A casa vai ficando velha. As paredes parecem estar um tanto mais escuras. Mas o mais importante, o mais decisivo, é que as coisas vão se entulhando: cadeiras velhas, roupas antigas, armários, parafusos, TVs, sofás, panelas, chaves e cheiros. Tudo devidamente amontoado, confuso, um tanto amortecido ou um tanto quanto morto.
Engraçado que o movimento mais óbvio quando o mundo chega a este pé é aquele no qual às coisas antigas se unem as formigas, as traças e as aranhas. Ah, as aranhas. Ajudam a prender o velho às paredes como se os objetos, com o andar dos segundos, fossem capazes de, por si só, emitir algum tipo de substância indicadora do tempo. É como se a teia fosse o sofá se fundindo com a parede, e a aranha, por sua vez, somente o bichinho que mora lá.
Não se sabe, por vezes, quando se olha em volta, se a casa dita a vida, ou se a vida se projeta na casa. Aliás, é triste demais quando a vida fica assim, como uma casa sem cuidados. É necessário, quase sempre, que pensemos neste nosso andamento com acontecimentos como quem pensa num lar que deve ser reavivado.
É preciso que, no mínimo, de tempos em tempos, os móveis sejam mudados de posição, que as coisas antigas ganhem novas funções, que os cheiros passem a ser outros.
Melhor ainda se algumas coisas forem definitivamente postas no sótão, que as paredes sejam repintadas, que coisas novas preencham o ambiente, que as janelas e portas se mantenham quase sempre abertas; sabemos o quanto essa forma toda nova é muito mais difícil, quase impossível.
Mas o mais impossível ainda, o mais complexo em todas as reformas, é aquelas nas quais as paredes devem ser quebradas. E como dói, e como ficamos confusos, batendo a cabeça onde antes nada havia, fazendo caminhos mais longos até descobrirmos que o novo arranjo interno da casa é, realmente, melhor do que o antigo.
Em um dos mais importantes textos filosóficos da história, as Meditações Metafísicas, Descartes propõe que, ao menos uma vez em nossas vidas sejamos capazes de destruir, desde os alicerces, tudo aquilo que conhecemos. Que abandonemos as falsas crenças em favor de outras, mais verossímeis. Nada fácil de fazer quando as crenças mais antigas são aquelas das quais gostamos, ainda que não necessariamente nos façam bem, nos ajudem. Viciamos do passado. A casa antiga é nostálgica, ainda que feia.
Alguém disse que não morremos quando deixamos a vida, morremos quando repetimos as coisas em vida. Enterrar esta casa-lixo-repetição no quintal talvez seja uma boa solução. Plantar algo novo em cima, talvez melhor ainda. Assim o mofado pode alimentar o inédito, o novo, um novo que jamais será tão novo assim.
30.4.09
26.4.09
brechtianas ou, para a noite de domingo, um pouco do sr. Keuner
O garoto desamparado
O sr. K. falou sobre o mau costume de engolir em silêncio a injustiça sofrida, e contou a seguinte história: "Um passante perguntou a um menino que chorava qual o motivo do seu sofrimento. ‘Eu estava com dois vinténs para o cinema’, disse o garoto, ‘aí veio um menino e me arrancou um da mão’, e mostrou um menino que se via a distância. ‘Mas você não gritou por socorro?’, perguntou o homem. ‘Sim’, disse o menino, e soluçou um pouco mais forte. ‘Ninguém o ouviu?’, perguntou ainda o homem, afagando-o carinhosamente. ‘Não’, disse o garoto, e olhou para ele com esperança, pois o homem sorria. ‘Então me dê o outro’, disse, e tirou-lhe o último vintém, continuando tranqüilo o seu caminho".
O sr. K. falou sobre o mau costume de engolir em silêncio a injustiça sofrida, e contou a seguinte história: "Um passante perguntou a um menino que chorava qual o motivo do seu sofrimento. ‘Eu estava com dois vinténs para o cinema’, disse o garoto, ‘aí veio um menino e me arrancou um da mão’, e mostrou um menino que se via a distância. ‘Mas você não gritou por socorro?’, perguntou o homem. ‘Sim’, disse o menino, e soluçou um pouco mais forte. ‘Ninguém o ouviu?’, perguntou ainda o homem, afagando-o carinhosamente. ‘Não’, disse o garoto, e olhou para ele com esperança, pois o homem sorria. ‘Então me dê o outro’, disse, e tirou-lhe o último vintém, continuando tranqüilo o seu caminho".
25.4.09
Hermetismos da memória
Já se vai muito tempo desde então. O ano era qual: 1991, 92, 93? Em uma quinta à noite, no ginásio do Tênis Clube de Campinas, veríamos o Hermeto Pascoal.
Fomos eu e Carlão (lembrei-me melhor hoje Rodrigo - nesta você faltou). O lugar estava lotado. Ficamos bem localizados: na quadra, a uns 15 metros do palco. Hermeto veio sem banda e usaria os músicos da OSMC.
A coisa teve início da forma esperada: aquelas maluquices experimentais com panelas, potes e outros objetos inesperadamente sonoros. Aliás, é bom que se diga: erra feio quem acha que Hermeto é só isso ou mesmo que a maior parte de sua música se restringe a isso - há coisas demais, e é bom que conheçamos. Recado dado, voltemos à história: a questão é que, conforme o show andava, as pessoas eram envolvidas por uma espécie de transe geral e bastante particular: particular porque o tipo de música que Hermeto produz é de uma cinestesia ímpar.
Senti-me, em um dado momento e como se diz por aí, bolado. Olhei ao redor e estavam todos da mesma maneira. As pessoas riam à toa. Uma lente de aumento foi interposta entre nós e as coisas e tudo era mais intenso e bom. O controle que o homem exercia sobre o público também era interessante: se empolgava, literalmente entusiasmava e levava todos consigo.
No último número uma boa história: Hermeto fôra convidado para escrever uma música a respeito de Berlim, tendo sido uns dos poucos compositores - talvez 10 do mundo todo - chamados para presentear a cidade em seu aniversário. Mas como, disse o homem, escrever para uma cidade a qual eu não conheço? Então fui até lá, passei uns 3, 4 dias, entrei no quarto e saí com a música pronta. Pois bem: a composição era poderosa, muito poderosa! Chegou um momento, lá pelos seus 10 minutos, no qual as pessoas gargalhavam, as pessoas choravam, as pessoas davam cambalhotas, rodopiavam, viravam estrela. Fabuloso. Grandioso. E foi assim que a noite acabou, deixando algumas perguntas em nossas cabeças: o que é aquele homem, a relação que ele estabelece com a música e o que mais consegue produzir?
As duas últimas questões podem começar a ser respondidas da seguinte maneira:
1) do site do próprio Hermeto,
Não há o que comentar. Conteúdo e forma: tudo muito significativo, terno demais. Entrem no site e vejam outras coisas legais que estão lá.
2)Uma mostra de sua produção. Exemplo de como, ao gastarmos nosso tempo com algumas coisas, na verdade o ganhamos.
Isso nos salva, nos salvará das trevas, como diz a canção? Sei não: no post seguinte falarei a respeito.
Fomos eu e Carlão (lembrei-me melhor hoje Rodrigo - nesta você faltou). O lugar estava lotado. Ficamos bem localizados: na quadra, a uns 15 metros do palco. Hermeto veio sem banda e usaria os músicos da OSMC.
A coisa teve início da forma esperada: aquelas maluquices experimentais com panelas, potes e outros objetos inesperadamente sonoros. Aliás, é bom que se diga: erra feio quem acha que Hermeto é só isso ou mesmo que a maior parte de sua música se restringe a isso - há coisas demais, e é bom que conheçamos. Recado dado, voltemos à história: a questão é que, conforme o show andava, as pessoas eram envolvidas por uma espécie de transe geral e bastante particular: particular porque o tipo de música que Hermeto produz é de uma cinestesia ímpar.
Senti-me, em um dado momento e como se diz por aí, bolado. Olhei ao redor e estavam todos da mesma maneira. As pessoas riam à toa. Uma lente de aumento foi interposta entre nós e as coisas e tudo era mais intenso e bom. O controle que o homem exercia sobre o público também era interessante: se empolgava, literalmente entusiasmava e levava todos consigo.
No último número uma boa história: Hermeto fôra convidado para escrever uma música a respeito de Berlim, tendo sido uns dos poucos compositores - talvez 10 do mundo todo - chamados para presentear a cidade em seu aniversário. Mas como, disse o homem, escrever para uma cidade a qual eu não conheço? Então fui até lá, passei uns 3, 4 dias, entrei no quarto e saí com a música pronta. Pois bem: a composição era poderosa, muito poderosa! Chegou um momento, lá pelos seus 10 minutos, no qual as pessoas gargalhavam, as pessoas choravam, as pessoas davam cambalhotas, rodopiavam, viravam estrela. Fabuloso. Grandioso. E foi assim que a noite acabou, deixando algumas perguntas em nossas cabeças: o que é aquele homem, a relação que ele estabelece com a música e o que mais consegue produzir?
As duas últimas questões podem começar a ser respondidas da seguinte maneira:
1) do site do próprio Hermeto,
Não há o que comentar. Conteúdo e forma: tudo muito significativo, terno demais. Entrem no site e vejam outras coisas legais que estão lá.
2)Uma mostra de sua produção. Exemplo de como, ao gastarmos nosso tempo com algumas coisas, na verdade o ganhamos.
Isso nos salva, nos salvará das trevas, como diz a canção? Sei não: no post seguinte falarei a respeito.
22.4.09
17.4.09
Desencruou
Dia 30/04/2009, às 16h, no Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos.
Título - Projeção e desamparo: filosofia, religião e teoria psicanalítica em Sigmund Freud
Banca - Luiz Roberto Monzani (orientador)
Débora Cristina Morato Pinto
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Aqui vai a Introdução:
Ao atentarmo-nos sobre a existência de um projeto intrínseco, de fundo, ligado ao que costumeiramente nomeamos de esclarecimento, é-nos possível vislumbrar a arquitetura de uma planificação em dois níveis. O primeiro deles, no qual levamos em consideração os modos dos quais o homem dispõe para lidar com o mundo, dirá respeito a um embate: as antigas formas míticas de interpretação da natureza deverão ser substituídas por outras mais afeitas ao real, estas ligadas à razão e ao conhecimento científico. Podemos afirmar sem constrangimentos que este primeiro nível é, por assim dizer, aquele que opera numa posição mais superficial da questão, já que, ao indicar simplesmente um modo, uma forma de ação, acaba por tratar tão somente sobre o como o homem deve colocar-se frente às dificuldades que o mundo lhe impõe.
Já o outro plano, o outro nível que pode ser entrevisto no tal projeto diz respeito a algo que nos parece estar mais na base, - ser mais essencial, portanto - uma vez que ultrapassa a questão do como e penetra no campo do sentido, ou seja, no intrincado solo das motivações. Isto significa que ele versará nada mais nada menos do que sobre o porquê do projeto que se inicia no século XVII, sobre a sua causação mais essencial, e a resposta sobre esta razão de ser é clara: livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores, como já haviam nos ensinado Adorno e Horkheimer.
Assim, com o tal ideário – e obviamente tudo o que lhe é inerente - devidamente colocado debaixo do braço, o homem pôde, nestes últimos séculos, tentar acercar-se de um universo artificial que o livrasse de todo tipo de sofrimento que pudesse confrontá-lo em termos físicos e, ainda e às vezes, a reboque de tais construções, buscar um entendimento satisfatório das questões representacionais que mais lhe trouxessem angústia. Dentre as deste último tipo - é claro e porque não, talvez a primeira e mais importante delas - a religião, ou colocando já as coisas de uma maneira mais discursivamente afeita a esta nova configuração na qual as explicações devem se resumir a leis físicas ou psicológicas: qual seria origem do sentimento religioso?
Não é difícil imaginarmos que, para os que viveram sob a égide mais fulgurante do movimento iluminista, a idéia vigente fosse a de que somente após e através de uma resposta satisfatória a esta interrogação, assim como de uma aquiescência geral desta resposta, é que o homem poderia finalmente colocar uma pá de cal no período fantasístico no qual vivera até então, libertando-se das amarras da ignorância, da infantilidade e do caos, entrando finalmente e com suas devidas glórias em uma fase ordenada, segura, adulta e devidamente afiançada pelo ordenador saber racional.
§§§§§
Inúmeras foram as obras que com o espírito engajado destes novos tempos buscaram interpretar, esquadrinhar todo o montante semântico recoberto por aquilo que costumeiramente denominamos com o termo religião. Uma das mais emblemáticas, e isto considerando o posto de paradigma que veio a ocupar dentro de tal tradição, foi aquela produzida por David Hume, em 1757, e pelo autor denominada História natural da religião.
Elaborado conjuntamente a outro texto humeano substancial a respeito do tema – Diálogos sobre a religião natural - o trabalho valeu-se, a fim de configurar uma estrutura robusta para a análise do que pretendia discutir, de duas fontes primordiais, a saber: a) da confluência de dados herdados da tradição, sejam estes de estudos históricos ou filosóficos sobre o tema, assim como b) de novos trabalhos de cunho etnográfico e seus derivados, estes possibilitados pelos relatos de viajantes que se debruçaram sobre as práticas religiosas de populações recém descobertas.
Com o que tinha mãos, Hume pôde estabelecer tanto um exame de cunho antropológico quanto psicológico do fenômeno religioso - o segundo, em grande medida, derivando-se do primeiro -, exame este que se encontrava determinado pelo seguinte objetivo: compreender quais são os princípios que fazem com que surja a crença original - na religião -, e quais são os acidentes e causas que dirigem a sua operação (Hume, 1998, p. 3). Dado o questionamento, vejamos, rapidamente, como o filósofo construiu a sua resposta.
A primeira das afirmações importantes, e sobre a qual toda uma cadeia de justificações, deduções e desmembramentos encontrará apoio, será a de que o politeísmo é a primeira forma religiosa da humanidade. Afirmação que pode parecer corriqueira, a princípio, mas isto tão somente se desconsiderarmos duas respeitáveis ocorrências: a inicial, ligada ao campo político-religioso, é a de que o filósofo aqui se coloca contra toda uma estrutura judaico-cristã que se afiançava naquele período - e de maneira aguda - como a formação religiosa primordial; a outra, mais significante para nosso trabalho, é a de que, para a defesa de tal posicionamento, Hume fará uso de uma interessante equiparação a qual gostaríamos de destacar, dado o seu caráter fundante. A fim de esclarecer o argumento, voltemos à assertiva inicial, aquela que assegura que o politeísmo é a primeira, a mais antiga religião da humanidade. Para que tal afirmação seja realizada com segurança, há uma gigantesca rede de suporte armada por incontáveis relatos históricos que asseveram o mesmo. Algo que os relatos históricos também nos dizem é o seguinte: que o monoteísmo só veio a se configurar a partir de um determinado período do desenvolvimento cultural humano. Ora, afirmará o filósofo, se há algum tipo de dúvida em relação ao que diz a história, esta dúvida pode ser rechaçada através do uso de inumeráveis relatos dos viajantes, relatos tais a respeito do caráter religioso das tribos selvagens das Américas, da África ou da Ásia. Nestes grupamentos humanos, nos quais o pensamento não mostra ainda grandes níveis de refinamento, o que se encontra é justamente o mesmo que é dito nas narrativas históricas: aos pouco desenvolvidos, assim como era aos antigos, o politeísmo. A prova sobre o passado estaria, pois, no presente.
O que Hume faz aqui, em termos lógicos, é montar um argumento a partir de uma analogia que afirma que selvagem = antepassado. Assim, tanto este bestial quanto este homem antigo seriam figuras capazes de nos dar uma indicação precisa a respeito de qual teria sido a primeira forma de adoração elaborada pelo ser humano, já que configurariam, em última instância, diferentes apresentações do mesmo.
Veremos mais tarde o quanto este recurso será capturado pelos autores com quais trabalharemos com mais afinco. Guardemos, pois, com devido cuidado, esta indicação, e sigamos, já que aquilo que nos interessa em Hume não encontra fim neste lugar, sendo conveniente ainda que nos atentemos, ainda que sucintamente – como aqui convém -, a outros dois pontos de sua análise.
A primeira afirmação realizada pelo autor seguindo as pistas que estavam à sua disposição foi, como vimos, a de que o politeísmo foi a primeira religião do homem. Estabelecido assim o ponto de partida, o esteio, a matéria a partir da qual as outras questões podem ser colocadas e analisadas, Hume se encontra, destarte, em condições de perguntar: por qual motivo o homem crê? Ou: o que motivou o homem a desenvolver suas representações religiosas? A idéia do surgimento a partir da contemplação das obras da natureza é de pronto rechaçada, isso graças a irregularidade dos eventos terrenos: lembremos que a um selvagem de razão imatura só é possível a percepção de inconstâncias. O que não é vetado a este ser incipiente é seu acesso aos sentimentos básicos, a sua angustiada preocupação com a felicidade, o pavoroso receio da morte, o incessante medo de futuras desgraças. Considerando tais condições, o filósofo acaba por referendar uma linha interpretativa que acaba por aproximá-lo de Lucrécio, Hobbes, Diderot e Spinoza:
“Agitados por esperanças e medos..., especialmente pelos segundos, os homens investigam com abismada curiosidade o curso das causas futuras e examinam os diversos e contrários acontecimentos da vida humana. E neste inquieto cenário, com olhos ainda mais inquietos e assombrados, vêem os primeiros, obscuros traços de divindade.”
A expectativa, a especulação sobre o porvir, o abismático inesperado: são motivadores, sim, da necessidade religiosa. Entretanto, compondo o solo no qual a esperança se cria, encontra-se o medo, o sentimento conjunto à especulação e que, tomando as rédeas, a determina; o pavor trazido pela idéia de que o futuro pode ser de sofrimento: fome, dor ou qualquer outra desgraça. É neste medo, destarte, mais do que em qualquer outro lugar, que se encontra o imperativo para a criação dos deuses. O motivo da criação das religiões está, desta feita, apresentado.
§§§§§
Bem: se o que Hume faz na passagem acima é oferecer uma resposta para a questão primordial sobre a essência religiosa, isso não significa que o questionamento deva se interromper - se temos notícias sobre os deuses nos quais o homem acredita, e compreendemos o porquê de o homem crer, necessário se faz que uma ponte seja erigida interligando as duas questões para que outra resposta apareça, a resposta sobre o que são estes deuses nos quais o homem acredita, sobre qual é processo de construção, de formação destes deuses. Hume dará conta desta questão da seguinte maneira: o homem é colocado em um mundo no qual as verdadeiras causas dos acontecimentos lhe são absolutamente ignoradas. Sendo assim, não há conhecimento suficiente para prever os males nem poder para se deles se prevenir. O que nossa imaginação faz então, enquanto nossas paixões são mantidas em alarme por conta desta expectativa angustiada sobre o porvir, é formar idéias destes poderes dos quais somos dependentes, representações que são elaboradas através de um mecanismo regular e constante:
“Há uma tendência universal em todos os homens que consiste em conceber todos os seres a nossa semelhança, e em transferir a cada objeto estas qualidades com as quais estamos mais familiarizados e das que somos mais intimamente conscientes.... olhamos para cima e transferimos paixões e debilidades humanas à deidade... Não é de estranhar, pois, que a humanidade, ao encontrar-se em uma tão absoluta ignorância das causas, e ao estar ao mesmo tempo preocupada com sua sorte futura, reconheça imediatamente sua dependência de poderes invisíveis possuidores de sentimento e inteligência.”
O que o homem faz então, impulsionado pelo medo e pela angústia, é criar representações ou representar a natureza a partir de características que lhe são inerentes, e isto tanto física quanto psicologicamente falando. Ou seja: o homem cunha as imagens divinas transferindo elementos que lhe são peculiares para os perfis nos quais acredita ou virá a acreditar. Há uma propensão natural que nos incita a este recurso, a mesma a qual nos utilizamos na prosopopéia, por exemplo, onde personificamos árvores e outros seres inanimados, dando-lhes sentimentos e paixões. A saída disto? Corrigir esta disposição através da experiência e da reflexão, dirá o filósofo, bem ao modo do esclarecimento.
§§§§§
Se Hume pode ser apontado como uma espécie de marco teórico da análise filosófica do fenômeno religioso, e o século XVIII o momento no qual o ateísmo começa a freqüentar de modo mais assíduo a mente tanto de pensadores quanto do homem comum, fazendo parte definitivamente do espírito, da atmosfera daquela época, um outro autor, nascido no século seguinte, assumirá o desvendamento racional das representações religiosas como seu objetivo fundamental, como a razão de ser de seu pensamento, acabando por praticamente determinar o que, ainda nos XIX e depois, se produziu sobre o assunto, tamanhos alcance e penetração de seus escritos tanto na filosofia quanto na teologia.
Ludwig Feuerbach desenvolveu-se em um ambiente filosófico bastante determinado: foi aluno de Hegel por dois anos – 1824 e 1825 – em Berlim, assumindo por um bom período o posicionamento de seu mestre a respeito do tema, a saber e de forma bastante geral, a conciliação, a unidade da síntese entre o que é filosófico e o que é religioso, entre razão e fé.
Tal cenário, entretanto, não se manteve estável por muito tempo e começou a se alterar quando, em 1839, escreveu o filósofo a sua Crítica da filosofia hegeliana, sendo que, dois anos depois, em 1841, tudo foi definitivamente posto aos ares, e não apenas no que diz respeito à filosofia de Hegel, mas também no que tange à relação de Feuerbach com toda a academia de seu tempo: A essência do cristianismo é publicada, e nela o cristianismo é abdicado em favor da filosofia. Aliás, não será exclusivamente o cristianismo o elemento a ser posto em xeque pelas elaborações feuerbachianas: em 1845, A essência da religião tratará de desconstruir também o pensamento religioso em geral, desmistificando a fé e trazendo os questionamentos sobrenaturais para o mundo terreno, absolutamente humano.
Deus não tem existência, o que tem existência é o homem, dirá Feuerbach, o que significa que tanto o fundamento quanto o objeto da religião dizem respeito ao ser do homem. Disso se depreenderá o seguinte: que, para que possamos compreender tanto este homem quanto os processos de construção e sustentação das representações religiosas, a teologia deve ser subsumida pela antropologia. Se a primeira coloca-se numa dimensão fantástica de interpretação do universo humano, a segunda busca compreendê-lo a partir do que é real, do concreto. Deus seria, então, por fazer parte deste formato imaginário de percepção/ construção do mundo, uma ilusão humana, uma fantasia que, alias, é possibilitada por um mecanismo psicológico bastante específico: o da objetivação. O homem projeta para fora as suas características mais gerais, mais íntimas, aquelas que dizem respeito à sua espécie em geral, e constrói a partir destes elementos uma imagem a qual atribui uma existência superior.
Os predicados divinos são, portanto, os predicados humanos, e a função da filosofia, e do projeto que dela se gera, ou seja, da redução da teologia à antropologia, é o de, ao tornar claro ao homem este processo mistificador, restituí-lo ao mundo da realidade, às formas mais eficazes de ação e compreensão sobre/ de si e da natureza que o cerca, tornado-o responsável pelo seu futuro, justamente o inverso daquilo que é realizado pelo fenômeno religioso.
O grande problema encontrado para a realização deste plano, que na verdade está na base de todo o processo e que também é trazido pelo diagnóstico antropológico-filosófico, é que aquilo que gera e que sustenta a religião vem a trata-se de algo de caráter emocional e que reflete a forma como o homem se percebe no mundo. O que é isso? Se existe algo que motiva a crença, este gerador é o sentimento de dependência do homem para com a natureza que o cerca, e mais, se há um pólo neste sentimento de dependência, neste sentir-se incapaz de lidar com o mundo e assumir plenamente o seu destino, este pólo é o do medo: o ser humano necessita, pois, de algo que o proteja e que o retire das situações de perigo e angústia pelas quais atravessa pela vida. Imperioso para a filosofia de Feuerbach é, dado o que foi dito, que o homem saia deste estado primitivo, deste lugar infantilizado no qual se coloca perante o ato de existir, assuma suas agruras e lide de forma pungente com as mesmas.
Para tanto, entretanto, ele precisa estar consciente do processo no qual se encontra, e a razão será aquilo que o tornará sabedor das ilusões, em um processo guiado por uma nova filosofia fundada na materialidade do homem, cuja história a antropologia nos conta.
§§§§§
Qualquer pessoa que tenha ao menos folheado uma parte considerável da obra freudiana saberá que um bom tanto da mesma versa sobre a análise da cultura ou, mais precisamente, trata de aplicar os conceitos forjados pela psicanálise na leitura de certos fenômenos sociais.
Um pouco mais de acuidade no olhar mostrará também o seguinte: dentre todos estes fenômenos sociais ou mesmo realizações da civilização, a religião é aquela que, sem dúvida alguma, mais ocupou as linhas e, por conseguinte, a mente de Freud.
Bem: um tanto quanto óbvio que as coisas tenham se passado desta maneira, dirão alguns, dada uma certa relação dificultosa estabelecida entre este homem Freud, este judeu sem deus, e a tradição religiosa à qual o mesmo se ligava. Tal forma de ver as coisas, levando em consideração fundamentalmente a biografia freudiana - é bom que digamos - foi capaz de conduzir um montante significativo da produção que se propôs a realizar uma análise da posição do psicanalista no que tange ao fenômeno religioso.
A este respeito, entretanto, não devemos nos esquecer de algumas outras coisas que, juntas, são capazes de compor um quadro bastante mais significativo e explicativo não apenas das opções de Freud frente ao tema mas, e tão ou mais importante quanto, dos argumentos dos quais se utilizou, selecionou para lidar com a questão.
A primeira e não menos relevante do que as outras é aquela que versa sobre o fato de que a psicanálise, para Freud, não diz respeito somente a uma condição clínica, a uma prática terapêutica cujos objetos de trabalho se resumiriam ao lide com problemas etiológicos. Seu enfoque é bastante mais extenso e trata de cuidar também da condição humana em si, de como esta condição, que a princípio surge individualmente na clínica, foi capaz de universalizar-se e como reagimos, cada um de nós, em relação aos outros indivíduos. De maneira mais direta: se o psiquismo se humaniza e se desenvolve em e na relação com outros, é necessário que se o compreenda também nesta relação, isto é, inserido no universo cultural.
Já o segundo objeto, acreditamos, a ser sobreposto ao entendimento das escolhas vem do fato de Freud considerar a psicanálise uma ciência natural e, por conseguinte, pertencente à Weltanschauung científica. O programa desta cosmovisão – como colocado na 35ª Conferência - é fornecer aclaramentos advindos de minuciosas investigações, estas regidas pela razão e por seus determinantes, e nunca pela revelação, intuição ou adivinhação - estes últimos devem ser considerados então sempre como objetos psicológicos a serem desvendados, e nunca métodos de obtenção de conhecimento, como poderia querer, por exemplo, o pensamento religioso -.
Ora, esta forma de perceber a ciência, de valorá-la, ou mesmo esta maneira de ser que coordena o pensamento científico não é algo que tenha se gerado por si e que prescinda um suporte: há algo que a originou e que lhe serve de apoio. E é nesta sustentação a partir da qual Weltanschauung científica se instaura e mantém que encontraremos o terceiro termo a se considerar sobre o tratamento freudiano da religião: não, não há como escapar das bases filosóficas que compunham as estruturas do pensamento no momento de formação e de produção da psicanálise. Se o método de desvelamento do homem a partir do inconsciente se desenvolve em determinado momento histórico, é impossível que ele não seja fruto do movimento intelectual no qual foi gestado e desenvolveu-se e que era, a saber, o esclarecimento, o mesmo esclarecimento do início desta introdução, o mesmo esclarecimento de Hume, o mesmo que tem no século XIX a figura de Feuerbach como um de seus expoentes.
O propósito desta dissertação, aquilo que a motiva, é algo que se gera, pois, a partir da confluência de todas estas coisas e que, na verdade, divide-se em alguns momentos, todos eles ligados ao desenvolvimento teórico da interpretação psicanalítica - freudiana - do fenômeno religioso. Isto significa o seguinte: que assim como nos interessam os tratamentos dos conceitos efetuados nos textos de Freud, queremos também demonstrar que, ao realizar as suas escolhas, a sua opção por alguns destes conceitos e mesmo pelo método que chega a utilizar, o pai da psicanálise acaba se ligando a uma tradição de análise das origens da religião, própria ao esclarecimento, esta que será representada por Feuerbach.
Duas perguntas aqui se fazem então necessárias para que, ao respondê-las, possamos melhor determinar o nosso objetivo. São elas: 1) quais são estes conceitos freudianos a serem perseguidos e, 2) por que Feuerbach?
No que diz respeito à primeira, interessa-nos saber o que está em jogo, esclarecer o que há de propriamente psicanalítico na tese freudiana sobre a origem das representações religiosas, esta anunciada condensadamente na seguinte passagem de O futuro de uma Ilusão:
“Esta situação, em efeito, não é algo novo; tem um arquétipo infantil, na verdade não é senão a continuação de outra, inicial: em igual desamparo se havia encontrado o homem já uma vez, quando era criança pequena, frente a um casal de progenitores a quem se temia com fundamento, sobretudo ao pai, porém cuja proteção, também, o assegurava contra os perigos que então conhecia... De modo semelhante, o homem não converte as forças naturais em simples seres humanos com quem pode tratar como faz com seus próximos... antes bem, as confere caráter paterno, faz delas deuses, no qual obedece não só um arquétipo infantil, mas como também, tentei demonstrar, a um filogenético.”
Considerando o que é exposto no trecho acima veremos que, ao percorrermos o caminho de formação dos conceitos de projeção e desamparo, a interpretação e a real intencionalidade deste escrito – e, por conseguinte, do que ele representa - se nos apresentarão com bastante mais clareza. É o que faremos, destarte, no primeiro e segundo capítulos de nosso trabalho, nos quais veremos como a montagem dos textos freudianos sobre a cultura se baseia nas linhas de força estabelecidas pelas considerações forjadas na psicanálise, isto dado pela mostra da gênese e da evolução destas considerações, ou seja, as suas histórias internas.
No que diz respeito à questão seguinte, a justificação vem, primeiro, de forma óbvia, por conta da já anunciada importância de Feuerbach no século XIX. Em segundo, pelos conceitos dos quais se utiliza – objetivação e dependência -, pelo método e pela forma como erige a sua argumentação a respeito do fenômeno religioso. Por último, enfim, motiva-se por colocações como a seguinte, um trecho de uma carta enviada por Freud ao seu amigo Silberstein, em 07/03/1875 :
“Karl Grün, cuja dissertação sobre Börne tanto te alegrou, é também de meu conhecimento. Há poucas semanas atrás ouvi uma palestra dele... que culminou com a glorificação das ciências naturais modernas e de nossos mais modernos santos, como Darwin, Haeckel etc., e que nos fez, a nós estudantes, dar um viva depois do outro. Como, além disso, o homem publicou uma biografia de Feuerbach, que faz justiça ao significado desse homem que, entre todos os filósofos, eu mais respeito e admiro, estimo o homem e me alegro por esse batalhador versátil a favor de nossas verdades.”
O tratamento das questões em Feuerbach será realizado, de forma bastante menos intensa do que o oferecido a Freud – o esclarecimento da psicanálise é nosso foco –, no terceiro capítulo de nosso texto.
O que não faremos nesta dissertação, e acreditamos também que seja importante dizermos, é uma equiparação, uma análise relacionando os conceitos freudianos e feuerbachianos dado que, como veremos, os mesmos se aproximam bastante. E não o faremos por sabermos terem sido estes forjados em duas racionalidades diferentes, em dois campos do conhecimento que, ainda que possam se equiparar em dados momentos em termos de forma e conteúdo, possuem esteios epistemológicos distintos. O que nos poderá vir à mente após a leitura, e isto já é algo por nós aceito e, como dito, esperado, será uma idéia de filiação - nada nova em termos de filosofia da psicanálise - bastante mais universal e profícua do que aproximações pontuais.
Em nosso pequeno quarto capítulo, no qual faremos nossas derradeiras considerações, buscaremos expor de forma breve os resultados aos quais chegamos, e isto conectando os liames internos de nosso texto, assim como tentaremos também propor uma discussão bastante sumária a respeito da formação da psicanálise e de seus conceitos.
Título - Projeção e desamparo: filosofia, religião e teoria psicanalítica em Sigmund Freud
Banca - Luiz Roberto Monzani (orientador)
Débora Cristina Morato Pinto
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Aqui vai a Introdução:
Ao atentarmo-nos sobre a existência de um projeto intrínseco, de fundo, ligado ao que costumeiramente nomeamos de esclarecimento, é-nos possível vislumbrar a arquitetura de uma planificação em dois níveis. O primeiro deles, no qual levamos em consideração os modos dos quais o homem dispõe para lidar com o mundo, dirá respeito a um embate: as antigas formas míticas de interpretação da natureza deverão ser substituídas por outras mais afeitas ao real, estas ligadas à razão e ao conhecimento científico. Podemos afirmar sem constrangimentos que este primeiro nível é, por assim dizer, aquele que opera numa posição mais superficial da questão, já que, ao indicar simplesmente um modo, uma forma de ação, acaba por tratar tão somente sobre o como o homem deve colocar-se frente às dificuldades que o mundo lhe impõe.
Já o outro plano, o outro nível que pode ser entrevisto no tal projeto diz respeito a algo que nos parece estar mais na base, - ser mais essencial, portanto - uma vez que ultrapassa a questão do como e penetra no campo do sentido, ou seja, no intrincado solo das motivações. Isto significa que ele versará nada mais nada menos do que sobre o porquê do projeto que se inicia no século XVII, sobre a sua causação mais essencial, e a resposta sobre esta razão de ser é clara: livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores, como já haviam nos ensinado Adorno e Horkheimer.
Assim, com o tal ideário – e obviamente tudo o que lhe é inerente - devidamente colocado debaixo do braço, o homem pôde, nestes últimos séculos, tentar acercar-se de um universo artificial que o livrasse de todo tipo de sofrimento que pudesse confrontá-lo em termos físicos e, ainda e às vezes, a reboque de tais construções, buscar um entendimento satisfatório das questões representacionais que mais lhe trouxessem angústia. Dentre as deste último tipo - é claro e porque não, talvez a primeira e mais importante delas - a religião, ou colocando já as coisas de uma maneira mais discursivamente afeita a esta nova configuração na qual as explicações devem se resumir a leis físicas ou psicológicas: qual seria origem do sentimento religioso?
Não é difícil imaginarmos que, para os que viveram sob a égide mais fulgurante do movimento iluminista, a idéia vigente fosse a de que somente após e através de uma resposta satisfatória a esta interrogação, assim como de uma aquiescência geral desta resposta, é que o homem poderia finalmente colocar uma pá de cal no período fantasístico no qual vivera até então, libertando-se das amarras da ignorância, da infantilidade e do caos, entrando finalmente e com suas devidas glórias em uma fase ordenada, segura, adulta e devidamente afiançada pelo ordenador saber racional.
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Inúmeras foram as obras que com o espírito engajado destes novos tempos buscaram interpretar, esquadrinhar todo o montante semântico recoberto por aquilo que costumeiramente denominamos com o termo religião. Uma das mais emblemáticas, e isto considerando o posto de paradigma que veio a ocupar dentro de tal tradição, foi aquela produzida por David Hume, em 1757, e pelo autor denominada História natural da religião.
Elaborado conjuntamente a outro texto humeano substancial a respeito do tema – Diálogos sobre a religião natural - o trabalho valeu-se, a fim de configurar uma estrutura robusta para a análise do que pretendia discutir, de duas fontes primordiais, a saber: a) da confluência de dados herdados da tradição, sejam estes de estudos históricos ou filosóficos sobre o tema, assim como b) de novos trabalhos de cunho etnográfico e seus derivados, estes possibilitados pelos relatos de viajantes que se debruçaram sobre as práticas religiosas de populações recém descobertas.
Com o que tinha mãos, Hume pôde estabelecer tanto um exame de cunho antropológico quanto psicológico do fenômeno religioso - o segundo, em grande medida, derivando-se do primeiro -, exame este que se encontrava determinado pelo seguinte objetivo: compreender quais são os princípios que fazem com que surja a crença original - na religião -, e quais são os acidentes e causas que dirigem a sua operação (Hume, 1998, p. 3). Dado o questionamento, vejamos, rapidamente, como o filósofo construiu a sua resposta.
A primeira das afirmações importantes, e sobre a qual toda uma cadeia de justificações, deduções e desmembramentos encontrará apoio, será a de que o politeísmo é a primeira forma religiosa da humanidade. Afirmação que pode parecer corriqueira, a princípio, mas isto tão somente se desconsiderarmos duas respeitáveis ocorrências: a inicial, ligada ao campo político-religioso, é a de que o filósofo aqui se coloca contra toda uma estrutura judaico-cristã que se afiançava naquele período - e de maneira aguda - como a formação religiosa primordial; a outra, mais significante para nosso trabalho, é a de que, para a defesa de tal posicionamento, Hume fará uso de uma interessante equiparação a qual gostaríamos de destacar, dado o seu caráter fundante. A fim de esclarecer o argumento, voltemos à assertiva inicial, aquela que assegura que o politeísmo é a primeira, a mais antiga religião da humanidade. Para que tal afirmação seja realizada com segurança, há uma gigantesca rede de suporte armada por incontáveis relatos históricos que asseveram o mesmo. Algo que os relatos históricos também nos dizem é o seguinte: que o monoteísmo só veio a se configurar a partir de um determinado período do desenvolvimento cultural humano. Ora, afirmará o filósofo, se há algum tipo de dúvida em relação ao que diz a história, esta dúvida pode ser rechaçada através do uso de inumeráveis relatos dos viajantes, relatos tais a respeito do caráter religioso das tribos selvagens das Américas, da África ou da Ásia. Nestes grupamentos humanos, nos quais o pensamento não mostra ainda grandes níveis de refinamento, o que se encontra é justamente o mesmo que é dito nas narrativas históricas: aos pouco desenvolvidos, assim como era aos antigos, o politeísmo. A prova sobre o passado estaria, pois, no presente.
O que Hume faz aqui, em termos lógicos, é montar um argumento a partir de uma analogia que afirma que selvagem = antepassado. Assim, tanto este bestial quanto este homem antigo seriam figuras capazes de nos dar uma indicação precisa a respeito de qual teria sido a primeira forma de adoração elaborada pelo ser humano, já que configurariam, em última instância, diferentes apresentações do mesmo.
Veremos mais tarde o quanto este recurso será capturado pelos autores com quais trabalharemos com mais afinco. Guardemos, pois, com devido cuidado, esta indicação, e sigamos, já que aquilo que nos interessa em Hume não encontra fim neste lugar, sendo conveniente ainda que nos atentemos, ainda que sucintamente – como aqui convém -, a outros dois pontos de sua análise.
A primeira afirmação realizada pelo autor seguindo as pistas que estavam à sua disposição foi, como vimos, a de que o politeísmo foi a primeira religião do homem. Estabelecido assim o ponto de partida, o esteio, a matéria a partir da qual as outras questões podem ser colocadas e analisadas, Hume se encontra, destarte, em condições de perguntar: por qual motivo o homem crê? Ou: o que motivou o homem a desenvolver suas representações religiosas? A idéia do surgimento a partir da contemplação das obras da natureza é de pronto rechaçada, isso graças a irregularidade dos eventos terrenos: lembremos que a um selvagem de razão imatura só é possível a percepção de inconstâncias. O que não é vetado a este ser incipiente é seu acesso aos sentimentos básicos, a sua angustiada preocupação com a felicidade, o pavoroso receio da morte, o incessante medo de futuras desgraças. Considerando tais condições, o filósofo acaba por referendar uma linha interpretativa que acaba por aproximá-lo de Lucrécio, Hobbes, Diderot e Spinoza:
“Agitados por esperanças e medos..., especialmente pelos segundos, os homens investigam com abismada curiosidade o curso das causas futuras e examinam os diversos e contrários acontecimentos da vida humana. E neste inquieto cenário, com olhos ainda mais inquietos e assombrados, vêem os primeiros, obscuros traços de divindade.”
A expectativa, a especulação sobre o porvir, o abismático inesperado: são motivadores, sim, da necessidade religiosa. Entretanto, compondo o solo no qual a esperança se cria, encontra-se o medo, o sentimento conjunto à especulação e que, tomando as rédeas, a determina; o pavor trazido pela idéia de que o futuro pode ser de sofrimento: fome, dor ou qualquer outra desgraça. É neste medo, destarte, mais do que em qualquer outro lugar, que se encontra o imperativo para a criação dos deuses. O motivo da criação das religiões está, desta feita, apresentado.
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Bem: se o que Hume faz na passagem acima é oferecer uma resposta para a questão primordial sobre a essência religiosa, isso não significa que o questionamento deva se interromper - se temos notícias sobre os deuses nos quais o homem acredita, e compreendemos o porquê de o homem crer, necessário se faz que uma ponte seja erigida interligando as duas questões para que outra resposta apareça, a resposta sobre o que são estes deuses nos quais o homem acredita, sobre qual é processo de construção, de formação destes deuses. Hume dará conta desta questão da seguinte maneira: o homem é colocado em um mundo no qual as verdadeiras causas dos acontecimentos lhe são absolutamente ignoradas. Sendo assim, não há conhecimento suficiente para prever os males nem poder para se deles se prevenir. O que nossa imaginação faz então, enquanto nossas paixões são mantidas em alarme por conta desta expectativa angustiada sobre o porvir, é formar idéias destes poderes dos quais somos dependentes, representações que são elaboradas através de um mecanismo regular e constante:
“Há uma tendência universal em todos os homens que consiste em conceber todos os seres a nossa semelhança, e em transferir a cada objeto estas qualidades com as quais estamos mais familiarizados e das que somos mais intimamente conscientes.... olhamos para cima e transferimos paixões e debilidades humanas à deidade... Não é de estranhar, pois, que a humanidade, ao encontrar-se em uma tão absoluta ignorância das causas, e ao estar ao mesmo tempo preocupada com sua sorte futura, reconheça imediatamente sua dependência de poderes invisíveis possuidores de sentimento e inteligência.”
O que o homem faz então, impulsionado pelo medo e pela angústia, é criar representações ou representar a natureza a partir de características que lhe são inerentes, e isto tanto física quanto psicologicamente falando. Ou seja: o homem cunha as imagens divinas transferindo elementos que lhe são peculiares para os perfis nos quais acredita ou virá a acreditar. Há uma propensão natural que nos incita a este recurso, a mesma a qual nos utilizamos na prosopopéia, por exemplo, onde personificamos árvores e outros seres inanimados, dando-lhes sentimentos e paixões. A saída disto? Corrigir esta disposição através da experiência e da reflexão, dirá o filósofo, bem ao modo do esclarecimento.
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Se Hume pode ser apontado como uma espécie de marco teórico da análise filosófica do fenômeno religioso, e o século XVIII o momento no qual o ateísmo começa a freqüentar de modo mais assíduo a mente tanto de pensadores quanto do homem comum, fazendo parte definitivamente do espírito, da atmosfera daquela época, um outro autor, nascido no século seguinte, assumirá o desvendamento racional das representações religiosas como seu objetivo fundamental, como a razão de ser de seu pensamento, acabando por praticamente determinar o que, ainda nos XIX e depois, se produziu sobre o assunto, tamanhos alcance e penetração de seus escritos tanto na filosofia quanto na teologia.
Ludwig Feuerbach desenvolveu-se em um ambiente filosófico bastante determinado: foi aluno de Hegel por dois anos – 1824 e 1825 – em Berlim, assumindo por um bom período o posicionamento de seu mestre a respeito do tema, a saber e de forma bastante geral, a conciliação, a unidade da síntese entre o que é filosófico e o que é religioso, entre razão e fé.
Tal cenário, entretanto, não se manteve estável por muito tempo e começou a se alterar quando, em 1839, escreveu o filósofo a sua Crítica da filosofia hegeliana, sendo que, dois anos depois, em 1841, tudo foi definitivamente posto aos ares, e não apenas no que diz respeito à filosofia de Hegel, mas também no que tange à relação de Feuerbach com toda a academia de seu tempo: A essência do cristianismo é publicada, e nela o cristianismo é abdicado em favor da filosofia. Aliás, não será exclusivamente o cristianismo o elemento a ser posto em xeque pelas elaborações feuerbachianas: em 1845, A essência da religião tratará de desconstruir também o pensamento religioso em geral, desmistificando a fé e trazendo os questionamentos sobrenaturais para o mundo terreno, absolutamente humano.
Deus não tem existência, o que tem existência é o homem, dirá Feuerbach, o que significa que tanto o fundamento quanto o objeto da religião dizem respeito ao ser do homem. Disso se depreenderá o seguinte: que, para que possamos compreender tanto este homem quanto os processos de construção e sustentação das representações religiosas, a teologia deve ser subsumida pela antropologia. Se a primeira coloca-se numa dimensão fantástica de interpretação do universo humano, a segunda busca compreendê-lo a partir do que é real, do concreto. Deus seria, então, por fazer parte deste formato imaginário de percepção/ construção do mundo, uma ilusão humana, uma fantasia que, alias, é possibilitada por um mecanismo psicológico bastante específico: o da objetivação. O homem projeta para fora as suas características mais gerais, mais íntimas, aquelas que dizem respeito à sua espécie em geral, e constrói a partir destes elementos uma imagem a qual atribui uma existência superior.
Os predicados divinos são, portanto, os predicados humanos, e a função da filosofia, e do projeto que dela se gera, ou seja, da redução da teologia à antropologia, é o de, ao tornar claro ao homem este processo mistificador, restituí-lo ao mundo da realidade, às formas mais eficazes de ação e compreensão sobre/ de si e da natureza que o cerca, tornado-o responsável pelo seu futuro, justamente o inverso daquilo que é realizado pelo fenômeno religioso.
O grande problema encontrado para a realização deste plano, que na verdade está na base de todo o processo e que também é trazido pelo diagnóstico antropológico-filosófico, é que aquilo que gera e que sustenta a religião vem a trata-se de algo de caráter emocional e que reflete a forma como o homem se percebe no mundo. O que é isso? Se existe algo que motiva a crença, este gerador é o sentimento de dependência do homem para com a natureza que o cerca, e mais, se há um pólo neste sentimento de dependência, neste sentir-se incapaz de lidar com o mundo e assumir plenamente o seu destino, este pólo é o do medo: o ser humano necessita, pois, de algo que o proteja e que o retire das situações de perigo e angústia pelas quais atravessa pela vida. Imperioso para a filosofia de Feuerbach é, dado o que foi dito, que o homem saia deste estado primitivo, deste lugar infantilizado no qual se coloca perante o ato de existir, assuma suas agruras e lide de forma pungente com as mesmas.
Para tanto, entretanto, ele precisa estar consciente do processo no qual se encontra, e a razão será aquilo que o tornará sabedor das ilusões, em um processo guiado por uma nova filosofia fundada na materialidade do homem, cuja história a antropologia nos conta.
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Qualquer pessoa que tenha ao menos folheado uma parte considerável da obra freudiana saberá que um bom tanto da mesma versa sobre a análise da cultura ou, mais precisamente, trata de aplicar os conceitos forjados pela psicanálise na leitura de certos fenômenos sociais.
Um pouco mais de acuidade no olhar mostrará também o seguinte: dentre todos estes fenômenos sociais ou mesmo realizações da civilização, a religião é aquela que, sem dúvida alguma, mais ocupou as linhas e, por conseguinte, a mente de Freud.
Bem: um tanto quanto óbvio que as coisas tenham se passado desta maneira, dirão alguns, dada uma certa relação dificultosa estabelecida entre este homem Freud, este judeu sem deus, e a tradição religiosa à qual o mesmo se ligava. Tal forma de ver as coisas, levando em consideração fundamentalmente a biografia freudiana - é bom que digamos - foi capaz de conduzir um montante significativo da produção que se propôs a realizar uma análise da posição do psicanalista no que tange ao fenômeno religioso.
A este respeito, entretanto, não devemos nos esquecer de algumas outras coisas que, juntas, são capazes de compor um quadro bastante mais significativo e explicativo não apenas das opções de Freud frente ao tema mas, e tão ou mais importante quanto, dos argumentos dos quais se utilizou, selecionou para lidar com a questão.
A primeira e não menos relevante do que as outras é aquela que versa sobre o fato de que a psicanálise, para Freud, não diz respeito somente a uma condição clínica, a uma prática terapêutica cujos objetos de trabalho se resumiriam ao lide com problemas etiológicos. Seu enfoque é bastante mais extenso e trata de cuidar também da condição humana em si, de como esta condição, que a princípio surge individualmente na clínica, foi capaz de universalizar-se e como reagimos, cada um de nós, em relação aos outros indivíduos. De maneira mais direta: se o psiquismo se humaniza e se desenvolve em e na relação com outros, é necessário que se o compreenda também nesta relação, isto é, inserido no universo cultural.
Já o segundo objeto, acreditamos, a ser sobreposto ao entendimento das escolhas vem do fato de Freud considerar a psicanálise uma ciência natural e, por conseguinte, pertencente à Weltanschauung científica. O programa desta cosmovisão – como colocado na 35ª Conferência - é fornecer aclaramentos advindos de minuciosas investigações, estas regidas pela razão e por seus determinantes, e nunca pela revelação, intuição ou adivinhação - estes últimos devem ser considerados então sempre como objetos psicológicos a serem desvendados, e nunca métodos de obtenção de conhecimento, como poderia querer, por exemplo, o pensamento religioso -.
Ora, esta forma de perceber a ciência, de valorá-la, ou mesmo esta maneira de ser que coordena o pensamento científico não é algo que tenha se gerado por si e que prescinda um suporte: há algo que a originou e que lhe serve de apoio. E é nesta sustentação a partir da qual Weltanschauung científica se instaura e mantém que encontraremos o terceiro termo a se considerar sobre o tratamento freudiano da religião: não, não há como escapar das bases filosóficas que compunham as estruturas do pensamento no momento de formação e de produção da psicanálise. Se o método de desvelamento do homem a partir do inconsciente se desenvolve em determinado momento histórico, é impossível que ele não seja fruto do movimento intelectual no qual foi gestado e desenvolveu-se e que era, a saber, o esclarecimento, o mesmo esclarecimento do início desta introdução, o mesmo esclarecimento de Hume, o mesmo que tem no século XIX a figura de Feuerbach como um de seus expoentes.
O propósito desta dissertação, aquilo que a motiva, é algo que se gera, pois, a partir da confluência de todas estas coisas e que, na verdade, divide-se em alguns momentos, todos eles ligados ao desenvolvimento teórico da interpretação psicanalítica - freudiana - do fenômeno religioso. Isto significa o seguinte: que assim como nos interessam os tratamentos dos conceitos efetuados nos textos de Freud, queremos também demonstrar que, ao realizar as suas escolhas, a sua opção por alguns destes conceitos e mesmo pelo método que chega a utilizar, o pai da psicanálise acaba se ligando a uma tradição de análise das origens da religião, própria ao esclarecimento, esta que será representada por Feuerbach.
Duas perguntas aqui se fazem então necessárias para que, ao respondê-las, possamos melhor determinar o nosso objetivo. São elas: 1) quais são estes conceitos freudianos a serem perseguidos e, 2) por que Feuerbach?
No que diz respeito à primeira, interessa-nos saber o que está em jogo, esclarecer o que há de propriamente psicanalítico na tese freudiana sobre a origem das representações religiosas, esta anunciada condensadamente na seguinte passagem de O futuro de uma Ilusão:
“Esta situação, em efeito, não é algo novo; tem um arquétipo infantil, na verdade não é senão a continuação de outra, inicial: em igual desamparo se havia encontrado o homem já uma vez, quando era criança pequena, frente a um casal de progenitores a quem se temia com fundamento, sobretudo ao pai, porém cuja proteção, também, o assegurava contra os perigos que então conhecia... De modo semelhante, o homem não converte as forças naturais em simples seres humanos com quem pode tratar como faz com seus próximos... antes bem, as confere caráter paterno, faz delas deuses, no qual obedece não só um arquétipo infantil, mas como também, tentei demonstrar, a um filogenético.”
Considerando o que é exposto no trecho acima veremos que, ao percorrermos o caminho de formação dos conceitos de projeção e desamparo, a interpretação e a real intencionalidade deste escrito – e, por conseguinte, do que ele representa - se nos apresentarão com bastante mais clareza. É o que faremos, destarte, no primeiro e segundo capítulos de nosso trabalho, nos quais veremos como a montagem dos textos freudianos sobre a cultura se baseia nas linhas de força estabelecidas pelas considerações forjadas na psicanálise, isto dado pela mostra da gênese e da evolução destas considerações, ou seja, as suas histórias internas.
No que diz respeito à questão seguinte, a justificação vem, primeiro, de forma óbvia, por conta da já anunciada importância de Feuerbach no século XIX. Em segundo, pelos conceitos dos quais se utiliza – objetivação e dependência -, pelo método e pela forma como erige a sua argumentação a respeito do fenômeno religioso. Por último, enfim, motiva-se por colocações como a seguinte, um trecho de uma carta enviada por Freud ao seu amigo Silberstein, em 07/03/1875 :
“Karl Grün, cuja dissertação sobre Börne tanto te alegrou, é também de meu conhecimento. Há poucas semanas atrás ouvi uma palestra dele... que culminou com a glorificação das ciências naturais modernas e de nossos mais modernos santos, como Darwin, Haeckel etc., e que nos fez, a nós estudantes, dar um viva depois do outro. Como, além disso, o homem publicou uma biografia de Feuerbach, que faz justiça ao significado desse homem que, entre todos os filósofos, eu mais respeito e admiro, estimo o homem e me alegro por esse batalhador versátil a favor de nossas verdades.”
O tratamento das questões em Feuerbach será realizado, de forma bastante menos intensa do que o oferecido a Freud – o esclarecimento da psicanálise é nosso foco –, no terceiro capítulo de nosso texto.
O que não faremos nesta dissertação, e acreditamos também que seja importante dizermos, é uma equiparação, uma análise relacionando os conceitos freudianos e feuerbachianos dado que, como veremos, os mesmos se aproximam bastante. E não o faremos por sabermos terem sido estes forjados em duas racionalidades diferentes, em dois campos do conhecimento que, ainda que possam se equiparar em dados momentos em termos de forma e conteúdo, possuem esteios epistemológicos distintos. O que nos poderá vir à mente após a leitura, e isto já é algo por nós aceito e, como dito, esperado, será uma idéia de filiação - nada nova em termos de filosofia da psicanálise - bastante mais universal e profícua do que aproximações pontuais.
Em nosso pequeno quarto capítulo, no qual faremos nossas derradeiras considerações, buscaremos expor de forma breve os resultados aos quais chegamos, e isto conectando os liames internos de nosso texto, assim como tentaremos também propor uma discussão bastante sumária a respeito da formação da psicanálise e de seus conceitos.
15.4.09
Será que o livre mercado corrompe nosso caráter?
O site Ordem Livre deu sequência, no Brasil, a um projeto de uma tal Templeton Foundation e que se trata de algo bastante simples: colocar a algumas cabeças a questão Será que o livre mercado corrompe nosso caráter?
Foi Reinaldo Azevedo o primeiro de nossa terrinha a produzir o texto de resposta. O mesmo segue abaixo por conta de tê-lo achado primoroso. Os de outras pessoas, as do mundo afora, podem ser lidos aqui.
Não poderia
por Reinaldo Azevedo
O mercado não poderia responder pela corrosão do caráter porque o caráter, como o entendemos, é uma construção do próprio mercado.
Todas as línguas de cultura devem a origem dessa palavra, primeiro, ao grego e, depois, ao latim. “Caráter”, no idioma de Cícero, significava, originalmente, o ferro em brasa com que se marcavam os animais. Por metonímia, passou a indicar a marca que esse instrumento deixava. O tempo e a metáfora se encarregaram de fazer com que a palavra designasse o conjunto de valores cultivados por um indivíduo. Esse conjunto se torna a sua marca particular, aquilo que o distingue, uma moral privada estampada a fogo na consciência. Só pode haver “caráter” se há indivíduo.
Por que sustento que a sociedade de mercado inventou o caráter? Porque ela é uma condição necessária, embora não suficiente, da liberdade. E não pode haver individuação onde não há escolha. Não é por acaso que as mais eloquentes fábulas antiutópicas — como Nós (Ievguêni Zamiátin), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), O processo (Kafka) e O zero e o infinito (de Arthur Koestler, a melhor de todas elas) — flagrem justamente o indivíduo contra o “ser coletivo”, que é uma invenção do Estado. Trata-se do contraste entre o homem de caráter e aqueles que se fazem meros funcionários de uma ordem cuja única preocupação é garantir a própria sobrevivência.
Os dias que correm, depois da crise financeira que varreu o mundo, são especialmente propícios à hostilização do mercado, que propiciaria a ganância. Ambições desmedidas, típicas das sociedades capitalistas, teriam conduzido o mundo à beira do abismo. Não fosse a vontade de lucrar, não fosse a vã cobiça, dizem os sacerdotes das catacumbas do estatismo, tudo seria diferente.
Bem, nem vou me ocupar — quer porque óbvio, quer porque outros já o fizeram — de demonstrar que o ciclo de prosperidade econômica que antecedeu a crise tirou milhões de pessoas da miséria e forneceu o capital necessário para a revolução tecnológica, que não ficou restrita ao setor financeiro. Os inimigos do capitalismo detestam constatar que o dinheiro de um “maldito especulador” financia o desenvolvimento de vacinas e de máquinas agrícolas, que salvam a vida de milhões. Na sua fantasia, isso tudo é obra da benemerência e do humanismo abstrato. Seria igualmente ocioso lembrar aqui como andou o caráter nas sociedades que decidiram abolir o mercado ou que houveram por bem submetê-lo a um rígido controle do Estado. Os vários fascismos e as várias faces do socialismo real — e só houve o real, não é? — deixaram um rastro de mortes, de desolação, de desastres.
O que corrói o caráter — na verdade, o destrói — é a tirania. Chamo de “tirania” a impossibilidade de se organizar qualquer forma de resistência à vontade oficial, quando os próprios indivíduos já não podem mais exibir seus traços distintivos, suas marcas particulares, porque perderam a vontade da autonomia. Quem chegou mais perto da plena caracterização dessa sociedade foi o teórico comunista Italiano Antonio Gramsci. Para ele, o lugar que Maquiavel reservara ao “Príncipe” seria ocupado por um partido político — no caso, o Partido Comunista —, que ele chamava “Moderno Príncipe”.
Nenhum daqueles antiutopistas que citei acima chegou aos pés de Gramsci quando ele relata o papel que o “o partido” deveria ocupar na sociedade: “O Moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume.”
Nos países campeões da corrupção, o que se tem é mercado de menos, não mercado demais. Em alguns casos, e o Brasil tem larga experiência no assunto, gangues se apropriam de estruturas estatais para impor a sua vontade e cuidar dos seus interesses particulares. O regime é só uma derivação pervertida da economia de mercado. A fraude numa licitação ou o sobrepreço numa obra pública, por exemplo, têm origem na corrupção do caráter do agente público, que pode fraudar as regras sob o abrigo da lei.
Rotineiramente, o Estado, sob o pretexto de moralizar a sociedade de mercado, inventa o pecado para, depois, definir a penitência dos agentes privados que ele se encarregou de perverter. E o faz oferecendo ainda mais controle estatal e, pois, mais chances e instâncias de mediação para o exercício da corrupção. Entendo que a tarefa dos homens livres é lutar para conter os apetites deste ente pantagruélico. É fato que pagamos um preço por viver em sociedade. Mas tem de ser um preço justo. O melhor instrumento para manter a détente entre indivíduo e estado é a sociedade da regulação: agências independentes do governo e do mercado — e vigiadas por ambos — devem se encarregar de fazer valer a lei... de mercado!
A idéia de que o mercado corrompe o caráter nasce da suposição de que possa haver um sistema perfeito, capaz de livrar os homens de suas paixões, levando-os, então, à plena liberdade. A história demonstra ser essa uma fantasia liberticida. “Liberdade! Quantos crimes se cometem em teu nome”, exclamou certa mocinha a caminho da guilhotina, para satisfazer a sede de sangue do justiceiro Robespierre. Ademais, lembremo-nos de uma frase de Goethe, que parece sintetizar à perfeição o totalitarismo: “Ninguém é tão desesperadamente escravizado como os que acreditam que são livres”. Os regimes totalitários, como aquele imaginado por Gramsci, querem dar essa impressão de liberdade.
Livre mesmo é só o homem que sabe que tem de lutar para conter todos os apetites que querem escravizá-lo. E essa é uma tarefa da consciência individual, não do Estado.
E encerro com uma constatação e um enigma. A primeira medida de um regime de força é suspender o habeas corpus; a segunda é tabelar preços. Tenho a certeza de que isso quer nos dizer alguma coisa. O que será?
Foi Reinaldo Azevedo o primeiro de nossa terrinha a produzir o texto de resposta. O mesmo segue abaixo por conta de tê-lo achado primoroso. Os de outras pessoas, as do mundo afora, podem ser lidos aqui.
Não poderia
por Reinaldo Azevedo
O mercado não poderia responder pela corrosão do caráter porque o caráter, como o entendemos, é uma construção do próprio mercado.
Todas as línguas de cultura devem a origem dessa palavra, primeiro, ao grego e, depois, ao latim. “Caráter”, no idioma de Cícero, significava, originalmente, o ferro em brasa com que se marcavam os animais. Por metonímia, passou a indicar a marca que esse instrumento deixava. O tempo e a metáfora se encarregaram de fazer com que a palavra designasse o conjunto de valores cultivados por um indivíduo. Esse conjunto se torna a sua marca particular, aquilo que o distingue, uma moral privada estampada a fogo na consciência. Só pode haver “caráter” se há indivíduo.
Por que sustento que a sociedade de mercado inventou o caráter? Porque ela é uma condição necessária, embora não suficiente, da liberdade. E não pode haver individuação onde não há escolha. Não é por acaso que as mais eloquentes fábulas antiutópicas — como Nós (Ievguêni Zamiátin), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), O processo (Kafka) e O zero e o infinito (de Arthur Koestler, a melhor de todas elas) — flagrem justamente o indivíduo contra o “ser coletivo”, que é uma invenção do Estado. Trata-se do contraste entre o homem de caráter e aqueles que se fazem meros funcionários de uma ordem cuja única preocupação é garantir a própria sobrevivência.
Os dias que correm, depois da crise financeira que varreu o mundo, são especialmente propícios à hostilização do mercado, que propiciaria a ganância. Ambições desmedidas, típicas das sociedades capitalistas, teriam conduzido o mundo à beira do abismo. Não fosse a vontade de lucrar, não fosse a vã cobiça, dizem os sacerdotes das catacumbas do estatismo, tudo seria diferente.
Bem, nem vou me ocupar — quer porque óbvio, quer porque outros já o fizeram — de demonstrar que o ciclo de prosperidade econômica que antecedeu a crise tirou milhões de pessoas da miséria e forneceu o capital necessário para a revolução tecnológica, que não ficou restrita ao setor financeiro. Os inimigos do capitalismo detestam constatar que o dinheiro de um “maldito especulador” financia o desenvolvimento de vacinas e de máquinas agrícolas, que salvam a vida de milhões. Na sua fantasia, isso tudo é obra da benemerência e do humanismo abstrato. Seria igualmente ocioso lembrar aqui como andou o caráter nas sociedades que decidiram abolir o mercado ou que houveram por bem submetê-lo a um rígido controle do Estado. Os vários fascismos e as várias faces do socialismo real — e só houve o real, não é? — deixaram um rastro de mortes, de desolação, de desastres.
O que corrói o caráter — na verdade, o destrói — é a tirania. Chamo de “tirania” a impossibilidade de se organizar qualquer forma de resistência à vontade oficial, quando os próprios indivíduos já não podem mais exibir seus traços distintivos, suas marcas particulares, porque perderam a vontade da autonomia. Quem chegou mais perto da plena caracterização dessa sociedade foi o teórico comunista Italiano Antonio Gramsci. Para ele, o lugar que Maquiavel reservara ao “Príncipe” seria ocupado por um partido político — no caso, o Partido Comunista —, que ele chamava “Moderno Príncipe”.
Nenhum daqueles antiutopistas que citei acima chegou aos pés de Gramsci quando ele relata o papel que o “o partido” deveria ocupar na sociedade: “O Moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume.”
Nos países campeões da corrupção, o que se tem é mercado de menos, não mercado demais. Em alguns casos, e o Brasil tem larga experiência no assunto, gangues se apropriam de estruturas estatais para impor a sua vontade e cuidar dos seus interesses particulares. O regime é só uma derivação pervertida da economia de mercado. A fraude numa licitação ou o sobrepreço numa obra pública, por exemplo, têm origem na corrupção do caráter do agente público, que pode fraudar as regras sob o abrigo da lei.
Rotineiramente, o Estado, sob o pretexto de moralizar a sociedade de mercado, inventa o pecado para, depois, definir a penitência dos agentes privados que ele se encarregou de perverter. E o faz oferecendo ainda mais controle estatal e, pois, mais chances e instâncias de mediação para o exercício da corrupção. Entendo que a tarefa dos homens livres é lutar para conter os apetites deste ente pantagruélico. É fato que pagamos um preço por viver em sociedade. Mas tem de ser um preço justo. O melhor instrumento para manter a détente entre indivíduo e estado é a sociedade da regulação: agências independentes do governo e do mercado — e vigiadas por ambos — devem se encarregar de fazer valer a lei... de mercado!
A idéia de que o mercado corrompe o caráter nasce da suposição de que possa haver um sistema perfeito, capaz de livrar os homens de suas paixões, levando-os, então, à plena liberdade. A história demonstra ser essa uma fantasia liberticida. “Liberdade! Quantos crimes se cometem em teu nome”, exclamou certa mocinha a caminho da guilhotina, para satisfazer a sede de sangue do justiceiro Robespierre. Ademais, lembremo-nos de uma frase de Goethe, que parece sintetizar à perfeição o totalitarismo: “Ninguém é tão desesperadamente escravizado como os que acreditam que são livres”. Os regimes totalitários, como aquele imaginado por Gramsci, querem dar essa impressão de liberdade.
Livre mesmo é só o homem que sabe que tem de lutar para conter todos os apetites que querem escravizá-lo. E essa é uma tarefa da consciência individual, não do Estado.
E encerro com uma constatação e um enigma. A primeira medida de um regime de força é suspender o habeas corpus; a segunda é tabelar preços. Tenho a certeza de que isso quer nos dizer alguma coisa. O que será?
14.4.09
George Harrison - Isn't it a pity?
Uma das minhas canções favoritas, a qual eu tinha simplesmente esquecido da existência. Voltou de uma forma ótima e inesperada. Como não encontrei um vídeo decente da versão original - a música é do George Harrison e faz parte do álbum All Things Must Pass, de 1970 - então vai este mesmo que, aliás, como vocês verão, é ruim pra cacete.
11.4.09
É que...
É que muitas vezes, muitas vezes mesmo, eu só quero ficar em casa, sozinho, comendo rosquinhas Mabel e lendo uma coisa qualquer, sem importância, da qual me lembrarei muito pouco no dia seguinte.
É que muitas vezes, muitas vezes mesmo, não tenho tido paciência para fazer acordos entre os meus desejos - e principalmente a falta deles - e o desejo do outro.
Se tantas e tantas vezes eu sequer quero algo, como posso vislumbrar querer aquilo que o outro quer?
É só isso.
Em muitíssimos mundos, não desejar o desejo do outro é traí-lo.
...
É que muitas vezes, muitas vezes mesmo, não tenho tido paciência para fazer acordos entre os meus desejos - e principalmente a falta deles - e o desejo do outro.
Se tantas e tantas vezes eu sequer quero algo, como posso vislumbrar querer aquilo que o outro quer?
É só isso.
Em muitíssimos mundos, não desejar o desejo do outro é traí-lo.
...
7.4.09
4.4.09
Das antigas, ou de quando elas existiam e brotavam
Lembro-me de que, quando
Eu era uma criança, havia
Bem mais borboletas do
Que hoje.
Só não sei se assim ocorria por
Naturalmente existirem mais
Borboletas ou por eu notá-las
Bem mais e melhor.
Não importa.
Disto quero a lembrança de início
como todas estas lembranças se parecem:
Um acontecer em meio a uma manhã
De inverno em que há frio e nevoeiro
Ante a tudo o que se vê;
Onde valseia-se entre objetos
Que são menos reais por estarem
Protegidos; sem exaustão;
Para que se possa brincar até a madrugada
e tratar a vida como somente e não mais
que isto - uma pequena companheira,
assim como parva borboleta.
(1995)
Eu era uma criança, havia
Bem mais borboletas do
Que hoje.
Só não sei se assim ocorria por
Naturalmente existirem mais
Borboletas ou por eu notá-las
Bem mais e melhor.
Não importa.
Disto quero a lembrança de início
como todas estas lembranças se parecem:
Um acontecer em meio a uma manhã
De inverno em que há frio e nevoeiro
Ante a tudo o que se vê;
Onde valseia-se entre objetos
Que são menos reais por estarem
Protegidos; sem exaustão;
Para que se possa brincar até a madrugada
e tratar a vida como somente e não mais
que isto - uma pequena companheira,
assim como parva borboleta.
(1995)
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