18.6.17

Cidade

Ontem caminhava pela praça do Centro de Convivência e pensava no quanto minha cidade é bonita nessa época do ano. Que sua luz, as cores, o céu, são quase incomparáveis no inverno. O gracejo se estancou por aí. O fato é que não tenho conseguido mais andar por essas ruas. Há lembranças demais se colocando em cada esquina, em simples atalhos, exagerando em grandes avenidas. Andar por Campinas, hoje, me dói.
Nostalgia é uma palavra que tanto deveria pesar? Em mim, sempre carregou algo de melancólico demais. Busco explicações. As histéricas sofrem de reminiscências. As pessoas de 40 anos, também? A cada passo uma nova. Um gostaria de viver aquilo de novo, ou ter novas chances. Metade da praça, meu filho bebê, sorrindo. Outro lado, eu sentado em quase desespero com flores entre as mãos. Devo deixar um envelope nesse banco contando minha história daquele dia? E nesse? Nesse agora?
Aqui havia um bar onde sorri com quase desconhecidos numa noite quente. Não sei o ano. Aqui havia outro, com outras tantas confusões. A cidade está repleta de fantasmas que se perpassam, que convivem em diferentes tempos. O sorvete com minha avó, o teatro com alguém que não me lembro o nome. Nessa casa abandonada, certa vez, fiz um poema para uma amiga. Quase incendiamos uma padaria numa comemoração divertida de aniversário. Bem ali. Os prédios tombam, mas não levam tudo o que deveriam.
Pensei em me mudar. Pela primeira vez pensei realmente em me mudar. Imagino que muitos o façam pelo mesmo motivo. Não sei se daria certo. Aconteceria o mesmo em qualquer lugar que fosse. Ao contrário do que dizem as agências de viagem e a moda de estar fora, as cidades nunca são tão diferentes assim. Há aquela esquina que sempre se parecerá com alguma esquina que já está comigo, e é justamente por conta e através desta que aqui está que consigo ver todas as outras. Uma rua diferente será diferente porque houve uma igual. Entre a igualdade e a diferença, um ajustamento que é a memória. Uma adequação da lembrança. Essa coisa de, na verdade, estar no mesmo lugar.
Não consigo mais andar por Campinas. Meu avô me levando ao campo de futebol, eu preso no trânsito, comendo pastel na feira depois de ter passado a noite acordado, ouvindo Mauricio Pereira pela primeira vez. A escolha do caminho determina o trilhamento da lembrança. Há caminhos que não quero mais fazer porque sei em que imagens mentais vão dar. Não há viadutos ou pontes nos percursos da memória. Não nas minhas.
Camadas e camadas de rumores, coloridos e saudade. A cidade zoneada a pás e pás de história. Às vezes um pouco de desatenção e estou dentro de uma geleia de coisas que lembro. Por ali não vou; a lembrança já aponta na quina do cérebro e não, por ali não. Há hidrantes de taquircardia. De faltas de ar. Meu outro avô morreu ao repisar a rua de casa depois de anos de fuga. Será?
Tenho declinado convites, caminhado dentro de tentativas de disfarce, andado quadras e quadras ao buscar criar desvios mentais. Nada funciona. Nada. Sinaleiros do tempo. Tem sido difícil caminhar pela minha cidade. Espíritos atravessam as ruas comigo de mãos dadas e, como a uma criança, me entregam à dorida lembrança seguinte. Andar por Campinas dói. Penso na realidade da luz de inverno que admirei ontem.

Era de ontem?

31.1.13

Refazendo as coisas



A casa vai ficando velha; as paredes parecem estar um tanto mais escuras. Porém o mais importante, o mais decisivo é que as coisas vão se entulhando: cadeiras quebradas, roupas antigas, armários, parafusos, TVs, sofás, panelas, chaves e cheiros. Tudo devidamente amontoado, confuso, um tanto amortecido ou um tanto morto.


Engraçado que o movimento mais óbvio, quando o mundo chega neste pé, é que as coisas antigas se unem às formigas, às traças e às aranhas. Ah, as aranhas! Ajudam a prender o antigo nas paredes, como se os objetos com o tempo fossem capazes de por si só emitir algum tipo de substância indicadora do tempo. É como se a teia fosse o sofá se fundindo com a parede e a aranha, por sua vez, somente o bichinho que mora lá.


Não se sabe, por vezes, quando se olha em volta, se a casa dita a vida ou se a vida se projeta na casa. Aliás, é triste demais quando a vida fica assim, como uma casa sem cuidados. É necessário, quase sempre, que pensemos neste nosso andamento com acontecimentos como quem pensa num lar que deve ser reavivado.


É preciso que, no mínimo, de tempos em tempos, os móveis sejam mudados de posição, que as coisas antigas ganhem novas funções, que os cheiros passem a ser outros.


Melhor ainda se algumas coisas forem definitivamente postas no sótão, que as paredes sejam repintadas, que coisas novas preencham o ambiente, que as janelas e portas se mantenham quase sempre abertas; mas sabemos o quanto essa forma toda nova é muito mais difícil, quase impossível.


De tudo isso, entretanto, o mais impossível, o mais complexo em todas as reformas acontece quando as paredes devem ser quebradas. E como dói, e como ficamos confusos, batendo a cabeça onde antes nada havia, fazendo caminhos mais longos, até descobrirmos que o novo arranjo interno da casa é, realmente, melhor do que o antigo.


Em um dos mais importantes textos filosóficos da história, as Meditações Metafísicas, Descartes propõe que, ao menos uma vez em nossas vidas, sejamos capazes de destruir, desde os alicerces, tudo aquilo que conhecemos, que abandonemos as falsas crenças em favor de outras, mais verossímeis.


Mas como podemos fazer quando as crenças mais antigas são aquelas das quais gostamos, ainda que não necessariamente nos façam bem, nos ajudem?

Enterrá-las no quintal talvez seja uma boa solução.  Plantar uma árvore em cima, melhor ainda. Só assim o antigo, o mofado, pode alimentar o novo e deixar que sobre o escuro nasça algo diferente; algo verdinho, verdinho.

5.9.12

Fazendo girar o Circuladô de Haroldo e o Circuladô de Caetano


Do livro Galáxias, Haroldo de Campos, 1984:





 circulado de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não
posso guia eviva quem já me deu circulado de fulô e ainda quem falta me
dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e
uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para
outros não existia aquela música não podia porque não podia popular
aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não
tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais
megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um

ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo
tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol
enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde a boa forma é
magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro malcozido no choco
do desgosto até que os outros vomitem os seus pratos plásticos de bordados
rebordos estilo império para a megera miséria pois isto é popular para
os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila
o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha
no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol
pois não tinha serventia metáfora pura ou quase o povo é o melhor artífice
no seu martelo galopado no crivo do impossível no vivo do inviável
no crisol do incrível do seu galope martelado e azeite e eixo do sol
mas aquele fio aquele fio aquele gumefio azucrinado dentedoendo como
um fio demente plangendo seu viúvo desacorde num ruivo brasa de uivo
esfaima circulado de fulô circulado de fulô circulado de fulôôô
porque eu não posso guia veja este livro material de consumo este aodeus
aodemodarálivro que eu arrumo e desarrumo que eu uno e desuno vagagem
de vagamundo na virada do mundo que deus que demo te guie então porque eu
não posso não ouso não pouso não troço não toco não troco senão nos meus
miúdos nos meus réis nos meus anéis nos meus dez nos meus menos nos meus
nadas nas minhas penas nas antenas nas galenas nessas ninhas mais pequenas
chamadas de ninharias como veremos verbenas açúcares açucenas ou
circunstâncias somenas tudo isso eu sei não conta tudo isso desaponta não
sei mas ouça como canta louve como conta prove como dança e não peça que
eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa
que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu

acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo
e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito
que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio
não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento bagagem de
miramundo na miragem do segundo que pelo avesso fui destro sendo avesso
pelo sestro não guio porque não guio porque não posso guia e não me peça
memento mas more no meu momento desmande meu mandamento e não fie desafie
e não confie desfie que pelo sim pelo não para mim prefiro o não
no senão do sim ponha o não no im de mim ponha o não o não será tua demão



Do disco Circuladô, Caetano Veloso, 1991:



3.9.12

Old love, velhas canções, novo João

- Hoje à tarde eu digitei no Youtube "solos Eric Clapton". Aí fiquei ouvindo algumas coisas; algumas músicas inteiras, alguns solos.

Logo que ele me falou mostrei interesse e fiz uma busca idêntica.

- Sabe, alguns deles me emocionaram muito. O que meu gostei fosse esse aqui que apareceu primeiro, essa versão de Old Love. Isso é muito bonito! Sabe pai, eu fiquei mesmo emocionado. Quase chorei pai. Foi estranho.



Pensei comigo: caceta, é umas das coisas mais bonitas que já vi também - é um dos meus preferidos, me traz coisas tão fortes a cada vez. E um sorrisinho se fez no cantinho da boca satisfeita.

- Aí eu me lembrei que no show que a gente foi ver essa foi uma das músicas que mais me emocionaram também. Então fiquei lembrando do show, de como foi legal. Dessa música no show. Fiquei vendo ele tocar, lembrando. Você percebeu que nenhum solo é igual ao outro? Cada vez ele faz diferente. E parece que ele toca com o corpo todo,  com o estômago, com tudo. A música sai dele todo. Fecha os olhos e faz aquelas coisas tão bonitas...




Aí então você fica feliz, feliz, feliz de ouvir coisas assim do seu filho. Quer compartilhar com todo mundo. Dizer que ele percebe as coisas, que ele sente o mundo. Dizer que acredita mesmo que o esforço pra fazer as coisas da melhor maneira possível escancaram seus resultados. E você fica feliz, feliz, feliz quando, ao me ver escrever esse texto, aqui atrás, agorinha mesmo, ele diz novamente que ficou ouvindo e sentindo coisas fortes e diferentes hoje de novo, com interpretações que vêm sei lá de onde mas que são lindas. E diz isso pulando como um doido, brincando com uma bola de ping-pong e com a camiseta estampada com Rubber Soul na frente que ganhou ontem, mas que não tirou até agora e já está marrom.

           

17.5.12

É isso aí


mas isso é verba do quê?
XXX diz:
rs
Destinada a incentivo aos novos docentes. Chama-se exatamente assim: Incentivo aos novos docentes. Aos que tem até 2 anos e meio de casa
Fabiano diz:
que beleza...
é uma putaria generalizada mesmo, né...
XXX diz:
rs mais ou menos
Como sou da humanas realmente sobra dinheiro, pois para minhas pesquisas não me utilizo de grandes equipamentos. Uma câmera fotografica, um gravador e um note me resolve muito bem. Mas para o pessoal da biológica, por exemplo este dinheiro vai bem rápido com equipamentos
Tenho realmente usado com inscrição de eventos e usei para viagem inter
mas não acaba....
Fabiano diz:
vc deveria comprar livros...
XXX diz:
Já comprei alguns. Mas, muito eu já tinha comprado com $ própria
enfim...
agora pretendo usar com o ipad.
Viu o preço no link que me enviou?
Fabiano diz:
sim... 2.000,00
XXX diz:
Perto do total que tenho....é tranquilo
Fora outras fontes de entrada de $ que posso recorrer, como os apoios da Fapesp, por exemplo. Então o negócio é torrar!
Fabiano diz:
Nossa, tô sem palavras...
XXX diz:
Bom, mas pelo link que me enviou não consigo ver se é ipad 2 ou 3. Qual é o ultimo, sabe?
Fabiano diz:
não sei...
XXX diz:
sem palavras? rsrsrsrsrsrs
Fabiano diz:
chocado com a sua consciência social...
XXX diz:
Fá,....o que acha que eu deveria fazer? Devolver ao meu reitor? Não posso doar às criancinhas pobres do nordeste...ou gasto e justifico como algo util para minha vida acadêmica ou devolvo.
Fabiano diz:
acho que vc deve se sentir responsável por isso... compre livros e doe pra biblioteca... devolva... não fique inventando gastos com coisas que são um tipo de luxo... 
isso é dinheiro de imposto de gente que não tem água encanada na escola dos filhos...
XXX diz:
rs
Fabiano diz:
enfim... não vou ficar debatendo isso... vc sabe de tudo...
XXX diz:
somos absolutamente diferente...isso é inegavel!
Fabiano diz:
espero que vc conte essas histórias pros seus alunos de ... aliás, poderíamos mostrar o quanto somos diferentes num debate sobre gastos públicos em sala... tá a fim?
XXX diz:
Nossa, ficou bravo!
Desculpe....
Fabiano diz:
Não estou bravo...
estou chocado mesmo...
e bastante decepcionado...

17.4.12

Por uma libertação onírica


Há uma potência causadora de dor, em meus sonhos.

Disso eu sabia há tempos. Reconhecia a forma agoniante que ele tinha e tem de me dizer coisas. Algumas delas necessárias; doídas, ricocheteantes; devidamente usurpadoras; tiradoras de unhas; mas necessárias.

No mês passado estava à minha frente o corpo nu de meu avô. Eu o observava através de uma porta. Em uma outra abertura minha mãe em pé, para quem comecei a dizer: Precisamos enterrar o vô - ele está nos pedindo pra que o enterremos. Precisamos enterrar o vô. E a figura e meu avô ali, silenciosa, mas me gritando, me pedindo.

Era e é preciso enterrar meu avô. O seu sofrimento final que acompanhei tão de perto. A sua figura pilar. O seu não estar mais aqui. O sonho ainda ressoa com sua imagem que poderia ser outra, com sua fala que poderia ser ainda mais latente. Mas os meus sonhos não são assim: têm uma sádica vida que parece ser própria. Acordo e os sinto reverberar por dias, meses. E eles às vezes parecem tentar acabar mesmo comigo. Nesse caso narrado só um pouco: a dureza excessiva me avisava de uma necessidade. Preciso enterrar meu avô. Sequer posso guardar seus óculos e relógio em minha gaveta de camisetas como ainda faço. Não. Ele precisar ir. Preciso deixar que isso aconteça.

Mas e quando o sonho só revive passados e diz:

- Você gostava disso, meu amigo? Gostava, não gostava? Então você vai ter isso aqui; só aqui, tá! E quando acordar vai querer voltar. Vai querer ficar por esse lugar. Vai querer dormir e dormir e dormir e dormir... Mas não garanto que essa situação retorne. Que esse momento específico com todos seus volteios confortáveis e reconfortantes ressurja. Quer arriscar?

E então não vejo sentido. Só angústia. Angústia. Angústia. E um pouco mais de angústia. E muito mais, na verdade. E coisas que estavam fechadas de uma forma tão bonitinha por fora se mostram e não as quero de novo; também coisas das quais eu jurava ter me desvencilhado há tempos. Como isso? Por que isso, e aqui?  Uma piscina com uma queda d’água enorme, eu lá em cima, água morna, ladrilhos brancos com riscos vermelhos, música vindo de algum lugar, eu olhando pra baixo. Sonho uterino que logo me jogará no desamparo da nostalgia, na agonia do retorno do impossível, ou do impossível retorno. E para quê? Como dar pontos nessas aberturas? Como colar isso? Realização de desejo só dentro do sonho não é realização de desejo: muitas das vezes é liquidificador de gente.

Teria Fabiano passado a mancheias pela fila da pulsão de morte?

Meus sonhos são na sua maioria pesadelos preconizados. Capricham na construção do que projetam para depois. Tornam a minha vigília larga e dorida. Preferiria ter maus sonhos na hora certa.   

                                                          A música do sonho 

2.4.12

Paisagem pelo sonho

Eu dormia dentro do sonho, e nesse apagamento secundário lidava com uma única sensação: calor, apenas calor.

E dentro do sonho acordei.

E acordei em um quarto todo bege bem claro, um quarto gigantesco, com o pé direito enorme e uma janela que cobria todo o meu lado direito.

Minha tinha Iara então caminhou até mim e disse, vagarosamente, com seu modo de falar tranquilo e aconhegante: Bom dia... Veja só o que tenho pra você...

E puxou uma cortina de uns 5 metros de altura por cerca de quinze de comprimento, a que cobria todo o espaço da janela.

E um vento bom entrou através daquele espaço sem vidros que tinha do outro lado um céu azul, um mar azul e a areia da praia.

Ainda que todas as coisas fossem muito claras, e solares, meus olhos não doíam ao olhar aquilo tudo.

E dentro do sonho pensei: conheço o  que estou sentindo agora... Hummm: sim, foi um poema que trouxe isso... É algo despertado por um poema.

Estou sonhando exatamente a mesma a sensação que tive ao ler Paisagem pelo telefone.

E tão logo me dei conta disso, acordei.

PAISAGEM PELO TELEFONE


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.


  

6.3.12

Conhece-te a ti mesmo - Luiz Felipe Pondé

Decidi mudar. Não serei mais aquela pessoa que acha que as pessoas não mudam e que não há história, mas sim um eterno retorno do mesmo. Nietzsche nunca mais, só Rousseau e seu estado de natureza angelical.

Acredito agora nas primaveras que cortam o mundo. Fui à livraria mais próxima, ou melhor, ao iPad mais próximo, e comprei um livro que me indicaram: "Dez passos para ser um novo Pondé", autoria de um certo sábio chinês que talvez seja um neto de coreano nascido na Califórnia de pais porto-riquenhos.

O primeiro passo é aprender a respirar. Sou dono da minha respiração agora. Em seguida, alimentação. Nunca mais carne vermelha. De início, ainda frango e peixe, mas em breve pretendo me tornar um amante das rúculas e alfaces, mas sempre pedindo perdão por precisar tirá-las de sua vida doce e promissora fazendo fotossíntese. Coca-Cola, nem pensar. Além do mais, é americana! Vinho, só natural.

Um segredo: continuarei a ir aos EUA porque um tênis lá custa cinco dólares! Irei escondido e voltarei com dez malas. Mas, temos ou não direito a ter tênis baratos? Acho uma falta de respeito proibir as pessoas de comprar tênis e jogos eletrônicos baratos em Miami.

Amarei a África. Abraçarei todas as ONGs do mundo. Direi às pessoas que elas são lindas e que o mundo faz parte de uma confederação cósmica. Os maias foram o povo mais avançado da história e decidi frequentar escolas aborígenes para aprender seu complexo modo de criar sociedades mais justas.

Religião: nunca mais essa coisa pesada de judaísmo e cristianismo, religiões que nos estragam com sua moral "imposta". Candomblé também não. Claro, como é religião africana, seria aprovada pelo meu novo eu, mas em alguns terreiros baixam pombagiras, e elas foram prostitutas e adúlteras, e não quero nem chegar perto disso! Aliás, decidi que essas coisas não existem.

Minha nova religião será uma forma de budismo light, aquele tipo que cultua a energia do universo. Sei que existem outros tipos, mas aqueles são autoritários. Toco as plantas com mais cuidado e percebi que elas são mais sábias do que Freud. Claro, comprei uma estatueta de um golfinho e joguei fora aquela esfinge do Édipo horrorosa que minha irmã me deu em Londres.

Nunca mais tragédia grega, agora só revistas que nos ensinam como o mundo pode ser melhor se arrumarmos nossos sofás de forma mais harmônica com as estrelas. Contratei uma mestra em decoração oriental. Ela é uma mulher supermagra e equilibrada. Imagine que curou um câncer em seu gato com reiki.

Direi para todo mundo que não gosto de dinheiro e que gosto das pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm. Perguntarei aos artistas com consciência social o que posso dizer e fazer.
Vendi meu horroroso carro inglês. Estou aprendendo a andar de bike (já sabia andar de bicicleta, mas bike é outra vibe). Ainda que tenha que atravessar as ladeiras das Perdizes para ir trabalhar (pena que ainda tenha que fazer parte desse mundo terrível de pessoas que trocam sua dignidade por dinheiro), já me explicaram que cada pedalada evita duas moléculas de gás carbônico, o que faz de mim uma pessoa com pegada de carbono sustentável.

Sexo, agora, só verde. Se provarem que esperma polui o mundo, evitarei o orgasmo, assim como na Idade Média dizem que mulheres santas evitavam gozar para serem puras aos olhos de Deus. Enfim, sinto-me leve com meu novo eu. Provavelmente, serei mais amado, e isso é que conta, não? Acredito, agora, num mundo melhor.

De repente, acordei. Sentei na cama. Ao lado, minha mulher dormia, com seu corpo de pecadora.

Fui até a biblioteca e vi os livros de Nietzsche, Freud, Pascal, Dostoiévski, Cioran, Bernanos, Roth, Camus, Nelson Rodrigues me olhando com olhos de profetas. Os dedos indicadores em riste apontavam para mim.

Ao lado de minha estatueta da esfinge de Édipo, lia-se: "Conhece-te a ti mesmo". Voltara a ser eu mesmo. Esse miserável escravo das moiras, de felicidade complicada, doçura rara, boca seca e olhos vermelhos. Reconheci-me: sou o mesmo pecador de sempre, sem esperança.

5.3.12

Quando a ciência não se basta, ainda que ela possa quase sempre acreditar que sim


Na última terça-feira, ao dar uma olhada no caderno de Ciência da Folha, encontrei esse texto que, logo de cara, me pareceu fazer referência a algo bem problemático. Isso porque sabemos que quando a questão diz respeito à ética ou a moralidade as coisas não podem ser pressupostas de maneira tão ingênua. 

Os indivíduos burlaram regras? Se colocaram de maneira pouco apreciável e não dentro de uma conduta esperada? Pode acontecer e acontece, sempre. Mas seria isso indicativo de quê: de não respeito à ética ou do desenvolvimento de uma espécie de ética paralela?

O artigo base, do qual texto jornalístico é nada mais do que um resumo, pode ser lido na íntegra aqui.

Seria necessário algum tempo e talvez muito espaço para colocar uma mínima discussão sobre o assunto. Fato é que, quando a ciência se arrisca a fazer certas afirmações, deveria se atentar mais à narração do fato, ou sua descrição, ao invés de fazer uso de termos tão problemáticos e caros à história do pensamento humano. 

De qualquer maneira, foi-me impossível ler o artigo e não me lembrar do aforismo 92 de Humano, Demasiado Humano. Uma passada de olhos pelo texto de Nietzsche já coloca as coisas sob uma perspectiva diferente e bastante mais complexa.  

Aliás, por que será que o filósofo de Röcken tinha tanta implicância com os chamados psicólogos?

Riqueza traz mais chances de agir de forma pouco ética

Pesquisa de psicólogos mostrou que, no trânsito ou em jogos virtuais, quem tem mais dinheiro trapaceia mais 

Resultado pode ter relação com atitude diferente diante da cobiça, vista como algo positivo, diz cientista 

REINALDO JOSÉ LOPES

EDITOR DE “CIÊNCIA E SAÚDE”
Não é todo dia que um estudo publicado numa das principais revistas científicas do mundo cita a Bíblia para explicar sua hipótese de trabalho: "Dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus". A pesquisa não entra no mérito do destino além-túmulo de quem tem muito dinheiro, mas conclui que, de fato, pessoas com status social elevado teriam maior probabilidade de se comportar de modo antiético. 

O resultado polêmico vem de uma série de experimentos conduzidos por psicólogos da Universidade da Califórnia em Berkeley, liderados por Paul Piff, e está na edição eletrônica da revista "PNAS". Em contextos tão diferentes quanto o trânsito, uma entrevista imaginária de trabalho e um jogo de computador, os pesquisadores enxergaram diferenças significativas na maneira como ricos e pobres lidam com dilemas morais. 

Piff e seus colegas tomam cuidado para não dar a impressão de que seus resultados equivalem a uma condenação generalizada dos ricos e a um endeusamento dos pobres. Eles lembram que há muitos milionários beneméritos, colocando Bill Gates nessa categoria, e chamam a atenção para a prevalência de crimes violentos em bairros pobres do mundo todo. 

No entanto, afirmam, os experimentos parecem indicar um tema comum que leva quem tem mais dinheiro a cruzar a barreira do eticamente aceitável: a cobiça. 

DOCE DE CRIANÇA
 
É isso que aparece num dos testes de laboratório da ideia, na qual um grupo de 125 universitários tinha de preencher um formulário sobre a sua própria posição na escala social. Depois, como quem não quer nada, os cientistas colocavam diante dos voluntários um recipiente cheio de doces. 

O recipiente tinha um rótulo dizendo que os doces iriam para um laboratório onde seriam feitos experimentos com a participação de crianças. "Mas, se quiser, você pode pegar alguns doces", dizia o pesquisador ao voluntário do estudo. 

Parece piada pronta, mas o fato é que quem se considerava membro das camadas mais altas da sociedade tendia a pegar mais doces, deixando menos guloseimas para as crianças. 

Em outro experimento, quase 200 pessoas, num teste on-line, participavam de um jogo virtual de dados. Depois, tinham de relatar sua pontuação para os pesquisadores. Os cientistas tinham dito aos voluntários que, quanto mais pontos eles fizessem, maior a sua chance de ganhar um prêmio em dinheiro, no valor de US$ 50. 

A armadilha aqui é que, primeiro, os cientistas afirmaram que não tinham como saber a pontuação da pessoa; ela é que tinha de passar a informação para eles. Mas, na verdade, o dado virtual estava viciado: era impossível fazer mais do que 12 pontos. 

Os cientistas viram que algumas pessoas mentiram a respeito da própria pontuação. E, mais uma vez, quanto mais endinheirado o participante, maior a probabilidade de ele falsear o número.
Os pesquisadores também acompanharam o comportamento das pessoas no trânsito, vendo que quem possui carros caros tem mais tendência a desobedecer regras de trânsito e não dar a preferência para pedestres. 

A psicóloga Maria Emilia Yamamoto, especialista em evolução do comportamento humano da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, confessou estar "abismada" com o estudo.
"Claro que é preciso 'mastigar' um pouco mais esses resultados, mas eles são muito consistentes", afirma. 

Ela chama a atenção para a possibilidade de que ser rico levaria certas pessoas a minimizar as necessidades alheias. "Em vez de dizer que ricos são menos éticos, poderíamos dizer que ricos se tornam menos éticos."





Humano, Demasiado Humano - § 92


Origem da justiça - A justiça (eqüidade) tem sua origem entre aqueles que têm potência mais ou menos igual, como Tucídides (no terrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios) o concebeu corretamente: onde não há nenhuma supremacia claramente reconhecível e um combate se tornaria um inconseqüente dano mútuo,  surge  o  pensamento  de  se  entender  e  negociar  sobre  as  pretensões  de  ambos  os  lados;  o  caráter  da  troca  é  o  caráter inicial  da justiça.  Cada um contenta o  outro,  na  medida  em  que  cada  um obtém o  que  estima  mais  do  que  o  outro.  Dá-se a cada um  o  que ele quer ter, como  doravante seu, e se recebe em compensação o que se deseja. Justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio, sob a pressuposição de uma posição mais ou menos  igual de potência;  assim a vingança pertence originariamente ao domínio da justiça, ela é intercâmbio. Assim também a gratidão.  - Justiça remete naturalmente ao  ponto de vista  de  uma autoconservação inteligente, portanto, ao egoísmo daquela reflexão: "Para que haveria eu de danificar-me inutilmente e talvez nem sequer alcançar meu alvo?" - Isso quanto à origem da justiça. Porque os homens, de acordo com seu hábito intelectual, esqueceram o fim originário das assim chamadas ações  justas,  eqüitativas,  e,  em  especial,  porque  através  de  milênios  as crianças  foram  ensinadas  a  admirar  e  imitar  tais  ações,  pouco  a  pouco  surgiu a aparência de que uma ação justa é uma ação não-egoísta: e sobre essa aparência repousa a alta estima por elas, que além disso, como todas as estimativas, está  ainda  em constante  crescimento:  pois algo altamente estimado é perseguido com sacrifício, imitado, multiplicado, e cresce porque  o  valor  do  esforço  e  zelo  dispendidos  por  cada  individuo  é  ainda acrescentado  ao  valor  da  coisa  estimada.  - Que aspecto  pouco  moral  teria o mundo sem  o esquecimento! Um poeta poderia dizer que Deus postou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana. 

24.2.12

Para que servem as fantasias? - Contardo Calligaris


NA MINHA adolescência, em Milão, no Carnaval, era raro que alguém promovesse uma festa à fantasia; em geral, os poucos estabelecimentos que alugavam fantasias propunham figurinos abandonados por companhias de teatro falidas: a festa cheirava a naftalina, de dar dor de cabeça.
Antes disso, na minha infância, as mães fantasiavam suas crianças e as levavam pelas ruas. No meu caso, isso acontecia em Veneza, onde, por sorte, havia mais crianças fantasiadas do que em Milão - eu não era a única vítima dessa inspiração materna.


Mais tarde, imaginei que, com aqueles passeios de fantasia, minha mãe quisesse me mostrar que, na vida, é sempre possível ser outro: Polichinela, Arlequim, Scaramouche e, muitas vezes, Pierrot. A prevalência de Pierrot demonstra, aliás, que, fantasiando-me, ela não pretendia me ensinar um atalho para chegar à eterna felicidade; o que lhe importava me transmitir era só a alegria de se reinventar, de ter uma vida variada - feliz ou triste, como a de Pierrot, tanto fazia.


De qualquer forma, na época, eu criticava aqueles passeios. Era para todos acharem que eu era outra pessoa? Fracasso: não íamos enganar ninguém, visto que ela não estava fantasiada, e os vizinhos, reconhecendo-a, saberiam imediatamente que a criança era eu.


Esse raciocínio era bem veneziano. Na Veneza antiga, havia as máscaras de nariz comprido, no qual as pessoas socavam ervas que filtrassem as pestilências, e havia, Carnaval ou não, a vontade de se deslocar pelas ruelas da cidade no anonimato. Os venezianos protegiam sua vida privada  (política e amorosa) vestindo todos capa e tricórnio pretos com a mesma máscara básica, branca ou preta.
Essas máscaras para preservar o anonimato eram, por assim dizer, fantasias para poder continuar sendo si mesmo (no caso, às escondidas). No Carnaval de Veneza hodierno, na rua ou nos bailes, máscaras e fantasias não servem mais para que possamos ser nós mesmos anonimamente, mas para que o sonho ou a ilusão de podermos ser diferentes sejam reconhecidos por todos, numa espécie de reciprocidade: te felicito por tua fantasia se você me felicita pela minha.


Em suma, já houve fantasias para sermos nós mesmos e, hoje, há sobretudo fantasias para sonhar e fingir ser outro. Não desdenho essa função da fantasia. Afinal, talvez fosse para manter vivo o sonho ou a ficção de ser outro que minha mãe me levava fantasiado pelas ruas.


Passei o feriado no Rio, onde o Carnaval de rua voltou, com a multiplicação dos blocos e com um clima permanente (e civilizado) de festa no asfalto (o da zona sul, no mínimo). Tanto na rua como na Sapucaí, hoje, a fantasia me parece servir mais para sonhar em sermos outros do que para autorizar lados escondidos de nós mesmos, que a fantasia, por assim dizer, permitiria.


Mas eis que alguns amigos não concordam: segundo eles, as fantasias serviriam, justamente, para que ousemos ser nós mesmos. Os antigos venezianos, para agir "soltos", precisavam apenas do anonimato - e por isso eles se fantasiavam. Nós, para chegar à mesma "soltura", precisaríamos vencer poderosas inibições; a fantasia (com a ajuda da cerveja) nos levaria a acreditar que, uma vez fantasiados, sendo um pouco diferentes, estaríamos (até que enfim) à altura de nossos próprios impulsos reprimidos. Prova disso, acrescentam os mesmos amigos, são os excessos sexuais que acontecem no Carnaval: tudo seria permitido porque, por um instante, achamos que não somos nós, é a fantasia que cai na gandaia.


De fato, existe um lugar-comum, segundo o qual, no Carnaval, a gente se permitiria perigosos excessos sexuais - é por isso que o Ministério da Saúde concentra suas campanhas de prevenção no Carnaval. Mas é apenas um lugar-comum.


Foi publicada já em 2010 ("Rev. Assoc. Med. Bras.", vol. 56, nº 4, SP 2010; http://migre.me/7ZKpc) uma pesquisa (prolongando a dissertação de mestrado de Wilma Nancy Campos Arze, http://migre.me/80OQl) que mostra o seguinte: durante o Carnaval, em matéria de sexo, não pode acontecer nada muito diferente do de sempre, visto que, como consequência do Carnaval, não aumentam nem as infecções por doenças sexualmente transmissíveis nem as gravidezes indesejadas.


Conclusão: a ideia de que o Carnaval seja um momento orgiástico, em que soltamos desejos reprimidos, é apenas um aspecto do sonho de sermos um pouco diferentes do que somos - ou seja, é apenas mais uma fantasia de Carnaval.

10.2.12

Os diferentes são todos doentes? - Contardo Calligaris


Aconteceu no mesmo dia. Primeiro, houve uma mãe falando da homossexualidade do filho, que ela, em tese, acabava de descobrir: "É uma doença, não é?", perguntou. Ela queria encontrar, na minha confirmação, uma razão de perdoar o filho por ele ser como é. 

Mais tarde, alguém, falando de um parente próximo que é toxicômano, afirmou mais do que perguntou: "Ele é doente" -no tom de quem procura uma confirmação que permita perdoar o inelutável. 

Nos dois casos, respondi com cautela, mais ou menos desta forma: "Certo, deve haver razões para ele ser assim, mas ele não é doente como alguém que pega um vírus ou uma bactéria, nem como alguém que seja invadido por um câncer". A observação convidava meus interlocutores a questionar o que eles entendiam por "doente". A mãe do primeiro exemplo acrescentou que, de fato, não devia se tratar tanto de uma doença quanto de uma disposição genética. 

Meu segundo interlocutor poderia ter dito a mesma coisa. Afinal, logo na sexta passada, a revista "Science" publicou uma pesquisa de Karen Ersche, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), defendendo a tese de que existe uma predisposição genética à toxicomania (veja-se o caderno "Saúde" da Folha de 3 de fevereiro e o texto original por www.migre.me/7OLiy - de fato, sem entrar em detalhes, a pesquisa de Ersche mostra que deve haver uma predisposição genética à toxicomania, embora essa predisposição não seleo destino de ninguém). 

Desde quinta-feira passada, também recebi vários comentários à minha última coluna: muitos diziam que, claro, "cross-dressers", travestis e transexuais devem ser tratados com respeito por uma razão simples: "eles são doentes".Parece que a possibilidade de respeitar a diferença passa pelo reconhecimento de que essa diferença constitui uma patologia ou uma espécie de malformação congênita (no fundo, a exceção genética é isso). 

Alguns perguntarão: "não é melhor assim?". Sem essa "injeção" de patologia (ou de teratologia), os diferentes seriam apenas julgados em nome de um moralismo qualquer: os drogados seriam vagabundos, os homossexuais, sem-vergonhas, e, quanto aos "cross-dressers" e etc., nem se fala.
Em outras palavras, a substituição da moral tradicional ou religiosa pela medicina, em geral, produz uma nova tolerância das diferenças: elas não são punidas, são diagnosticadas. 

Mais um exemplo. Obviamente, para nossa proteção, não deixamos de prender os criminosos, mas já "sabemos" que muitos deles não são "ruins", eles só têm um problema de córtex pré-frontal - por causa dessa malformação, continuam impulsivos que nem adolescentes. 

O neurocientista David Eagleman ("Incógnito", ed. Rocco) chegou a propor que a gente treine nossos criminosos de modo que eles gozem de uma "normalidade" cerebral parecida com a da gente. Aí, sim, poderíamos condená-los com toda justiça. Sem isso, puniríamos "doentes", não é?Perdoamos facilmente, mas não é por misericórdia ou compreensão, é porque respeitamos e desculpamos doentes e vítimas de anomalias genéticas. É um progresso? 

Acima de seu sistema jurídico, cada sociedade produz e alimenta um sistema de crenças, regras e expectativas que facilita a coexistência mais ou menos harmoniosa de seus cidadãos. Para essa função, a modernidade escolheu a medicina (do corpo e das almas). Com isso, o controle sobre nossas vidas seria aparentemente mais suave, mais "liberal". Mas é só uma aparência. Pense bem. Certo, se toda exceção ou anormalidade for doença ou malformação, os diferentes não serão propriamente punidos. No entanto, a sociedade esperará que eles sejam "curados". 

Outro "problema": se os desvios da norma forem tolerados por serem efeitos de doença ou malformação, o que aconteceria com quem pratica desvios, mas não apresenta as "malformações" que o desculpariam? O que acontece se eu quero me drogar, ser "cross-dresser" ou, mais geralmente, infrator só porque estou a fim de uma "farra" e sem poder alegar nenhuma das predisposições genéticas para essas "condições"? Aí vai ser o quê? Voltamos às punições corporais? 

Em suma, gostaria que fosse possível ser anormal sem ser "doente". E, se fosse o caso, me sentiria mais livre sendo punido do que sendo "curado".

2.2.12

fabianescas - dilema moral joanino

Pai, eu estava pensando aqui: suponha que exista uma pessoa que seja viciada em doar coisas. Ela tem muito dinheiro, é milionária, mas tem a doação como vício. Se ela quisesse doar um tanto de dinheiro pra você, seria correto você aceitar?


30.1.12

Bluebird (Pássaro Azul) - Charles Bukowski





there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?




Pássaro azul


 Há um pássaro azul em meu coração que
quer sair
mas eu sou mais forte que ele,
Eu falo, fica aí dentro,
eu não vou deixar ninguém te ver.
Há um pássaro azul em meu coração que
quer sair
mas eu derramo uísque nele e aspiro
fumaça de cigarro
e as putas e os barmen
e as caixas do mercado
nunca sabem que
ele está
aqui dentro.


Há um pássaro azul em meu coração que
quer sair
mas sou mais forte que ele,
Eu digo, fique aí, você quer me pôr
em apuros?
você quer estragar meus trabalhos?
você quer estragar as vendas dos meus livros na
Europa?"
Há um pássaro azul em meu coração que
quer sair
mas eu sou mais esperto, só deixo ele sair
de noite, às vezes
quando todos estão dormindo.
Eu falo, sei que você está aí, então não fique
triste.
Então o coloco de volta
mas ele ainda canta um pouco aqui dentro, eu não o deixei
morrer totalmente.
e a gente dorme junto
desse jeito
com nosso
pacto secreto
e é delicado o suficiente
para fazer um homem chorar, mas eu não choro,
você chora?















17.1.12

LEMBRANÇA D'ÁFRICA - Ungaretti

RICCORDO D'AFRICA

Il sole rapisce la città

Non si vede più


Neanche le tombe resistono molto



LEMBRANÇA D'ÁFRICA

 O sol sequestra a cidade

Nada mais se vê

Sequer os túmulos resistem muito





13.1.12

Agir para fazer bonito - Contado Calligaris

Texto publicado ontem na Folha. Certeiro eu diria, tanto com as coisas todas, quanto com o que vem se passando nos últimos tempos nesse blog. Uma introdução perfeita para a finalização da história.   



Os psicólogos desconfiam um pouco da expressão "força de vontade", à qual todo mundo recorre (sobretudo para denunciar as fraquezas -as nossas e as dos outros), mas sem que a gente saiba direito o que ela designa. 

Por isso, estou lendo "Willpower, Rediscovering the Greatest Human Strength" (a força de vontade, redescobrindo a maior força humana), de R. Baumeister (um psicólogo que aprecio) e J. Tierney (jornalista do "New York Times"), ed. Penguin. O livro (p. 152) me fez conhecer o site www.stickK.com (que foi criado, aliás, para servir de amostra para pesquisas). 

No site, o usuário se engaja contratualmente a cumprir um plano que implique um engajamento sério, se não uma reorientação de vida -desde o trivial, como emagrecer ou parar de roer as unhas, até metas, aspirações, desejos e ambições que justificam uma existência, passando por aquelas experiências irrenunciáveis que alguém quer ter ao menos uma vez, antes de morrer. 

Ao escolher sua resolução, o usuário é convidado a nomear um árbitro: alguém que lhe seja próximo, que não seja um cúmplice qualquer e que possa, portanto, confirmar honestamente os progressos que o usuário declarará conseguir, no diário de seus esforços, que será acessível no site.
Além do árbitro, o usuário é também encorajado a escolher um número indefinido de amigos, que serão informados de seu propósito inicial e de seus avanços ou fracassos (eles terão acesso ao diário e aos comentários do árbitro). Na hora em que ele declara seu propósito, o usuário também estabelece uma punição para si mesmo, caso ele fracasse. 

Essa punição pode ser moral (um e-mail contando a história do malogro para uma lista de amigos e conhecidos) e/ou financeira -por exemplo, uma doação para a instituição que o usuário mais deteste (imaginemos que você pertença a uma igreja que é ferozmente contra a ideia do casamento gay e que você não consiga, sei lá, estudar seis horas por dia; pois bem, você passara a contribuir ao Grupo Gay da Bahia, de acordo com suas possibilidades financeiras). 

A análise de 125.000 contratos feitos nos últimos três anos indica que os usuários que não nomearam um árbitro ou não se impuseram punições financeiras chegaram a um resultado positivo só em 35% dos casos. E a porcentagem de sucessos foi de 80% quando houve árbitro, amigos e punição financeira. 

Existem experiências similares. Nas Filipinas, houve fumantes que depositavam a cada dia um dinheiro que eles perderiam se, depois de seis meses, houvesse rastos de nicotina em sua urina (o cigarro é poderoso: mais da metade perdeu seu depósito -em compensação, os que conseguiram pararam de fumar de vez). E houve a "Dieta da Humilhação Pública" de Drew Magary, que se engajou a tuitar seu peso a cada dia e conseguiu assim perder 30 quilos em cinco meses. 

À primeira vista, em suma, não agimos segundo o que achamos certo, por "força de vontade", mas para evitar punições e vergonhas. Ou seja, não somos nunca verdadeira e corajosamente bons, apenas queremos fazer bonito e não perder dinheiro (ainda menos em prol de nossos inimigos). 

Haverá moralistas para dizer que a sociedade contemporânea nos transforma nesses invertebrados morais -sem princípios, apenas interessados na opinião dos outros e em nosso interesse imediato. Mas, nos exemplos de Baumeister e Tierney, eu não vejo um sinal de decadência moral -ao contrário. Claro, como muitos, eu mesmo acharia mais fácil ser dotado de um caroço moral, do qual eu pudesse dizer: "Este sou eu, quer os outros me reconheçam ou não, e tanto faz que eu seja recompensado ou punido por isso". 

Mas não é o caso de sermos nostálgicos: nas sociedades tradicionais (presentes, passadas ou futuras), menos ainda do que hoje, os cidadãos tampouco dispõem de um caroço moral. Eles agem por medo da punição - agora ou no além. E eles agem por vergonha, diante de grupos instituídos de anciões, padres, pastores ou notáveis. 

No conjunto, quanto à punição, eu prefiro arriscar o que eu mesmo apostei ao assinar meus contratos. E, quanto à vergonha, prefiro que seja diante dos pares com quem eu me engajei, ou então, diante da sociedade inteira. 

Ou seja, sem ironia, como penso há tempos, nossa época é mais de progresso do que de decadência moral.