30.4.09

Sobre nossas casas

A casa vai ficando velha. As paredes parecem estar um tanto mais escuras. Mas o mais importante, o mais decisivo, é que as coisas vão se entulhando: cadeiras velhas, roupas antigas, armários, parafusos, TVs, sofás, panelas, chaves e cheiros. Tudo devidamente amontoado, confuso, um tanto amortecido ou um tanto quanto morto.

Engraçado que o movimento mais óbvio quando o mundo chega a este pé é aquele no qual às coisas antigas se unem as formigas, as traças e as aranhas. Ah, as aranhas. Ajudam a prender o velho às paredes como se os objetos, com o andar dos segundos, fossem capazes de, por si só, emitir algum tipo de substância indicadora do tempo. É como se a teia fosse o sofá se fundindo com a parede, e a aranha, por sua vez, somente o bichinho que mora lá.

Não se sabe, por vezes, quando se olha em volta, se a casa dita a vida, ou se a vida se projeta na casa. Aliás, é triste demais quando a vida fica assim, como uma casa sem cuidados. É necessário, quase sempre, que pensemos neste nosso andamento com acontecimentos como quem pensa num lar que deve ser reavivado.

É preciso que, no mínimo, de tempos em tempos, os móveis sejam mudados de posição, que as coisas antigas ganhem novas funções, que os cheiros passem a ser outros.

Melhor ainda se algumas coisas forem definitivamente postas no sótão, que as paredes sejam repintadas, que coisas novas preencham o ambiente, que as janelas e portas se mantenham quase sempre abertas; sabemos o quanto essa forma toda nova é muito mais difícil, quase impossível.

Mas o mais impossível ainda, o mais complexo em todas as reformas, é aquelas nas quais as paredes devem ser quebradas. E como dói, e como ficamos confusos, batendo a cabeça onde antes nada havia, fazendo caminhos mais longos até descobrirmos que o novo arranjo interno da casa é, realmente, melhor do que o antigo.

Em um dos mais importantes textos filosóficos da história, as Meditações Metafísicas, Descartes propõe que, ao menos uma vez em nossas vidas sejamos capazes de destruir, desde os alicerces, tudo aquilo que conhecemos. Que abandonemos as falsas crenças em favor de outras, mais verossímeis. Nada fácil de fazer quando as crenças mais antigas são aquelas das quais gostamos, ainda que não necessariamente nos façam bem, nos ajudem. Viciamos do passado. A casa antiga é nostálgica, ainda que feia.

Alguém disse que não morremos quando deixamos a vida, morremos quando repetimos as coisas em vida. Enterrar esta casa-lixo-repetição no quintal talvez seja uma boa solução. Plantar algo novo em cima, talvez melhor ainda. Assim o mofado pode alimentar o inédito, o novo, um novo que jamais será tão novo assim.

Um comentário:

rico disse...

Uau! Belíssimos, o texto e a reflexão! Abraços!