15.4.09

Será que o livre mercado corrompe nosso caráter?

O site Ordem Livre deu sequência, no Brasil, a um projeto de uma tal Templeton Foundation e que se trata de algo bastante simples: colocar a algumas cabeças a questão Será que o livre mercado corrompe nosso caráter?

Foi Reinaldo Azevedo o primeiro de nossa terrinha a produzir o texto de resposta. O mesmo segue abaixo por conta de tê-lo achado primoroso. Os de outras pessoas, as do mundo afora, podem ser lidos aqui.



Não poderia
por Reinaldo Azevedo


O mercado não poderia responder pela corrosão do caráter porque o caráter, como o entendemos, é uma construção do próprio mercado.

Todas as línguas de cultura devem a origem dessa palavra, primeiro, ao grego e, depois, ao latim. “Caráter”, no idioma de Cícero, significava, originalmente, o ferro em brasa com que se marcavam os animais. Por metonímia, passou a indicar a marca que esse instrumento deixava. O tempo e a metáfora se encarregaram de fazer com que a palavra designasse o conjunto de valores cultivados por um indivíduo. Esse conjunto se torna a sua marca particular, aquilo que o distingue, uma moral privada estampada a fogo na consciência. Só pode haver “caráter” se há indivíduo.

Por que sustento que a sociedade de mercado inventou o caráter? Porque ela é uma condição necessária, embora não suficiente, da liberdade. E não pode haver individuação onde não há escolha. Não é por acaso que as mais eloquentes fábulas antiutópicas — como Nós (Ievguêni Zamiátin), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), O processo (Kafka) e O zero e o infinito (de Arthur Koestler, a melhor de todas elas) — flagrem justamente o indivíduo contra o “ser coletivo”, que é uma invenção do Estado. Trata-se do contraste entre o homem de caráter e aqueles que se fazem meros funcionários de uma ordem cuja única preocupação é garantir a própria sobrevivência.

Os dias que correm, depois da crise financeira que varreu o mundo, são especialmente propícios à hostilização do mercado, que propiciaria a ganância. Ambições desmedidas, típicas das sociedades capitalistas, teriam conduzido o mundo à beira do abismo. Não fosse a vontade de lucrar, não fosse a vã cobiça, dizem os sacerdotes das catacumbas do estatismo, tudo seria diferente.

Bem, nem vou me ocupar — quer porque óbvio, quer porque outros já o fizeram — de demonstrar que o ciclo de prosperidade econômica que antecedeu a crise tirou milhões de pessoas da miséria e forneceu o capital necessário para a revolução tecnológica, que não ficou restrita ao setor financeiro. Os inimigos do capitalismo detestam constatar que o dinheiro de um “maldito especulador” financia o desenvolvimento de vacinas e de máquinas agrícolas, que salvam a vida de milhões. Na sua fantasia, isso tudo é obra da benemerência e do humanismo abstrato. Seria igualmente ocioso lembrar aqui como andou o caráter nas sociedades que decidiram abolir o mercado ou que houveram por bem submetê-lo a um rígido controle do Estado. Os vários fascismos e as várias faces do socialismo real — e só houve o real, não é? — deixaram um rastro de mortes, de desolação, de desastres.

O que corrói o caráter — na verdade, o destrói — é a tirania. Chamo de “tirania” a impossibilidade de se organizar qualquer forma de resistência à vontade oficial, quando os próprios indivíduos já não podem mais exibir seus traços distintivos, suas marcas particulares, porque perderam a vontade da autonomia. Quem chegou mais perto da plena caracterização dessa sociedade foi o teórico comunista Italiano Antonio Gramsci. Para ele, o lugar que Maquiavel reservara ao “Príncipe” seria ocupado por um partido político — no caso, o Partido Comunista —, que ele chamava “Moderno Príncipe”.

Nenhum daqueles antiutopistas que citei acima chegou aos pés de Gramsci quando ele relata o papel que o “o partido” deveria ocupar na sociedade: “O Moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume.

Nos países campeões da corrupção, o que se tem é mercado de menos, não mercado demais. Em alguns casos, e o Brasil tem larga experiência no assunto, gangues se apropriam de estruturas estatais para impor a sua vontade e cuidar dos seus interesses particulares. O regime é só uma derivação pervertida da economia de mercado. A fraude numa licitação ou o sobrepreço numa obra pública, por exemplo, têm origem na corrupção do caráter do agente público, que pode fraudar as regras sob o abrigo da lei.

Rotineiramente, o Estado, sob o pretexto de moralizar a sociedade de mercado, inventa o pecado para, depois, definir a penitência dos agentes privados que ele se encarregou de perverter. E o faz oferecendo ainda mais controle estatal e, pois, mais chances e instâncias de mediação para o exercício da corrupção. Entendo que a tarefa dos homens livres é lutar para conter os apetites deste ente pantagruélico. É fato que pagamos um preço por viver em sociedade. Mas tem de ser um preço justo. O melhor instrumento para manter a détente entre indivíduo e estado é a sociedade da regulação: agências independentes do governo e do mercado — e vigiadas por ambos — devem se encarregar de fazer valer a lei... de mercado!

A idéia de que o mercado corrompe o caráter nasce da suposição de que possa haver um sistema perfeito, capaz de livrar os homens de suas paixões, levando-os, então, à plena liberdade. A história demonstra ser essa uma fantasia liberticida. “Liberdade! Quantos crimes se cometem em teu nome”, exclamou certa mocinha a caminho da guilhotina, para satisfazer a sede de sangue do justiceiro Robespierre. Ademais, lembremo-nos de uma frase de Goethe, que parece sintetizar à perfeição o totalitarismo: “Ninguém é tão desesperadamente escravizado como os que acreditam que são livres”. Os regimes totalitários, como aquele imaginado por Gramsci, querem dar essa impressão de liberdade.

Livre mesmo é só o homem que sabe que tem de lutar para conter todos os apetites que querem escravizá-lo. E essa é uma tarefa da consciência individual, não do Estado.

E encerro com uma constatação e um enigma. A primeira medida de um regime de força é suspender o habeas corpus; a segunda é tabelar preços. Tenho a certeza de que isso quer nos dizer alguma coisa. O que será?

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