30.12.08

Coisas de partida

Há uns anos, quando era obrigado a freqüentar a rodoviária de Campinas todas as noites de sexta, algo no qual eu nunca havia reparado me apareceu com força: o caráter expiatório das partidas e das chegadas.

Eu ficava esperando e observando, por algum tempo, no lugar onde os carros encostavam para que as pessoas fossem pêgas ou deixadas. Abismava: quantos sorrisos, quanta felicidade corporeamente demonstrada. Todos os problemas pareciam encontrar seu fim ali, naqueles últimos ou primeiros abraços, naqueles ois ou tchaus, nos acenos.

Não há como negar que este seja um padrão: sempre que há uma quebra, uma passagem, uma possibilidade de mudança, um bom montante ou quase tudo o que foi vivido é observado através de um ponderamento torto. Num dito popular aproximado: basta morrer pra virar santo.

E no réveillon todo o nosso ano tende a ser tornar santo. Todos os acontecimentos, por mais absurdos que tenham sido, ganham firulas ternas de interpretação. É o momento do perdão dos outros e de nós mesmos. É o momento da reconfiguração dos fatos para algo aceitável; é a hora para nos esbaldarmos no uso daquilo a que costumamos dar o nome de racionalização.

Deliramos a fim de tornar a vida mais admissível. Criamos estórias para que a espera do que vem seja mais suportável. E se o que vier for cáustico, destruidor? - nada que dure mais do que 365 dias, a medida a qual nos acostumamos como período máximo para o suporte da realidade, para seu encaramento verdadeiro, para a vivência dos nossos diferentes tipos de luto.

O réveillon é a rodoviária do ano.

________________________________________________________________________


A palavra latina para porta é ianua*. Isto se deu pelo seguinte: a principal característica física de um dos mais importantes deuses romanos é a de ter duas faces, uma em cada "lado" do crânio. O nome do deus: Ianus.

Mas porta não foi a única coisa que recebeu termo inspirado neste deus. Havia uma outra palavra latina bastante usada e que tem nele a sua origem: Ianuarius. Ianuarius é como se designava o primeiro mês do ano. Não é preciso fazer muitos malabarismos pra perceber que Ianuarius é o nosso Janeiro. E o que é Janeiro, então?
É o mês que tem duas caras: uma para quem fica, e outra para quem chega. Uma face para o ano que finda e outra para o que se inicia.

Janeiro é a porta da rodoviária.



*Há uma versão que inverte a ordem: Ianus teria este nome, então, por conta de ianua. Eu obviamente acredito mais e prefiro a que eu narrei.

28.12.08

A banda do ano

E no meio da monótona mesmice das diferenças, eis que surgem as raposas ligeiras a botar ordem no cool e no galinheiro.

Eleição fácil pois não havia concorrentes.

Ai, ai...

Meu inferno astral segue firme, o que faz com que não acredite mais nisso. O que há mesmo é minha existência física e psíquica torta, com um paraíso astral no meio.

Como sou nietzschiano, quero que se dane: Amor fati! Amor fati! - grito por aí, tendo o cuidado de guardar para os momentos de fraqueza um pouco de paroxetina, tramadol e diazepam, batidos com leite, banana e mamão.

27.12.08

O show do ano

Dia 22 de junho. Um domingo com noite das bem paulistanas: frio, muito frio, e uma bela de uma garoa. No Teatro Municipal, lugar que eu tinha muita vontade conhecer, Bob McFerrin.

Comecei tropeçando no tapete da escada que dá acesso às galerias, quase caindo de boca. Ótimo que as bobagens tenham acabado por aí. Devidamente instalado, olhava deslumbrado os ornamentos do lugar. A iluminação. As pessoas.

No palco, só uma cadeira. Sequer um tecido como cenário.

McFerrin chegou usando uma velha camiseta preta, uma calça jeans surrada, um sapato nada novo. Nas mãos, um microfone e uma garrafa d'água. E foi apenas disso que ele precisou.

Genial. Não há muito o que dizer.

O que interessava ali era só a música. A música em sua forma mais pura, mais humana. Os únicos instrumentos eram a voz e o corpo. O público participava o tempo todo. A música é algo possível a todos. A expiação é possível. Cantava-se de vários lugares: público no palco, inclusive. Aliás, público também dançando no palco. Aliás, público intrumento musical tocado pelo maestro (vídeo).

Bob McFerrin tem a simpatia e o carisma dos gênios que se sabem instrumento. Dos que eu tive a sorte de ver ao vivo, só João e Santana - cada um a sua maneira - me deram impressão parecida.

Ao final todos extasiados e felizes por terem visto. Por terem feito. Pela absoluta falta de soberba de um homem que poderia carregá-la sem problemas porque faz o que quer com a voz. Pela música estonteante. Por saber aquilo inesquecível.




Obrigado à pessoa maravilhosa que estava comigo, mostrou-me isso, e me deu o show do ano de presente.

23.12.08

A vida dos outros

Se houvesse uma versão da "Caras" que falasse a respeito das pessoas que admiro, com certeza eu compraria. Com quantos anos fizeram tal e tal coisa, como eram os hábitos, o lugar onde moravam, o local onde produziam: todas estas coisas sempre me interessaram, sabe-se lá o motivo. Aliás, sabe-se lá não: acredito que venha ser uma espécie de voyerismo pragmático, uma tentativa de identificação por cópia - e de cópia por identificação. Quem sabe se eu fizer igual a...

Há dois sites que estão me facilitando a vida no que diz respeito a estas questões. O primeiro deles, o Daily Routines, como se vê em seu subtítulo, conta como escritores, artistas e outras pessoas interessantes organizam ou organizavam seus dias. O outro, uma página do portal cultural do The Guardian, mostra como são ou eram os escritórios de quem produz filosofia, literatura, ciência e adjacências.

Com os dois devidamente salvos na lista de favoritos, é possível fazer o seguinte:


Charles Darwin



7h. Acordava e saía para uma caminhada.
7h45. Café da manhã, sozinho.
8h–9h30. Trabalhava em seu escritório; considerava esse seu período mais produtivo.
9h30–10h30. Ia para a sala e lia suas cartas, então lia alto as cartas da família.
10h30–12 ou 12h15. Retornava ao escritório, e considerava este o fim do seu horário de trabalho.
12h. Caminhava, primeiro uma visita à estufa, depois pelo jardim de areia, por tanto tempo quanto possível dependendo de sua saúde, acompanhado de um cachorro.
12h45. Almoçava com toda a família, era sua refeição principal. Após, lia o Time e respondia cartas.
15h. Cochilava no quarto ou no sofá e fumava um cigarro, ouvia a narrativa de um livro leve lido por sua mulher, Emma.
16h. Caminhava, em geral pelo jardim de areia, às vezes para mais longe, com freqüência acompanhado de alguém.
16h30–17h30. Trabalhava no escritório resolvendo os últimos problemas do dia.
18h. Descansava no quarto enquanto Emma lia em voz alta.
19h30. Tomava um chá enquanto a família jantava. Em seus últimos anos, nunca permanecia na sala de jantar com os homens, mas tomava o rumo da saleta com as mulheres. Se não havia convidados, jogava duas partidas de gamão com Emma, depois lia um pouco, então Emma tocava piano e lia mais alguma coisa em voz alta.
22h. Deixava a saleta e se deitava às 22h30. Dormia mal.



Um ótimo programa para quando curiosos como eu não têm muito o que fazer - como eu.

19.12.08

MDB - Maurício Pereira - Motoboys, Girassóis, Etc e Tal

Idiossincrasias simbólicas

Em minha relação estranha com algumas palavras - relação esta que todos acabamos por ter -, gosto particularmente de dois momentos.

O primeiro é a ligação indestrutiva que se realiza entre os termos rúcula e ridícula. Sempre que ouço ou falo sobre um deles me vem o outro em mente. Não sei como mudar isso. O resultado é o seguinte: os pés de rúcula me parecem sempre esdrúxulos, dando a sensação de que acabaram de fazer algo imbecil, e, em contrapartida, toda vez que penso ou vejo uma pessoa que classifico como ridícula a enxergo encoberta por uma espécie de invólucro em tom esverdeado, assim como me parece de pronto que ela possui um sabor um tanto amargo, mas que eu gosto.

Salada de pessoas ridículas, rúculas circulando por aí.

A segunda coisa está ligada àquela canção do Gilberto Gil que era tema do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Naquele momento em que ele diz "o sol nascente é tão belo" eu entendia - e ainda entendo - "o sol nascente à tobello". Eu acho essa palavra linda: tobello! Uma das mais bonitas que eu conheço. E o que é tobello? Como eu delirei para resolver isso? Ué: tobello é um tipo, um gênero. Bife à milanesa, pizza à portuguesa, sol nascente à tobello. Óbvio.

Mais tarde, para reforçar a minha relação estranha, aprendi que o poente, em italiano, é chamado de "tramonto" - l'ora del tramonto. Perfeito: o nascente é tobello, o poente é tramonto. L'ora del tobello.

Considerando tudo posso concluir que: duas rúculas comendo uma pizza de rídiculas é algo possível e que pode ser ainda mais prazeroso se feito, com bastante riso, no nascente à tobello.

A linguagem é um instabilíssimo parque de diversões.

16.12.08

Lembrando

Da série Reedições:

Ana e o mar

Y tu, que has hecho de mi pobre flor?


Não..., nada..., definitivamente
Nada possuis de mar.
E azuis e conchas e tessituras
De turvadora claridade jamais
A ti remeterão.

És, em verdade, de
Madeira.

Vê-se no cravo e na
Baunilha do quando
Caminhas.

No olhar dura
E decididamente
Castanho.

Em pernas e braços
Prontos para enlaces
De raiz.

Na pele
Enseivada.

(Não, não venham-me
Com morosas infinitudes,
Ventos, maresias, areias e pedras!

Tragam-me a da ramagem e fuste!
Tragam-me a que aguardo, áulico,
Com guardadas carícias de pássaro
E palavras de chuva:
Tragam-me a que um dia acompanharei florejar).

Não..., nada..., definitivamente
Nada possuis de mar.
A derradeira prova nesta
Enorme sombra que crias.
Ramagens e relva onde agora,
Arrebatado por bandarilhas
De farpas, obrigado me deito.

15.12.08

Grande Dave

Dave Brubeck não faz música: faz hipnose. Seu piano causa redemoinhos mentais, confusões voluptuosas, baixa qualquer guarda e nos deixa expostos.

A sua forma de trabalho é metódica: os temas fluem circularmente à nossa volta até que o processo é invertido e nos coloca em transe - a cabeça é o que gira, o lugar de onde vem as batidas e notas precisas é descentrado. Não se sabe mais onde se está e de onde o mundo vem.

A sensação é de torpor. O sax aparece para dar a textura, o cheiro. As ondas então nos carregam por aí, seres incapazes de oferecer reação que nos tornamos. O baixo e a bateria fazem o contraponto: sim, é possível que percebamos técnica absoluta ainda que em confusa vigília, e há por demais prazer no acesso a este gênero de matemática irregular que se acopla ao pseudodelírio.

Dave Brubeck não faz música: faz naves espaciais.





MixwitMixwit make a mixtapeMixwit mixtapes

13.12.08

Desajeito

Todo início leva consigo o destrambelhamento. Os primeiros passos, as primeiras transas, os primeiros picolés, as primeiras palavras: em todos os começos o ritmo descompassado, o tropeço, a falseadura e a falta de jeito irão, inadvertidamente, dar as caras. Faz pouco e erra, faz demais e ultrapassa. Lacunas e excessos sem que haja a mínima idéia do que seja o meio.

É interessante e, porque não, divertido, notar como esse atrapalhamento é capaz de surgir nos lugares mais abstrusos. No homem tímido que começa a falar e mais preocupado com o "estar a" do que com qualquer outra coisa desacerta em tudo: interlocutor, volume e conteúdo. Na menina que começa a se pintar e pavoneia o que nela poderia haver de encantamento. Na mulher que acredita ser chegada a hora do relumbramento e exagera.

Há uma destas transmutações que me acossa: a da passagem, a partir de qualquer pólo original, do apolíneo ao dionisíaco, da moderação ao excesso. Tudo que há ao redor e por dentro parece muitas das vezes pendular por estas pontas. Eu quero, eu posso seguir sem riscos para o outro lado: o dos exagerados, o dos festivos, e abandonar meu posto de basbaque. No inverso: então eu posso sim me mudar em ser observador, em ser do canto, em admirador longínquo.

Mas quais cacos surgem na passagem, quais gafes são inerentes à tentativa de mudança ou ao simples reconhecimento do outro lado?

De sophrosyne a hybris ando me atrapalhando. De um a outro cometo ridiculices e me estranho - e incomodo com minha falta jeito.

Até quando?

Até o equilíbrio, não é? - penso a borbotões na tentativa de substituir meu jeito monótono por lufadas. - Hummm..., com esta resposta fica claro que voltou ao começo de onde, é provável, sequer saiu, não é? - diz com seu riso preso o lado direito de meu cérebro descaído.

Ao lado esquerdo diminuto não é permitido sequer o esboço de uma risada.

11.12.08

Fito Páez - Llueve sobre mojado

Como agora eu sou uma pessoa má, usarei meu blog para causar transtornos. O que vai aqui não é, portanto, uma canção: é sarcasmo puro!!!

News

Antes de prosseguir com a vida e com textos menos parecidos com páginas de diário, quero levar ao conhecimento das 12 pessoas que lêem este blog três coisas.

A primeira delas é que: sim, ao que parece, o negócio pro meu lado melhorou. Como esperado, a organização dos astros agora permite com que ocorrências menos dramáticas permeiem a minha existência. O que vem a seguir mostra isso.

A segunda delas: ganhei um presente dos mais belos e carinhosos da minha futura esposa. Depois de ter me enganado o dia todo, depois de ter me feito pensar coisas terríveis e sentido raiva, resignação, ódio, tristeza e melancolia, naquele parque de diversões emocional que a indiferença é capaz de fazer ingressar os neuróticos, ela me apareceu com este texto. Eu li e fiquei sem saber o que fazer por alguns minutos. Passado o deslumbramento inicial eu já sabia o que fazer, mas não em qual seqüência: se beliscões primeiro e depois cócegas, ou se o inverso. De qualquer maneira nosso relacionamento tem que evoluir muito, mas muito mesmo, até chegar a este ponto. Explico: é que nós nunca sequer nos vimos. Oxalá isto um dia aconteça - mas tá difícil. Como eu sempre fui um sujeito pós-moderno, ou seja, minhas referências inexistem ou são as mais confusas possíveis, chego a pensar que - quem sabe -, talvez nem precisássemos mesmo nos encontrar. O que vale é o afeto e a banda larga em dia, não é? Hummm... acho que não gostei disso: sou bem à moda antiga. E confuso mesmo, como está demonstrado.

Terceira: bem, sobre a terceira não ficarei divagando - ela fala, e mais do que satisfatoriamente, por si. Outro presente inesquecível e por mim impensável. Quase morri afogado vendo. Obrigado Fê: é lindo, é lindo demais isso. Morram de inveja. Tem o nome de Presente de aniversário para um amigo.



10.12.08

Ela vem chegando...



Ela está chegando.
Daqui a pouco nos veremos de novo.

Ela é linda.
Ela é irritantemente inteligente.
Ela tem uma risada deliciosa.
Ela é tão sortuda que conheceu o Roger Waters sem querer (e me mandou um e-mail histérico logo que chegou em casa).
Ela é madrinha do meu filho.
Ela conheceu um príncipe dinamarquês e foi viver seu sonho.
Ela tem uma família maravilhosa.
Ela é a mulher da minha vida, e sabe disso.
Ela é capaz de me fazer chorar feito criança (de verdade) toda vez que vai embora.

Seja bem-vinda, amiga...

5.12.08

Yo no creo en brujas, pero que...

Quanto mais está a vida de um homem governada por acidentes, mais aumenta neste a superstição.

Hume, em sua História natural da religião, 1757


Antes que vocês comecem a ler de verdade este post chora-pitangas, é de bom senso que coloquem à frente do monitor: uma edição do Corão, uma da Bíblia, patuás - todos os possíveis, alho, uma cruz, imagens de santos e um copo com água e sal grosso. O último será particularmente necessário no final do processo.

Feito isso - e espero que vocês tenham feito mesmo já que é para o bem de todos, posso começar a saga sem correr o risco de ser acusado do que seja. Vamos lá.

Vocês já ouviram falar de inferno astral? Pois é: eu nunca havia fornecido a devida atenção a este negócio, considerado o seu possível valor, imaginado que seria por ele atingido.

Misifios à parte, sempre fui muito bem provido daquilo que Freud chamou de princípio de realidade, o que me impediu por toda vida de acreditar em coisas esotéricas e/ ou exotéricas, no próprio Freud ou mesmo em minha mãe.

Pois bem: agora tudo mudou. Uma enxurrada de acontecimentos desabados nos últimos dias está me fazendo mudar de idéia. Fatos perversos e estranhos estão fazendo com que estabeleça um novo padrão interpretativo da natureza. Universal do Reino de Deus, Universo em Desencanto, Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Lugbara, Universo para Cristo, Bushongo e Lotuko: aí vou eu.

Mas vamos ao fatos dramáticos para que vocês também deixem de nutrir dúvidas sobre o funcionamento cósmico.

Nos últimos 30 dias eu: a) fui acometido por duas cólicas renais, b) tive um balaco-baco com uma pessoa que eu amo de verdade e que me deixou muito, mas muito triste, c) perdi um casamento - deixei de me casar com uma moça legal que eu conheci, coisa com a qual não me conformo até agora e que também me chateou demais, d) estou com uma inflamação na região da mandíbula o que me causou dor, febre e o apelido semanal de Kiko.

OK. OK. Eu sou exagerado, não é? Essas coisas acontecem com todo mundo. Tentei manter um padrão mínimo de sanidade pensando desta forma, mas isto até me deparar com um evento há cerca de 40 minutos. Vejam bem, notem bem e acreditem: não foi delírio ou alucinação - foi um sinal. Só pode ter sido isso - um sinal. Eu eu entendi.

Estava caminhando em direção à minha casa quando notei que uma pomba passava sobre mim, numa velocidade considerável e a cerca de 4 metros de altura. Tão logo percebi o fato, notei que uma outra havia acabado de sair voando de um telhado que estava por volta de 20 metros à frente. E o aconteceu? Sim, meus caros: elas bateram, colidiram, deram um encontrão. Póf... e as pobres caíram estateladas.

Foi o evento mais nonsense ao qual já tive acesso. Tá, eu aceito: afora certa vez em que um sujeito cruzou a Alberto Sarmento correndo atrás de uma roda de carro, que descia rolando em direção ao centro, às 5h30 da manhã, enquanto eu e Emerson tomávamos a última cerveja do dia.

Acontece que nesta época nada mais havia acontecido de estranho ou ruim. Nesta época eu era um sujeito em paz, não afetado por sortilégios cosmogônicos e que, por isso, podia manter a capa bem costurada pela Aufklärung.

Hoje fui iluminado de outra forma. Agora eu sei tudo. Neste momento acredito mesmo que o tal do inferno astral exista, que ele me afetou e afeta, e mais: que posso causar mal às pessoas-coisas-animais que me cercam.

Por isso escrevo este post de dentro do guarda-roupa. Por isso peço a vocês que, após lerem isso, façam uso da água com sal grosso que está aí ao lado, e lavem as mãos.

Torçam para que mais nada, pelamor, aconteça até segunda.

4.12.08

And I try, and I try, and I try... I won't try anymore

Os futuristas estão chegando...




É por isso que eu adoro o Piva: ele é, em suma, um futurista!

Prova: vejam estes versos (pelos quais sou completamente apaixonado) de Ardengo Soffici. São tão... pivanianos*...

L'infinito ha un profumo di frutta matura
di benzina
di cosce di poppe di capelli pettinati dopo la doccia
delle mie ascelle chi adoro
il gelo infiammato del cocomero tuffato a lungo nel pozzo
Bacio la vulva del firmamento senza rumore



Recrio tortamente assim:

O infinito tem perfume de fruta madura
de benzina
de coxas de peitos de cabelos penteados após o banho
de minhas axilas que adoro
o gelo inflamado da melancia engolfada há muito no poço
Beijo a vulva do firmamento sem ruído



* Os versos acima que ganharam página em 1915 num poema cujo nome é Aeroplano.

3.12.08

Engraçadinho com ressalvas, é claro

Novas versões (além das 278 já existentes) da fábula da cigarra e da formiga:

Versão inglesa

A formiga trabalha duro durante todo o verão de calor escorchante e prepara suas provisões para o inverno.

A cigarra acha que a formiga é estúpida. Ela dança, sorri e canta durante o verão inteiro.

O inverno chega. A formiga está bem abrigada no quentinho do formigueiro que possui um formidável estoque de alimentos

A cigarra treme de frio. Ela não tem onde morar nem do que comer. Resultado: morre de frio e de fome.

Fim

Versão francesa

A formiga trabalha sem parar durante todo verão. Ela constrói sua casa e estoca alimentos.

A cigarra acha que a formiga é idiota. Ela diverte-se, sorri e canta durante o verão inteiro.

O inverno chega. A formiga está bem abrigada no quentinho do formigueiro e come muito e bem.

A cigarra tremendo de frio, organiza uma entrevista coletiva para a imprensa. Ela pergunta por que a formiga tem direito de ficar no quentinho e comer bem enquanto que outros, menos sortudos como ela, sentem frio e fome.

A televisão organiza programas de debates entre insetos renomados nos quais mostra a cigarra morrendo de frio, assim como vídeos da formiga em um formigueiro bem aconchegante e com a mesa repleta de alimentos.

Os franceses ficam espantados. Indignação geral. Eles querem saber por que seu país tão rico permite a cigarra viver na “precariedade”, enquanto outros vivem na abundância.

As associações contra a pobreza organizam protestos em frente ao formigueiro.

A esquerda nacional pergunta por que a formiga ficou tão rica explorando a cigarra? O governo é interpelado. Quer o aumento dos impostos da formiga para que finalmente, ela pague a “parte justa” em relação aos seus rendimentos.

Em resposta às pesquisas de opinião, o governo redige uma proposta de lei sobre a igualdade econômica, retroativa ao verão, e antidiscriminatória. Na Assembléia Nacional, parlamentares da direita e da esquerda votam favoravelmente.

A casa da formiga é confiscada. Ela não tem dinheiro suficiente para soldar os impostos elevados nem as multas decorrentes do atraso no pagamento.

A formiga deixa a França. Ela instala-se com sucesso na outra margem do Canal da Mancha, na Inglaterra.

A imprensa francesa realiza reportagens louvando o bem estar da cigarra, doravante, terminando as ultimas provisões da formiga ainda que a primavera esteja distante.

A antiga casa da formiga transformou-se em “habitação social” da cigarra. O lugar se deteriora porque a atual ocupante nada faz para preservá-lo.

Emergem criticas contundentes ao governo que não previu fornecer alocações de renovação para cigarra.

Ao custo de 10 milhões de euros, o governo cria uma comissão para estudar o problema.

Os jornais Libération e L'Humanité comentam o fracasso do governo para reverter a situação das ilegalidades sociais na França.

2.12.08

Atitulado

Fiquei um bom tempo sem sair de casa. Dois meses, quem sabe. Na semana retrasada o ébrio voltou para rever os amigos e já recomeçou mal: esqueceu a chave no carro de um deles e foi obrigado a pular o portão de casa às 4h. Ter sobrevivido foi um milagre. Já devidamente instalado atrás de um oblongo arbusto de azaléias e esperando amanhecer, pude ficar olhando o céu. Fazia tempo que isto não acontecia.

Quando estava entrando na adolescência, ia às vezes acampar com meu pai e seus amigos. Seguíamos de carro até um vila que fica um pouco depois de Parati e, naquele povoado que sequer imagino como se encontra hoje, pegávamos um barco. Ele nos deixava em um lugar chamado "Ilha do Algodão", que de ilha nada tinha, a não ser o fato de poder se chegar ali apenas pelo mar. Era uma praia pequena, linda. Ficávamos ali 10 dias, sem contato algum com o mundo. O uso do relógio era vetado. Um barqueiro vinha, de 2 em 2 dias, saber se estava todo mundo vivo.

Uma das coisas que eu aprendi naquela praia foi olhar o céu, à noite. Não há muito o que se fazer das 21h às 6h num lugar destes. Não há escolha. Descobre-se cedo, entretanto, que ficar olhando para cima pode ser uma experiência fabulosa. Há algo de magnífico ali; a sensação de vácuo, de pequenez e de instigamento são somadas e cravadas na entrada do cérebro. Azul vermelho e prata; azul vermelho e prata: aquilo é um planeta. Prata prata prata: aquilo é uma estrela. Cerra os olhos e vê o caminho leitoso, denso, cercado de preto preto preto. Sente vontade de se jogar na colcha gigantesca. O que haverá ali? Não sei, mas eu vou pular.

Nunca mais me relacionei com o céu desta forma. No dia em que pulei o portão, metade foi olhar que agora pouco vê e metade foi memória devidamente nostálgica. Nada havia de novo além da constatação de que algo se perdeu ou está se perdendo.


______________________________________________________________________



Meu amigo Guilherme tem um blog. Meu amigo Guilherme é dono de incessantes sacadas geniais. Meu amigo Guilherme escreve coisas interessantíssimas. Meu amigo Guilherme é poeta e assim se denomina e assim o denominam não porque deseja ser: ele o é, de verdade. Eu, amigo do meu amigo Guilherme, às vezes,desastradamente, tento. Há uma tentativa minha em seu blog.

Quanto topei com a coisa, gelei. A ilustrá-la uma imagem de Hopper - por mim desconhecida -, artista que meu amigo não sabia ser um de meus prediletos. Meu amigo Guilherme tem dessas coisas: ele carrega a percepção transcendente dos poetas.