósofo de Röcken tinha tanta implicância com os chamados psicólogos?

Riqueza traz mais chances de agir de forma pouco ética

Pesquisa de psicólogos mostrou que, no trânsito ou em jogos virtuais, quem tem mais dinheiro trapaceia mais 

Resultado pode ter relação com atitude diferente diante da cobiça, vista como algo positivo, diz cientista 

REINALDO JOSÉ LOPES

EDITOR DE “CIÊNCIA E SAÚDE”
Não é todo dia que um estudo publicado numa das principais revistas científicas do mundo cita a Bíblia para explicar sua hipótese de trabalho: "Dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus". A pesquisa não entra no mérito do destino além-túmulo de quem tem muito dinheiro, mas conclui que, de fato, pessoas com status social elevado teriam maior probabilidade de se comportar de modo antiético. 

O resultado polêmico vem de uma série de experimentos conduzidos por psicólogos da Universidade da Califórnia em Berkeley, liderados por Paul Piff, e está na edição eletrônica da revista "PNAS". Em contextos tão diferentes quanto o trânsito, uma entrevista imaginária de trabalho e um jogo de computador, os pesquisadores enxergaram diferenças significativas na maneira como ricos e pobres lidam com dilemas morais. 

Piff e seus colegas tomam cuidado para não dar a impressão de que seus resultados equivalem a uma condenação generalizada dos ricos e a um endeusamento dos pobres. Eles lembram que há muitos milionários beneméritos, colocando Bill Gates nessa categoria, e chamam a atenção para a prevalência de crimes violentos em bairros pobres do mundo todo. 

No entanto, afirmam, os experimentos parecem indicar um tema comum que leva quem tem mais dinheiro a cruzar a barreira do eticamente aceitável: a cobiça. 

DOCE DE CRIANÇA
 
É isso que aparece num dos testes de laboratório da ideia, na qual um grupo de 125 universitários tinha de preencher um formulário sobre a sua própria posição na escala social. Depois, como quem não quer nada, os cientistas colocavam diante dos voluntários um recipiente cheio de doces. 

O recipiente tinha um rótulo dizendo que os doces iriam para um laboratório onde seriam feitos experimentos com a participação de crianças. "Mas, se quiser, você pode pegar alguns doces", dizia o pesquisador ao voluntário do estudo. 

Parece piada pronta, mas o fato é que quem se considerava membro das camadas mais altas da sociedade tendia a pegar mais doces, deixando menos guloseimas para as crianças. 

Em outro experimento, quase 200 pessoas, num teste on-line, participavam de um jogo virtual de dados. Depois, tinham de relatar sua pontuação para os pesquisadores. Os cientistas tinham dito aos voluntários que, quanto mais pontos eles fizessem, maior a sua chance de ganhar um prêmio em dinheiro, no valor de US$ 50. 

A armadilha aqui é que, primeiro, os cientistas afirmaram que não tinham como saber a pontuação da pessoa; ela é que tinha de passar a informação para eles. Mas, na verdade, o dado virtual estava viciado: era impossível fazer mais do que 12 pontos. 

Os cientistas viram que algumas pessoas mentiram a respeito da própria pontuação. E, mais uma vez, quanto mais endinheirado o participante, maior a probabilidade de ele falsear o número.
Os pesquisadores também acompanharam o comportamento das pessoas no trânsito, vendo que quem possui carros caros tem mais tendência a desobedecer regras de trânsito e não dar a preferência para pedestres. 

A psicóloga Maria Emilia Yamamoto, especialista em evolução do comportamento humano da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, confessou estar "abismada" com o estudo.
"Claro que é preciso 'mastigar' um pouco mais esses resultados, mas eles são muito consistentes", afirma. 

Ela chama a atenção para a possibilidade de que ser rico levaria certas pessoas a minimizar as necessidades alheias. "Em vez de dizer que ricos são menos éticos, poderíamos dizer que ricos se tornam menos éticos."





Humano, Demasiado Humano - § 92


Origem da justiça - A justiça (eqüidade) tem sua origem entre aqueles que têm potência mais ou menos igual, como Tucídides (no terrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios) o concebeu corretamente: onde não há nenhuma supremacia claramente reconhecível e um combate se tornaria um inconseqüente dano mútuo,  surge  o  pensamento  de  se  entender  e  negociar  sobre  as  pretensões  de  ambos  os  lados;  o  caráter  da  troca  é  o  caráter inicial  da justiça.  Cada um contenta o  outro,  na  medida  em  que  cada  um obtém o  que  estima  mais  do  que  o  outro.  Dá-se a cada um  o  que ele quer ter, como  doravante seu, e se recebe em compensação o que se deseja. Justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio, sob a pressuposição de uma posição mais ou menos  igual de potência;  assim a vingança pertence originariamente ao domínio da justiça, ela é intercâmbio. Assim também a gratidão.  - Justiça remete naturalmente ao  ponto de vista  de  uma autoconservação inteligente, portanto, ao egoísmo daquela reflexão: "Para que haveria eu de danificar-me inutilmente e talvez nem sequer alcançar meu alvo?" - Isso quanto à origem da justiça. Porque os homens, de acordo com seu hábito intelectual, esqueceram o fim originário das assim chamadas ações  justas,  eqüitativas,  e,  em  especial,  porque  através  de  milênios  as crianças  foram  ensinadas  a  admirar  e  imitar  tais  ações,  pouco  a  pouco  surgiu a aparência de que uma ação justa é uma ação não-egoísta: e sobre essa aparência repousa a alta estima por elas, que além disso, como todas as estimativas, está  ainda  em constante  crescimento:  pois algo altamente estimado é perseguido com sacrifício, imitado, multiplicado, e cresce porque  o  valor  do  esforço  e  zelo  dispendidos  por  cada  individuo  é  ainda acrescentado  ao  valor  da  coisa  estimada.  - Que aspecto  pouco  moral  teria o mundo sem  o esquecimento! Um poeta poderia dizer que Deus postou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana.