30.9.08

Jésus salva, ainda que por instantes...

Hoje me encontrei, sem querer, com um amigo de longa data.

Conheço o senhor Jésus Sêda desde que tenho, sei lá, uns 5 anos de idade. Como ele tem lá seus 50, devo esclerecer que primeiro ele foi amigo da minha tia Rutinha (fazia parte daquele pessoal do qual falei neste post), e só depois, depois de muito tempo, é que veio a se tornar parceiro meu.

O maior porre da minha vida, aquele no qual eu achei que iria realmente pra cucuia, foi tomado ao lado desta figura pra lá de doce. Show d'Os Nômades, banda legal sob o comando do Jorge Fantini (Sia Santa), e Fabiano se emociona pelo fato de o Cidade e Lírios (bar falecido aqui de Campinas) vender capeta, drink tão apreciado há cerca de 13 anos (estávamos em 2006, acho eu) quando este escriba foi comemorar a sua formatura de ensino médio no tão aclamado Porto Seguro.

Ok, ok. Uma cachaça pra começar o papo, e filosofia pra cá, e teatro pra lá, umas cervejas e oito, oito capetas. Fiquei mal galera, mas fiquei tão mal. Quando acordei, depois de ter certeza de que iria morrer - e desta certeza ter se emendado num bom sono - havia capeta até no teto. É a só a culpa que permite com que limpemos tudo depois, sem nojinho, e sem chiar.

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Pois então: fui hoje, no começo da tarde, ao colégio onde leciono e o Jésus estava lá, no comando de uma peça infantil.

Bem: agora vamos parar tudo para algumas explicações - fazer um tour de force para tentar deixar claro o que acontece em minha caixa de comando.

Eu estou mal, bem mal. Naquelas fases de pesar tudo e tentar entender onde foi que eu errei. De saber porque é eu tenho 33 anos e não tenho uma casa, estou sem carro, e não ganho um salário minimamente decente. Porque é que eu terminei o ano ganhando 1/5 do que eu ganhava no começo. Porque é que eu não consigo estar acessível às pessoas. Porque é que me tornei um enorme calo gigante. Porque é que eu quero bater em todo mas não consigo soltar sequer um tapinha, sendo que o espancamento de uns três me deixaria mais calmo. Porque é que eu ainda acho que gasto menos energia contemporizando do que chutando traseiros, já que é óbvio que isto é mentira. Porque é que eu ainda acho que as pessoas devam acreditar que eu tenho algum valor se, no fundo no fundo, filosofia não serve lá mesmo pra muito coisa. Porque é que eu não me vendo ideologicamente e ao menos arrumo uns trabalhos legais. Porque é que eu não me torno prático para o lado prático da vida e volto a me tornar sensível para o lado sensível da vida (em termos perceptivos em geral, acho que ainda vou bem).

Voltemos agora à história.

Eu estava mal, muito mal (estava não, estou) e, de repente, quando entrei na quadra da escola - onde seria a coisa - o Jésus estava lá, como eu já havia dito logo acima. E eu fui até ele. E ele me deu um abraço tão bom, mas tão bom, de minutos tão certos, de pressão tão certa, de carinho tão certo que numa linguagem, digamos assim, bíblica, regozijei. E fiquei bem feliz por um bom tempo. Umas horas acho eu, até voltar à lama na qual chafurdo neste exato momento.

Não sei o que fazer, sinceramente. Não, sei sim: o negócio é esperar, conheço bem. Mas há coisas que poderiam ajudar. Deveria aceitar algumas, mas meu estado super-gêmeos forma de tatu-bola chato e irritante me impede disto.

Então, para tentar me alegrar, tentar me fazer entender as coisas por vias que eu não entendo e não aceito, e para alegrar e agradecer ao Jésus (isto é algo que ele ama), vou apelar para uma musiquinha: uma musiquinha de um musical bem bom.

Inté...

29.9.08

Maurício Pereira - Balangandans

Ah, como eu gosto... mas como eu gosto dessa música!!! Curtam também...

Blau oder Rot? Logik...

Como vocês sabem, um combatente bem preparado deve conhecer muito bem o inimigo. É por esse e por outros motivos, sendo o principal o fato de que, no fundo no fundo, eu só pertença mesmo ao lado da lógica, que eu leio coisas rubras.

O portal Sin permiso publicou hoje uma entrevista com Eric Hobsbawm. Ficou claro, para mim, porque Hobsbawm é Hobsbawm. Há ali, por mais que suas crendices passadas tentem puxá-lo para o outro lado, uma racionalidade que impera. Um dos trechos que mais me chamou a atenção foi o seguinte:

Sin embargo, Marx no regresará como una inspiración política para la izquierda hasta que sea entendido que sus escritos no deben ser tratados como programas políticos, autoritariamente, o de otra manera, ni como descripciones de una situación real del mundo capitalista de hoy, sino más bien, como guías hacia su modo de entender la naturaleza del desarrollo capitalista. Ni tampoco podemos o debemos olvidar que él no logró una presentación bien planeada, coherente y completa de sus ideas, a pesar de los intentos de Engels y otros de construir de los manuscritos de Marx, un volumen II y III de El Capital. Como lo muestran los Grundrisse. Incluso, un Capital completo habría conformado solamente una parte del propio plan original de Marx, quizá excesivamente ambicioso.

Por otro lado, Marx no regresará a la izquierda hasta que la tendencia actual entre los activistas radicales de convertir el anticapitalismo en anti-globalismo sea abandonada. La globalización existe y, casi un colapso de la sociedad humana, es irreversible. En efecto, Marx lo reconoció como un hecho y. como un internacionalista, le dio la bienvenida, teóricamente. Lo que él criticó y lo que nosotros debemos criticar es el tipo de globalización producida por el capitalismo.


O que se vê aqui é óbvio: está longe da anencefalia a qual estamos acostumados, do pensamento daqueles que vivem no século retrasado e não respeitam sequer o preceito fundamental do método no qual acreditam; além do todas as outras cositas más.

A entrevista toda pode ser lida aqui.

The end

Nos últimos três posts (incluam a musiquinha, vai) fiz algumas aproximações entre a Filosofia da Mente e a Inteligência Artificial.

Falei sobre algumas relações entre o cérebro e a mente, e isto por meio de exemplos e questionamentos feitos pelo filósofo John Searle. Os exemplos mostravam um cérebro em degeneração, que tinha partes substituídas por chips de computador.

Em uma das possibilidades de resultado desta experiência, continuaríamos conscientes mesmo que todo o cérebro fosse substituído.

Na outra, começaríamos a perder a consciência na medida em que partes do cérebro fossem trocadas: o nosso corpo começaria a responder aos estímulos externos, mas não teríamos controle disso.

Aos poucos, a consciência seria reduzida até que desaparecêssemos.

Todos esses exemplos têm um único propósito: mostrar que para chegarmos a produzir uma inteligência artificial, ou robôs com emoção e pensamento - como os dos filmes - teríamos que descobrir primeiro o que é a consciência.

Para Searle, jamais conseguiremos recriar este aspecto da inteligência humana. Ele dá um outro exemplo, mostrando como ocorre o funcionamento de uma máquina, e isso para poder diferenciá-la de um homem com consciência.

Ele diz o seguinte: imagine que você esteja em um quarto com duas aberturas.

Através de uma delas alguém passa a você um papel com a seguinte frase: rdjhguy, uiuoiuo rfdjfifj.

Você tem um livro de regras que diz como deve responder acaso receba a frase rdjhguy, uiuoiuo rfdjfif.

Você pega outro papel, responde tyuytuu uiiuibgsjsk - como está marcado no livro -, e coloca-o na outra abertura. Ou seja, você recebeu uma informação, processou e respondeu, mas sem saber nada do que estava acontecendo.

Recebeu uma informação que não sabia qual era e deu uma resposta correta, mas também sem saber o qual. Não teve consciência do que estava fazendo, não teve real participação, ou intenção, na resposta dada.

Para Searle, as máquinas podem funcionar somente deste modo, ou seja, é impossível alcançarmos uma inteligência artificial que se aproxime da humana.

Mas existem pessoas que pensam diferente.

No maior centro de pesquisa sobre Inteligência Artificial do mundo, o Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, alguns projetos vêm sendo trabalhados nesta área. Como o Cog, um robô desenvolvido para ser o mais parecido possível com o homem, imitando movimentos e sentidos; ou o Kismet, um robô que reage como um bebê aos estímulos visuais e sonoros.

Um dos fundadores deste centro de pesquisa, Marvin Minsky, tem uma opinião muito particular sobre a consciência: para Minsky, ela simplesmente não existe. Ela seria somente mais um tipo de memória, que fica repetindo sem parar aquilo que acabamos de pensar ou fazer.

Considerando as coisas desta maneira, podemos dizer que estaríamos mais próximos da construção de máquinas inteligentes do que pensamos.

O filósofo Daniel Dennett, que trabalha no projeto Cog, também pensa dessa forma.

E quem estará certo nesta discussão toda?

A resposta nos será dada em alguns anos.

Mas o que realmente nos interessa aqui são as perguntas, a quantidade de questões colocadas entre a realidade e o sonho, entre a ficção e o dia-a-dia.

Nos interessa mostrar que filosofia e ciência na maioria das vezes caminham juntas, e que o homem só poderá avançar se conseguir decifrar o provável maior dos enigmas do universo: ele mesmo, ou melhor dizendo, como as coisas se passam na sua cachola.

27.9.08

Mais um poquinho...

Bem, no texto anterior eu disse que o desenvolvimento de computadores que possam reproduzir a inteligência humana depende do conhecimento que o homem possui da própria mente, e que algumas tentativas de entendimento da relação entre cérebro, mente e componentes eletrônicos estão sendo feitas com o auxílio de alguns filósofos.

Mais: destaquei o texto de um deles, John Searle, e apresentei um de seus exemplos: uma possibilidade da substituição de partes do cérebro por chips de computadores. No exemplo, isto acontecia sem a perda daquilo que chamamos de mente, ou seja, aquilo que nos diz o que e quem somos e estabelece uma relação entre nós e o nosso mundo exterior, o que nos informa sobre a existência do nosso pensamento e nos diferencia de outros homens ou outros seres vivos.

Tudo naquele paradigma se mostrava simples: sim, era possível a troca de partes do cérebro por elementos de outra ordem, ao contrário do que mostraremos hoje. Vamos ao texto, lembrando que estamos falando de um cérebro com problemas, e que começa a ter as suas partes substituídas por circuitos integrados:

“... à medida em que o silício é progressivamente implantado dentro de seu cérebro em degeneração, você nota que a área de sua experiência consciente está se reduzindo, mas que isso não apresenta nenhum efeito em seu pensamento exterior. Você percebe, para seu completo espanto, que está perdendo o controle de seu comportamento exterior.

Nota, por exemplo, que, quando médicos testam a sua visão, ouve-os dizer: “Estamos exibindo um objeto vermelho na sua frente: por favor, diga-nos o que você vê”. Você quer gritar: “Não enxergo nada.

Estou ficando totalmente cego”, mas ouve sua voz dizer de uma maneira que lhe foge totalmente ao controle: “Vejo um objeto vermelho na minha frente. Se levarmos este experimento... ao extremo, obteremos um resultado muito mais deprimente do que o do primeiro. Você imagina que sua experiência consciente se reduz lentamente a nada, enquanto seu comportamento externamente observável permanece o mesmo.”


O que o texto narra aqui é algo extremamente angustiante. Aliás, das coisas mais angustiantes as quais podemos pensar: o seu corpo começará a responder aos diferentes estímulos externos, mas a sua consciência, a sua mente, começará a desaparecer. Você passará, a partir de um certo momento, a ser algo que vive, responde a perguntas, dirige, trabalha, mas que não tem consciência de nada disso, funcionando como uma máquina*.

Neste ponto então, em que a substituição neuronal não parece ser possível, é que se encontra o que podemos de denominar de um segundo nível da questão levantada pelo texto de Searle: uma máquina que pense, que tenha uma inteligência artificial, tem que ser capaz de ter consciência de sua própria existência, de aprender a se questionar, de fazer perguntas a si mesma, ter dúvidas, e não apenas responder a estímulos externos.

É assim que se comportam os robôs dos filmes de ficção científica dos quais falamos anteriormente, não é? Mas então: isto um dia será mesmo possível? E como ficaria a situação do homem com cérebro de silício?

Amanhã eu digo como o filósofo sobre o qual estamos tratando responde a esta pergunta, além da posição de outros filósofos e cientistas, e ainda: onde se encontram os principais centros de pesquisa sobre Inteligência Artificial no mundo.

P.S - Sobre o * acima: O que se propõe neste momento, e que é algo que já possui certa história na filosofia, na psicologia e na psicanálise, é a relação entre consciência e comportamento. Ainda que fique claro o fato de não haver uma relação total de dependência, paridade mesmo, entre as duas coisas, é nesta relação que se baseia o behaviorismo, radical ou não. Como, então, levar fé numa corrente destas, que faz tanto sucesso em nosso tempo e que se acredita a melhor das psicologias possíveis?

23.9.08

Nós, robôs

Alguns livros e filmes de ficção científica bem interessantes como Blade Runner, I.A - Inteligência Artificial, ou Eu - Robô trazem em seus enredos questões sobre a capacidade de se criar máquinas próximas ao homem, com ações determinadas por níveis bem complexos de pensamento e - o que parece menos plausível - demonstrando emoções ou até mesmo sonhando.

No mundo real, pesquisas com inteligência artificial vêm se desenvolvendo em busca da realização destas possibilidades abertas pelo mundo da ficção. A Filosofia tem participado ativamente deste processo, e isto através de uma área de estudos chamada Filosofia da Mente. Este campo tenta desvendar as relações existentes entre o nosso cérebro (que é um órgão e, portanto, algo físico) e a mente (ou seja, nossos pensamentos, aquilo que nos diz o que somos, o que fazemos ou devemos fazer).

Um dos liames que conectam os caminhos entre a Filosofia da Mente e Inteligência Artificial toma como base a idéia de que, se pudermos compreender fatos sobre como se dá a criação da mente pelo cérebro poderemos, algum dia, reproduzir este processo, criando máquinas como aquelas da ficção científica. Exemplos bem interessantes das questões feitas pela Filosofia da Mente podem ser retiradas de um livro do filósofo americano John Searle, chamado A redescoberta da mente. Vamos hoje a uma delas:

Imagine que seu cérebro comece a degenerar-se de tal forma que, aos poucos, você vai ficando cego. Imagine que os médicos, desesperados... experimentem qualquer método para recuperar sua visão. Como último recurso, tentam implantar circuitos integrados de silício em seu córtex visual. Suponha que... os circuitos integrados devolvam sua visão a seu estado normal. Agora imagine que, para sua maior depressão, seu cérebro continue a degenerar-se, e que os médicos continuem a implantar mais circuitos integrados de silício... no final, podemos imaginar que seu cérebro está inteiramente substituído por circuitos integrados de silício; que, ao balançar a cabeça, você poderá ouvir os circuitos integrados chocalhando por todos os lados dentro do seu crânio.


A questão que aparece no texto do filósofo, aquela considerada de fundo, diz respeito às relações entre a mente e as conexões cerebrais, ou seja, sobre a mente ser ou não apenas uma resultante de funções específicas, não dependendo da completude tanto do aparelho quanto de suas ligações neurais. Uma das possibilidades oferecidas para a sua resposta, e que está demonstrada no texto, é bastante clara: ainda que partes de seu cérebro fossem trocadas por circuitos eletrônicos, você continuaria a ter os mesmos pensamentos, experiências e lembranças que tinha antes das mudanças.

Isto significa que a mente é simplesmente algo configurado por partes de matéria, sendo que estas podem ser substituídas por outras coisas. E mais: que esta substituição, no final das contas, não faria com que fôssemos diferentes.

Bem, considerando as coisas desta maneira, nós poderíamos ser facilmente transformados em espécies de robôs como os dos filmes: parte humanos, parte circuitos eletrônicos.

Mas será mesmo que tudo se passa desta forma, e que porções do cérebro - e conseqüentemente, suas ligações - podem mesmo ser substituídas sem alteração daquilo que chamamos de mente?

Existe, claro, outra possibilidade de resposta para esta pergunta e, por conseguinte, para a questão que está por detrás da construção hipotética colocada pelo filósofo.

É sobre isto, pois, que vou escrever um tanto amanhã, além de outras coisas interessantes sobre a mente e a inteligência artificial.

Inté moçada...

18.9.08

Duas dicas

Acabei de adicionar dois links na categoria "Merecem uma visita", que fica logo aí ao lado. Os dois se referem a blogs interessantíssimos produzidos em nossa terrinha além mar (a minha pátria é minha língua e aquela coisa toda, vocês sabem).

Um deles versa sobre tudo: é uma reunião de textos de intelectuais portugueses sobre política, economia, sociedade, literatura. Há ainda notícias de jornais, crônicas e outras diversões. Enfim: um bom apanhado do que nossos irmãos andam pensando sobre si e sobre o mundo - inclusive sobre nós.

O outro é o blog do José Saramago. Com coisas interessantes, como O caderno de Saramago, a parte realmente escrita pelo autor, e uma denominada Multimédia, onde se pode ver atualmente partes de União Ibérica, um documentário cujo tema central é amor entre Saramago e sua esposa, Pillar. Ah: e há também trechos de um novo livro que está sendo lançado.

Não deixem de passear, ao menos um pouquinho, pelos dois.

Gostei disso




Estou postando porque achei bonita a homenagem: a imagem do Bento Prado Jr. junto às de Nietzsche, Kant, Aristóteles, Wittgenstein, Bergson, Foucault e Deleuze.

17.9.08

Obituário I

Morreu ontem em São Paulo, aos 75 anos, o contista e cronista Lourenço Diaféria.

Não sei quanto a vocês, mas este foi um nome dos mais presentes em minha formação como leitor, e isto graças a uma boa quantidade de textos seus que se espalhavam pelos livros didáticos. E não só por isso: eu gostava dos textos de Lourenço Diaféria.

Como homenagem, vai um conto delicioso, que eu obviamente adorei quanto li: fala de um corintiano apedeuta, e do meu louvado Guarani.



Troquei meu televisor em branco e preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de meus filhos, que agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel fazer um trabalho sobre o Sócrates.
Fiquei uma arara.

Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos aqui da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto.

Tirou zero.

Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que ele é palmeirense disfarçado de sãopaulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco: O Sócrates que ele queria era um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?
Me manguei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova chance.
Falou e disse.

Preveni meu garoto que ficasse de orelha em pé, lá vinha chumbo. Dito e feito. O professor, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.

Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.

Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time da terra das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nenhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antonio Contente, que transa em assuntos culturais e conexos, como seja a imprensa, e pedi por favor que ele me mandasse uma camisa oito autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.

Não é pra falar, mas o trabalho escolar ficou um luxo.

Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação cum laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito.
Pois deu zebra.

Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. O homem deve ser primo do Dicá. Sabem o que o mestre fez? Hem? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.
Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.

- Ilustre - eu disse -, com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, pesquiso, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco da Princesa, e o garoto ganha cartão vermelho?
Que grande cínico! O homem me olhou com aqueles olhos de olheiras - acho que tem almoçado e jantado mal, sei lá dizem que professor padece um bocado-, coçou a cabeça, murmurou:
- Foi o senhor que fez a lição?

Fiquei meio sem jeito:
- Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...

Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:
- Se aceita um conselho, para de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.

Falar isso na minha cara! Tive de agüentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse uma dupla de área chamada Peri e Ceci. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o Zé de Alencar?

- Tá bem - eu disse -, não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra oportunidade ao menino?

Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: o Guarani. É qualquer coisa com índio sioux que de repente se vê obrigado a salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser novela em cores. Mas só para complicar a vida de meu filho, o professor não revelou o horário. Porém desta vez ele não me ferra. Pela dica do enredo, que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigado a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa.

12.9.08

De 1996


De tanto sol queimando
Os cabelos e vento arrancando
A pele, e depois músculos,
Sabíamos do sorriso dos
Ossos pelo som e
Brilho dos olhos.

Mas do homem do canto,
Nada sabíamos.
Parecia carcomido em tudo
O que lhe havia também
abaixo do esqueleto.

Achávamos que este não
sorriria mais.

Sexual fetishism

Gardelina

Meu amigo de Ribeirão, que começa a fazer fama por lá, escreveu nesta semana um post falando da música platina. Reconheço que pouco sei, quase nada mesmo, sobre a mesma.

Entretanto, apesar da falha, me veio à mente que há aquela canção esplendorosa, inesquecível, de Gardel - Por una cabeza -, e que esta canção magnífica foi usada em uma cena, tão bonita, de um filme chamado Perfume de mulher.

Vai a coisa toda aí embaixo. E antes uma dica: ouçam primeiro a música - uma, duas, dez vezes. Deixem que ela tome o lugar que lhe é de direito em qualquer ser humano. Depois assistam à cena: talvez seja possível, então, bailar também às escuras.

11.9.08

Erroll Garner in Rome 1972: For once in my life

Hoje, há anos

Em 11 de setembro de 2001 eu acordei lá pelas 9h da manhã. Amassei uma banana, cortei um mamão em pedaços e fui dar o café ao João, que se levantou cerca de 10 minutos depois de mim. Estava sol, me lembro bem, e eu morava num apartamento que ficava logo atrás da Escola Americana.

Lá pelas 9h30 liguei para minha sogra a fim de combinar algo sobre deixar o João em sua casa para trabalhar à tarde. Foi neste momento que a primeira informação bombástica me foi passada: - Você viu que o prefeito de Campinas foi assassinado? Hã, o quê?

Um sensação estranha. A coisa tinha acontecido relativamente perto de casa, em uma avenida na qual eu costumava passar com certa constância. Desliguei o telefone e em seguida liguei a TV, a fim de saber mais sobre o crime. Neste momento, o Globo News já transmitia direto de Nova Iorque, com uma torre e meia fumegando. Eu não acreditei naquilo.

A torre sul já havia desabado. Repetia-se sem parar a imagem do avião batendo no outro edifício. Abismei. Aquilo não era verdade, era um filme, e eu fazia parte, estando longe de uma tragédia, e bem ao lado de outra. Informações vinham sobre os outros acontecimentos nos Estados Unidos. Não me lembro de algo ser dito sobre a morte do prefeito.

Liguei pra Flávia, que estava trabalhando, e falei sério: olha, vem pra casa porque o mundo tá acabando... não vejo muitos motivos pra você continuar aí. Ela achou que era brincadeira. Não tinha visto as imagens. Não estava sozinha em casa dando banana para uma criança de 2 anos enquanto um mundo bastante estranho se tornava bizarro, enquanto a realidade parecia que se transmutava em papel machê.

Desliguei o telefone de novo e a torre norte caiu. O João brincando no felpudo tapete azul-marinho da sala, as pessoas chocadas na TV, e eu me movendo numa existência gelatinosa.

Fiz o almoço assim. Troquei-me assim. Acabei deixando o João na escola assim. Fui trabalhar. Passei uns dois dias assim: com uma camada gosmenta entre mim e realidade, com uma percepção baça das coisas.

O engraçado da história é que no dia em que eu acreditei piamente que o mundo iria acabar eu fiz tudo do mesmo modo que faria em um dia comum. E ainda que acreditasse no dia seguinte que as coisas iriam verdadeiramente pro beleléu, fiz tudo de novo.

Hoje não creio mais que o mundo acabe, e a minha percepção há muito está limpa. Só fiquei com um pouco de uma gosma estranha e pegajosa entre os dedos, a qual me faz lembrar disso tudo a cada 11 de setembro.

8.9.08

Três poemas de Piva



De Paranóia - 1963


A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?

eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através do meus sonhos




Os anjos de Sodoma

Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder o ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus




Visão de São Paulo à noite
Poema Antropófago sob Narcótico


Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apóia em nada
eu não me apóio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cú nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopéias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidâo e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo

5.9.08

O velho espertinho

Houve uma coisa nesta semana que me incomodou um tanto. Um tantão, na verdade, eu diria.

Tratou-se uma entrevista concedida pelo Ziraldo a um jornal de Campinas. O figura havia aparecido por aqui a fim de participar de um projeto sobre leitura, e resolveu doar um pouco do seu pensamento torto para a galera provinciana. Lá pelas tantas, o cabeça de capacete de algodão soltou a seguinte pérola: "O Maurício de Sousa ganha mais dinheiro do que eu porque ele é mais antigo e menos ideológico do eu".

Sobre a questão do "mais antigo" eu sinceramente não entendi, e na verdade não me preocupa o que ele quis dizer com isso. O que me chamou a atenção foi o resto... Ah, o resto...

Todo mundo aqui sabe que o Ziraldo é o tiozão da esquerda. Aquele povo que só pensa no coletivo, que não liga pra dinheiro, que é aprioristicamente bondoso. Pois bem: só o fato de Ziraldo andar tão preocupado com grana já seria algo - para os desavisados, digamos - esquisito. Mas o irritante aqui é a quantidade de coisas que estão escondidas no "menos ideológico que eu".

Primeiro: o espertalhão faz parecer que é algo menor não ser ideológico, quando na verdade é que isto que se espera, no mínimo, de quem lide com crianças. Ideologia para crianças é crime, apesar de a maioria de nossos educadores - que são da patota - acharem o contrário.

Segundo: foi justamente por ser tão, como ele mesmo disse, ideológico, que Ziraldo ganhou tanto dinheiro, sendo que parte dele saiu de nossos bolsos. Vejamos: Ziraldo é o que é porque participou do Pasquim. Não ponho em dúvida aqui a qualidade de seu trabalho, que se garantia também pela luta que assumiu. E então: ora, se Ziraldo é o que é por conta das coisas que fez contra a ditadura, podemos dizer que, de certa forma, ela não foi lá tão má assim para a sua carreira e, conseqüentemente, para o seu cofre.

E aí vocês podem se irritar comigo e pensar: mas como assim, Fabiano - você exagerou um pouco aqui! Dizer que alguém pode ter se aproveitado do sofrimento de toda uma nação para ganhar com isso? Pois é: e enquanto ganhou dinheiro trabalhando, sem problemas - fez o seu papel. Mas quero lembrar a vocês que em abril deste ano este senhor, que defende com unhas e dentes o seu comunismo, recebeu, dos cofres públicos, R$ 1.000.253,24. Junte a isto o fato de que a partir da mesma data o honorável terá direito também a um salário mensal de R$ 4.376,00. De onde saiu e sairá esse dinheiro? Como já disse acima - repetindo, portanto -, do seu, do nosso bolso, é claro. E por quê? Porque ele se achou prejudicado no exercício de seu trabalho durante os anos de repressão.

No dia em que a coisa foi decidida, o nosso aliciador de menores disse: "Eu quero que morra quem está criticando. Porque é tudo cagão e não botou o dedo na seringa. Enquanto eu estava xingando o Figueiredo e fazendo charge contra todo mundo, eles estavam servindo à ditadura e tomando cafezinho com o Golbery (do Couto e Silva, general, chefe da Casa Civil da Presidência no governo Geisel)".

Entenderam? É isso aí: Ziraldo recebeu uma indenização gigantesca porque pôde trabalhar durante a ditadura. Porque pôde exercer o seu papel. Porque pôde construir seu nome e ganhar muito bem o seu sustento com isso.

Agora pensemos um tanto, neste texto já repleto de dois pontos: o que dá para fazer com 1 milhão de reais e mais 50 mil por ano? Quantas casas se contrói, quanto leitos são atendidos, quantas crianças vão para a escola?

É esse o pensar no coletivo deste povo. É assim que se cria uma classe a que chamamos de burguesia do capital alheio, da qual Lula é seu maior expoente. É assim que ainda se faz graça, criticando quem ganha dinheiro com trabalho correto.

P.S - Por que será que o que Menino Maluquinho gosta de se vestir de Napoleão? Já começo a achar, pelo que disse o criador, que aquela imagem não é tão inofensiva assim. Do que será que Mao, Pol Pot, Pinochet ou Fidel brincavam quando eram crianças?

2.9.08

Carnaval! - Let the children play - Sonzaço!!!

Yo quiero la felicidad
Que da el carnaval...

Yo le digo caballero
Que los niños le quieren jugar
Ellos tienen que jugar
Ellos tienen que jugar...

O Físico e a Pororoca

Um tanto quanto longo, mas merece ser lido. Entrou nas aulas que dei para o terceiro ano sobre a Falácia post hoc, nas quais vimos exemplos vindos também da política e economia.


José Colucci Jr., Ph.D.

É notória a má-vontade dos especialistas para com os jornalistas que se encarregam da divulgação científica. É comum rotularem-se de superficiais as matérias sobre ciência e tecnologia, e de inconseqüentes as sobre medicina e saúde. O que dizer, no entanto, de matéria como a que publicou A Folha de S.Paulo (8/2/01) sobre a homeopatia? A repórter que a assina usou dados da associação máxima da especialidade, consultou profissionais credenciados e ouviu o relato de empresas e pacientes em apoio à homeopatia. O que faz o leitor crítico diante desta e de muitas outras reportagens sobre a medicina dita alternativa? É fácil acusar de levianas matérias que divulguem terapias obscurantistas e carentes de valor científico, mas o que dizer da que promove uma especialidade médica que tem a benção do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira, é utilizada na rede pública, conta com 15 mil profissionais cadastrados no país e ganha adeptos a cada dia?

Pedir que a imprensa seja mais responsável do que as duas entidades oficiais citadas seria ingênuo, mas não descabido. Quando os interesses mercadológicos de uma categoria falam mais alto do que o interesse público, a imprensa deveria ser a primeira denunciá-los – porque só interesses mercadológicos explicam o reconhecimento oficial da homeopatia. Se a homeopatia estiver certa, e existir no universo um princípio cujo efeito seja maior quanto mais diluído esteja, estão erradas a química, a física e a medicina modernas. No resto deste artigo, convido o leitor que não esteja disposto a abandonar as conquistas do pensamento científico a considerar as bases físicas da homeopatia.


Hahnemann, Pai da Homeopatia

Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), o criador da doutrina homeopática, foi um grande médico. Quando começou a formular os princípios da homeopatia (do grego homeo, semelhante, e pathos, sofrimento ou doença), em fins do século 18, o horror que nutria pela medicina tradicional de seu tempo era justificado. Entre os recursos médicos da época contavam-se a aplicação de sanguessugas, os enteroclismas (lavagens intestinais), as sangrias, a administração maciça de drogas perigosas e outros métodos invasivos que geralmente faziam mais mal do que bem. Hipócrates foi a inspiração de Hahnemann para a lei dos semelhantes. Disse ele: "Há doenças que são tratadas pelo similar, outras pelo contrário. Tudo depende da natureza da doença". A noção de que a maioria das doenças pode ser curada pelos mesmos agentes que a causam também é encontrada na medicina chinesa. Se a cura do semelhante pelo semelhante prenunciava-se em Hipócrates, em Paracelso ela era explícita. Foi ele o autor da frase similia similibus curantur, erroneamente atribuída a Hahnemann. Como Hahnemann conhecia perfeitamente o latim e o grego antigo, podemos crer que bebeu de primeira mão dessas fontes clássicas, embora haja quem discorde.

Partindo de observações feitas a partir do uso do extrato de quinino, que, usado em pessoas sadias, parecia produzir os mesmos sintomas da doença que era usado para tratar a malária – chamada então de febre dos pântanos –, Hahnemann formulou o primeiro axioma da homeopatia, conhecido como Lei dos Semelhantes. Outros dois axiomas da homeopatia são a Lei do Remédio Único, que estabelece que o remédio mais eficaz é a substância pura que produza os mesmos efeitos da doença a combater, aplicada em dose única; e a Lei da Dose Mínima, ou dos Infinitesimais, que diz respeito à diluição do princípio ativo, o famoso e controverso princípio do "quanto mais diluído mais forte".

Sem Paralelo

A diluição, chamada em homeopatia de potencialização ou dinamização envolve uma seqüência progressiva de diluição e agitação rítmica, a chamada sucussão. A primeira diluição é obtida adicionando-se uma parte do princípio ativo a nove partes de solvente, geralmente água ou álcool. Faz-se em seguida a sucussão percutindo-se ritmicamente o frasco com a solução contra um anteparo, geralmente uma tira de couro. A potência da solução obtida é de 1DH na escala decimal hahnemanniana, ou seja, uma parte em dez. Para obter-se a potência 2DH, no mesmo sistema decimal, mistura-se uma parte da solução anterior em nove de água, o que resulta em solução com uma parte de soluto em 100 (1 seguido de dois zeros) de solvente. Similarmente, obtém-se as potências seguintes, de 3DH até diluições extremas como 30DH, ou seja, 1/1030, uma parte de soluto em volume de solvente representado pelo número um seguido de trinta zeros.

Embora as diluições mais usadas estejam entre 6DH e 30DH, a coisa não pára por aí – há diluições ainda maiores. Além da escala decimal, representada por DH, existem outras. A escala centesimal hahnemanniana, por exemplo, representada por CH, é bastante usada. Na escala centesimal, uma solução 1CH é 1/100, 2CH é 1/10.000, 3CH é 1/1.000.000, e assim por diante. São comercializados remédios homeopáticos que vão até 200CH, ou 1/100200. Diluições tão altas escapam à compreensão, por não terem paralelo em nossa experiência comum. Os exemplos das seções seguintes talvez ajudem e surpreendam.

Hahnemann e Avogadro

Hahnemann foi contemporâneo de Amadeo Avogadro (1776-1856) mas certamente não conheceu o trabalho do grande químico e físico italiano. O Organon foi publicado um ano antes da formulação da hipótese de Avogadro; muitos anos antes, portanto, da determinação do número que veio a ser conhecido por Constante de Avogadro. Avogadro descobriu que o número de átomos ou moléculas em um mol de uma substância qualquer é constante. Esse número – determinou-se mais tarde – é igual a 6,022137 x 1023. Um mol, ou molécula-grama, é o equivalente em gramas da massa molecular da substância. A massa molecular da água, por exemplo, é 18, pois a molécula da água, H2O, contém dois átomos de hidrogênio, de massa atômica 1, e um átomo de oxigênio, de massa atômica 16. Assim, há exatamente 6,022137 x 1023 moléculas em 18 gramas de água.

As leis da química permitem determinar a solução mais diluída que pode ser preparada sem a eliminação completa da substância original. Estatisticamente, só é garantida a presença de pelo menos uma molécula do princípio ativo em soluções mais concentradas do que uma parte de soluto por volume equivalente à constante de Avogadro de partes de solvente, ou seja, 1 parte de soluto por 6,022137 x 1023 partes de solvente. Isso quer dizer que a partir das potências homeopáticas 24DH ou 12CH, ou 1 parte em 1024, a chance de existir uma única molécula do princípio ativo no medicamento é quase nula, e diminui ainda mais com a elevação da potência.

Sucussão da Pororoca

O Amazonas, maior rio do mundo, por onde passa um quinto de toda a água da superfície do planeta, descarrega no mar cerca de 175 mil metros cúbicos de água por segundo. O volume é tanto que a 150 km de sua foz as águas do mar ainda são menos salgadas devido ao enorme volume de água despejado pelo rio. Fazendo as contas, verificaremos que a vazão do Amazonas é igual a 1,75 x 1011 centímetros cúbicos por segundo. Um centímetro cúbico de água contém aproximadamente quinze gotas; a vazão em gotas por segundo é, portanto, de 2,63 x 1012. Na diluição homeopática 30DH, uma parte de princípio ativo – digamos, uma gota – é diluída em 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 gotas de água. Para despejar essa quantidade de gotas, o Amazonas levaria cerca de 3,81 x 1017 segundos, ou seja, 12.079.920.756 anos. Imagine que fosse possível arranjar um meio de conter toda essa água, que é equivalente a milhares de vezes o volume de todos os oceanos da Terra. Para chegar à diluição 30DH seria só pegar um conta-gotas, ir até a foz do Rio Amazonas, no Pará, pingar uma gota de princípio ativo no rio e aguardar pouco mais de 12 bilhões de anos até a diluição final. E esperar que a pororoca se encarregue da sucussão.

O Pato de 20 Milhões de Dólares

Se o leitor ficou surpreso com o cálculo acima, apresento outro ainda mais surpreendente, este de Robert L. Park, físico da Universidade de Maryland, nos EUA. Um produto chamado Oscillococcinum, produzido a partir de fígado e coração de pato, é comercializado na potência 200CH. Se uma única molécula da substância original pudesse estar presente no produto final, sua diluição seria de 1 por 1 seguido de quatrocentos zeros – um número maior do que o número estimado de átomos em todo o universo conhecido, que não é mais do que um mísero googol, ou seja, 1 seguido de apenas 100 zeros. O Oscillococcinum é vendido como tratamento para os sintomas de gripes e resfriados. A revista americana U.S. News & World Report (17/2/97) observou que um único pato seria suficiente para fabricar o estoque anual do produto [o fígado de apenas um pato poderia, na verdade, servir para fabricar todo o estoque do produto até o fim dos tempos], cuja venda total foi de 20 milhões de dólares em 1996. Como se vê, a popularização do uso do Oscillococcinum não chega a ameaçar os patos de extinção.

Os remédios homeopáticos para uso interno são ingeridos na fórmula de glóbulos, tabletes, pó ou diretamente na forma de solução hidroalcóolica ou aquosa. As formas sólidas – glóbulos, tabletes e pós – são fabricadas pingando-se uma gota da solução diluída sobre um veículo inerte, geralmente sacarose ou lactose. Park calculou que, para ter certeza de ter ingerido uma única molécula da substância medicinal presente na potência 30DH, seria necessário ingerir dois bilhões de tabletes, cerca de mil toneladas de lactose mais as impurezas que a lactose porventura contenha.

Os fatos apontados acima são entendidos e aceitos pelos homeopatas. O próprio Hahnemann percebeu que provavelmente nenhuma molécula da substância original restaria após essas diluições extremas – as chamadas diluições ultramoleculares. Hahnemann acreditava, no entanto, que a ação vigorosa da sucussão deixa no solvente uma "essência espiritual imperceptível aos sentidos" que estimularia as "energias vitais" do corpo. Se hoje esse tipo de linguagem soa pouco científica, no tempo de Hahnemann ela podia-se justificar. Basta lembrar que seus colegas de profissão ainda falavam em extrair o sangue mau e balancear humores.

Mais do Que Uma Vaga Lembrança

Alguns proponentes atuais da homeopatia, incapazes de contestar a realidade física da constante de Avogadro, afirmam que mesmo quando desaparece a última molécula do principio ativo, sua "memória" permanece na solução. O assunto, antigo, ganhou vida nova em 1988 quando Jacques Benveniste e seus colegas publicaram na prestigiosa revista Nature um trabalho que parecia indicar que anticorpos diluídos em soluções de até 30DH – bem acima do limite teórico de Avogadro – ainda conseguiam produzir respostas biológicas (Nature 333: 816, June 30, 1988).

Benveniste atribuiu essa propriedade à "memória" da água, que, após a sucussão, ainda se "lembrava" dos anticorpos que encontrara antes embora não existisse uma molécula sequer deles na solução diluída. Diante do ataque da comunidade científica ao artigo, o editor da revista, John Maddox, disse em editorial duvidar do acerto das conclusões de Benveniste, mas que as publicara assim mesmo em nome do livre intercâmbio de idéias.

A controvérsia gerada levou a Nature a nomear uma comissão científica para investigar o caso. Concluiu-se que os procedimentos de Benveniste careciam dos procedimentos rigorosos que devem orientar a pesquisa científica. O experimento de Benveniste nunca foi reproduzido com sucesso por pesquisadores sérios e, com o tempo, Benveniste começou a cair em desgraça. Na percepção de seus colegas, Benveniste passou de cientista respeitado a doido varrido, perdendo verbas de pesquisa e seguidores fora do círculo de homeopatas radicais. O próprio Benveniste não coopera muito com os que tentam resgatar-lhe a imagem, pois sua última descoberta é que a vibração das moléculas pode ser captada, gravada e enviada por telefone, produzindo efeitos à distância. Por essa contribuição, Benveniste ganhou o Prêmio IgNobel da Universidade Harvard, atribuído anualmente a pesquisas estapafúrdias.

A Falta de Memória da Água

Concedendo o benefício da dúvida aos que acreditam que Benveniste seja mais um mártir da arrogância da ciência oficial, esforcemo-nos para acreditar, por um breve momento, que a água consiga, de alguma forma, "lembrar-se" de outras moléculas com que tenha tido contato. O que deveria nos surpreender neste caso não é a memória, mas a falta de memória da água. A água que existe no mundo já viu muita coisa; já foi nuvem, mar e rio; já foi arrastada em enxurradas desde a cidade de Ur na Mesopotâmia até a favela da Rocinha; já passou pela banheira de Cleópatra e pela bexiga de Júlio César; já escorreu pela fronte de Napoleão e pelas cachoeiras da Casa da Dinda. Espanta que tenha se esquecido de tudo o que viu. Continuemos, no entanto, a demonstrar a nossa boa vontade para com os homeopatas e assumir que a destilação faça a água "esquecer" as moléculas que tenha encontrado em seu passeio através dos tempos. Vamos também fazer de conta que a destilação elimina todas as substâncias dissolvidas na água, o que não é verdade. O que dizer então da contaminação no momento do preparo? O que acontecerá se uma partícula de impureza atingir a água no momento anterior à sucussão? É fácil imaginar como isso pode acontecer no laboratório de manipulação. Vamos a um exemplo.

A fabricação de semicondutores exige extrema atenção quanto ao nível de partículas presentes no ambiente. As salas limpas são classificadas como classes de pureza 1, 10, 100, 1000, 10.000 ou 100.000, dependendo do número de partículas de até 0.5 ?m por pé cúbico de ar. Para se ter uma idéia o que isso significa, o limite de visibilidade do olho humano é de 50 ?u, cerca de metade da espessura de um fio de cabelo. Semicondutores são fabricados em salas limpas de classe de pureza melhor do que 100, onde a exposição de qualquer parte do corpo humano não é tolerada. A razão dessa precaução somos nós humanos, animais sujos, que deixamos um rastro de resíduos por onde passamos. Estima-se que em sessenta segundos uma pessoa imóvel gere cerca de 100 mil partículas – fragmentos de pele, sal, gotículas de óleo, umidade, desodorante e cosméticos – de tamanho suficiente para danificar um circuito integrado em fabricação. Pois bem, ainda que os remédios homeopáticos fossem preparados numa sala limpa de classe de pureza máxima, a chance de haver mais partículas estranhas do que moléculas do princípio ativo na preparação final seria grande. E os laboratórios de manipulação, como se sabe, estão longe de rivalizar com a Intel em matéria de limpeza. Como é que a água sabe distinguir o que é princípio ativo e o que é uma molécula de enxofre do xampu da preparadora? Como distingue, na memória, a molécula do fígado de um pato das milhões de moléculas orgânicas que o preparador despeja no ar pelo mero ato de respirar?

É melhor retomarmos aqui o nosso ceticismo científico, pois a crença nos axiomas da homeopatia exige o abandono do pensamento que conduziu a ciência e a tecnologia a onde se encontram hoje. Retomemos também a reportagem da Folha de S.Paulo.

O Que Dizem os Homeopatas

Quanto a reação à crítica científica da especialidade, há homeopatas que dizem ter tirado de sua experiência clínica com a homeopatia demonstrações suficientes de sua eficácia como método terapêutico e há os que insistem em achar um arremedo de explicação científica para essa crendice do século dezenove. Os primeiros beneficiar-se-iam da revisão de alguns conceitos de estatística, método duplo-cego e efeito placebo. É fato conhecido que em experimentos duplo-cego – em que nem o experimentador nem os sujeitos do teste sabem quem está tomando o medicamento e quem está tomando o placebo – uma parte significativa dos que tomam o placebo apresentam melhora de seu quadro clínico. Quanto ao segundo tipo, os que tentam justificar cientificamente a homeopatia, não há o que dizer – a posição é insustentável. As explicações oferecidas para o mecanismo de ação da homeopatia não passam pelo escrutínio de um aluno de primeiro ano de física. Teorias difíceis e mal compreendidas como a física quântica e o princípio da incerteza de Heisenberg são misturadas a crendices extemporâneas e oferecidas como explicação. Isso quando não falam de "forças ainda não descritas pela ciência, que só agora começam a se compreender".

Os especialistas ouvidos pela Folha não parecem ser radicais e recomendam a homeopatia em associação com outros tratamentos. Esse é um bom conselho. O tratamento homeopático não oferece perigo algum quando se trata de gripe branda ou resfriado: o que medicina cura em uma semana, a homeopatia cura em sete dias, já que o tratamento convencional também é ineficaz para aqueles males. O caso é outro, porém, quando se usa a homeopatia para tratar de doenças que possam deixar sequelas ou mesmo causar a morte. Um dos websites homeopáticos que consultei para escrever este artigo aconselha, num raro momento de sabedoria: "Nas doenças infecciosas graves como na meningite, tuberculose, febre tifóide, é conveniente a utilização concomitante com os antibióticos". Não poderíamos deixar de concordar, com uma pequena mudança na redação. Em caso de doenças graves aconselha-se usar o remédio indicado pela medicina científica. Se a crença do paciente exigir, o tratamento pode ser complementado com homeopatia, simpatia, florais de Bach, promessas a Ossanha ou orações a Nossa Senhora de Aparecida.