27.11.08

Porque merecemos, às vezes, um pouco de João Cabral

Paisagem pelo telefone


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

26.11.08

Oscar Peterson - Alice in Wonderland

Este é tipo de coisa para o qual se diz: como pode existir algo assim?

Espantoso...

O esclarecimento da psicanálise

Quando o livro pertence àquela categoria dita "fora de série", é bom que prestemos atenção inclusive em algum possível significado latente em seu ponto final. Este é caso de "Dialética do Esclarecimento". Lá no fundo, depois que tudo parece ter sido dito, nos esboços não aproveitados, há este texto primoroso. Permito-me fazer algumas digressões no final.

A gênese da burrice

O símbolo da inteligência é o caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos, a vida intectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis.

Os animais mais evoluídos devem o que são à sua maior liberdade; sua existência mostra que, outrora, suas antenas foram dirigidas em novas direções e não foram retiradas... A repressão das possibilidades pela resistência imediata da natureza ambiente prolongou-se interiormente, com o atrofiamento dos órgãos pelo medo. Cada olhar que o animal lança anuncia uma forma nova dos seres vivos que poderia surgir da espécie determinada a que pertence o ser individual.

Esse olhar tateante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás de si a boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro.

A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas. As perguntas sem fim da criança já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para a qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente. A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada, por exemplo quando o leão em sus jaula não pára de ir e vir, e o neurótico repete a ação de defesa, que já se mostrara inútil. Se as repetições já se reduziram na criança, ou a inibição foi excessivamente brutal, a atenção pode se voltar numa outra direção, a criança ficou mais rica de experiências, como se diz, mas freqüentemente no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres duros e capazes, podem tornar as pessoas burras - no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira, da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violência sofrida torna a boa vontade em má.


Há uma divisão que pode ser feita a partir dos dados do texto. Ela não é estanque: é um tanto quanto viva e e instável já que, afinal, lida com fatos humanos. Diz respeito à existência de uma burrice cognitiva numa ponta e, de outro lado, àquela que pode ser tomada como afetiva. É desta que falarei um pouco.

Em um dado momento, os autores se referem à ação do neurótico que repete a defesa. É a forma que ele encontra para lidar com sua cicatriz, que ao mesmo tempo que dói o desvincula da realidade. A cicatriz do neurótico e seu invólucro são fáceis de ser entendidos: uma vez usado o órgão do afeto, e estando a ponteira deste órgão machucado, ele acaba por reeditar a metáfora da antena do caracol - se estende pouco, avança até o limite de não sujeitar-se ao decepamento. O membro em recuperação encontra-se por si só manco, e não pode se dar ao luxo de avançar o suficiente simplesmente porque o que lhe é intrínseco vive agora somente em forma potencial.

Assim o neurótico repete. E repete porque não se livra da cicatriz e seu órgão é o único que lhe existe ligado à função. Repete porque cada situação dada é percebida como a originária, a dolorosa. A única saída do neurótico é a reinterpretação. É a verificação de que o órgão é tocado por algo novo, diferente do cortante: é desconstruir, tornando a cicatriz, ao mesmo tempo, o mais maleável e o mais resistente possível.

O que há de preocupante entretanto, e aí então a neurose involui à uma espécie de protopervesão, é a possibilidade de rearranjo do órgão, o seu estabelecimento em contrário de si: o afeto passa a desafeto, a timidez passa à arrogância, a construção passa ao desmoronamento - a antena, para que consiga a defesa, não mais se recolhe e tenta indistintamente - ela se transmuta em tentáculos e presas afiadas. O alcançe do outro não é mais toque: é estocada, luta, geração de desprazer para com o desejado.

O interessante aqui é sabermos que - e isto aparece na psicanálise já desde seus mais antigos trabalhos - incrementando os sintomas, há uma percepção do doente de que ele se encontra em melhores condições. A defesa se torna melhor sucedida quando o desvio é mais eficaz. A situação terrível é lida como prazerosa por conta dos mecanismos embusteiros. O masoquismo é um caso exemplar. Nele, a perversão se instala de vez e permanece.

Assim como a agulha é anunciada como dor apenas na entrada e na saída, parecendo fazer parte do organismo quando na carne, o mal passa a significar prazer ao masoquista quando, de início, não se movimenta. A rotação pode ser então, com o tempo, completamente realizada - perversão = per verso = pelo contrário. O sujeito ou o fato responsável pelo desconforto, ainda que pleno, é reconhecido como necessário e bondoso quando presente e pode iniciar seus vai e vens dolorosos. Os sujeitos e fatos para os quais as antenas poderiam se aproximar com menos problemas são reconhecidos, quando tocados, como indecentes causadores de cicatriz. Morte é vida, ainda que digam o inverso. O desejo do indivíduo é respeitado, ainda que isso signifique ser abusado. Menos vale mais.

O montante da burrice afetiva é o mesmo da felicidade trazida pelo prazer da inversão. Uma simbiose então deve se iniciar: ao masoquista agora feliz une-se o naricista e/ou sádico. A lente convergente está fortemente instalada nos sistemas que se aproximam da ou repetem a relação perversa. O alcoólatra perverso ama a bebida com a mesma força com que odeia o alimento. Reinicia seu amor diariamente. O apaixonado perverso adora seu amante na mesma medida em que ele, o traindo, fica. E reitera seu método, sempre. A felicidade nunca foi nem será índice de saúde. Quando Nietzsche diz que é preciso haver caos dentro de si para que se possa dar luz a uma estrela dançante não profere um texto de agenda para meninas: fala sobre criação e, ao seu modo peculiar, de cura.

Por muitas vezes o câncer só aparece quando é chegado o estágio final, mostrando tudo o que tem mostrar. O câncer da burrice afetiva por muitas e muitas vezes repete o fado. A cura só se apresenta a quem se sabe e se sente doente e, calado e aceitando como eterno o pathos de estar-se constantemente se contruindo, prepara-se para arriscar novas e sadias cicatrizes.

22.11.08

Scherzo, ma non troppo

parecedosas mulhemieres voandocas meacenam
pertoda porta e minhaefE50 atravessa o sonho e me
acordalha pelostím panosmolhaDoçuras e Água fresca
a oa cordar incordado cordatoCuore

somedaywe’llwalkintheraysofabeautifulsun
somedaywhentheworldismuchlighterLikeaflowerinthe
darkIdon´treflectheLightnowhereandtrytoflyaroundtheMoon

nãonão reflitero a luz sãoapenas de ornitoriso que faço
eosaposeasienasais de Tiananmenbad drink gin mentre io
peço umrum para viagem e não deveria papar de beber
até tentar ósculosemeustestículosts Mas de queadianta
seas crianças ainda morremnolíbanoirãafricanesquina
(o ator agora deverá Chorar compulsivamente)

placas de titânio no cérebro e a fenda parainjecçãoDasparoxítinas
que colorem as imagens que penetram pelos olhos naprogramação
da semana teremos "- idealismo de agulha –" ou
eis-me um prozaqueano na promoção troque dois ComprimidoS azuis
mais dois gols do camisa dez e e ganhe essa tal felicidade queraumacasinhaunacolinaQuandoagentequeramar.



Ego (Mei, Mihi, Me)

Hoje eu me cansei de mim mesmo. Cheguei ao meu limite comigo. Tive vontade de me bater.

Não é pra menos, acredito: quem suportaria sem percalços uma relação tão longa e pegajosa dessas? São 33 anos, quase 34, sem me abandonar por um só minuto. Nos sonhos, no banho, no almoço, na caminhada, na escrita, na punheta, no amarrar os sapatos: sempre eu lá, comigo, divagando idiotices e genialidades, dando pitacos sobre mim, me achando o máximo, me perguntando o motivo da tolice.

Cansei-me de mim porque pareço jamais reconhecer o que estou fazendo ou conjecturando quando na verdade sei muito bem o que se passa. Porque me confundo e me perco e me desacato e me espanto e me estranho e me enluto e me acredito e me troço e me esqueço e quando me recordo normalmente já é tarde e errei por me deslembrar e me irrito com o olvidado e com o lembrado e com o incessantemente repetido olha o que você fez!

Preciso de um tempo de mim de um modo urgente. Férias de mim. Eu sem mim esquiando em Bariloche. Eu sem mim nas ilhas gregas. Eu sem mim vendo o Davi de Michelangelo. Eu sem mim com a moça bonita rindo no teleférico de Poços de Caldas. Eu sem mim vendo peitos no Mardi Gras de New Orleans. Eu sem mim nem que seja na hora de...

Careço da minha falta. Alguém, por favor, me leve pra passear para que eu me dê um tempo! Sim, como se eu fosse o poodle e o dono do poodle que o esquece. Quem sabe um centro espírita? Um terreiro umbanda? Uma regressão até me ver guerreiro mongol e não saber o que me digo?

São 33 anos comigo, quase 34. Fabiano: puta que o pariu, por todos os santos, saravá meu pai - me esqueça um pouco - é só o que lhe peço, a mim.

20.11.08

brasilianescas (nova série)

Nome do estádio do Duque de Caxias F.C, do Rio de Janeiro: Romário de Souza Farias.

Apelido do lugar: Marrentão.

18.11.08

Buscopost

Há quem diga que a dor venha do desejo de não sentir dor. Budismos e niilismos à parte, o meu caso é um tanto quanto menos complicado, denso, metafísico: a minha dor não vem de outro lugar que não sejam os rins mesmo e, cacete, como dói!

Domingo houve mais uma participação minha no Buscodia feliz. Acorda com aquela dor bastante caracterítica nas partes baixas, tenta negar o acontecimento que se inicia lenta e pavorosamente, levanta, toma um banho, aceita a situação já que então seu ventre todo pulsa e retorce e espeta, bota uma roupa e vai pro hospital.

Chega no lugar é tratado com alguém que - se é que isso um dia existiu - dá carteirada com uma granada ameaçando explodir tudo: moça, é rim. Ai meu deus, corre pra dentro. Gente, é cólica renal, é cólica renal! A médica olha pra você, a enfermeira olha pra você e pra médica, você olha pro seu cadarço porque não consegue sair da posição fetal e todos já sabem o que fazer: Voltaren na bunda, Buscopan e Dipirona - ou às vezes Tramadol - na veia. Qual veia? Como você já está pálido, sem pressão e achando que morrer talvez não fosse um mal negócio, as ditas desaparecem e a moça fica rodando uma agulha dentro do seu braço como se estivesse fazendo crochê. Tá doendo? Talvez estivesse pra alguém que soubesse ao menos em que planeta se encontrava.

Dez minutos: este é tempo da salvação. Sua boca seca e o mundo começa a ficar lindo não apenas pela redução da dor mas porque a zuretisse se inicia: mundo em câmara lenta, visão completamente turva (não dá pra ver a hora no relógio), sonolência - bem-vindo meu caro, bem-vindo ao Buscomundo!

Uma hora depois você já é um sujeito quase normal. Tira aquela coisa do braço, pega os resultados dos exames e volta pra casa onde tomará no máximo dois comprimidos de Buscopan Composto quatro vezes ao dia. Foi o que fiz hoje. Por isso dormi o dia todo, por isso escrevi este texto praticamente deitado porque ainda dói um pouco e essa coisa de comprimido não resolve muito, e por isso fiz gelatina há quarenta minutos e tenho disposição pra esperar ficar pronta. Aliás, vou dar uma olhada nesta coisa agora porque acho que já dá pra comer e eu tô morrendo de vontade.

Um Buscobeijo a todos...

13.11.08

I can't see me loving nobody but you, for all my life...

Nietzsche disse certa feita que, sem música, a vida seria um erro. Eu acrescentaria aí, fomando uma listinha das coisas sem as quais a vida seria um erro, as Tostitas e o chutney.

Idiossincrasias à parte, uma coisa que sempre me espantou foi a capacidade que a música tem de potencializar aquilo que lhe cerca. Um texto bobo é um texto bobo, até que lhe adicionem uma boa música e ele passa a ganhar contornos de algo mais do que decente. Uma prova disso está nas próprias letras das canções: longe de chegarem perto de um poema denso, ao serem musicadas fazem parecer com que Peninha possa se aproximar bastante de Pessoa. É esse tipo de persuasão causada pelo impacto musical que faz com chamemos muitos de nossos compositores de "poetas". Não, não e não: Chico Buarque está a uns 25.879 quilômetros de ser João Cabral neste aspecto. Como explicar isso num país em que Sarney é membro da Academia de Letras? Deixa pra lá...

Voltando ao assunto, é um tanto óbvio que não sejam apenas as palavras as únicas potencializadas pelos sons minimamente coordenados. As imagens também o são, e se torna cada vez mais difícil observarmos algo sem umas notas na cachola. O mecanismo da trilha sonora invadiu o cotidiano, e os MP3 da vida possibilitam que uma ida ao centro da cidade se torne um evento de grandes proporções. Uma "Fanfarra ao homem comum" do Copland faz qualquer um descer a rua 13 de maio no mínimo arrepiado por conta do filminho individual que ajuda produzir.

Bem, essa coisa toda acima só apareceu porque o que eu queria mesmo dizer é algo bem curto e em certo sentido bastante pontual: o uso da música numa propaganda. Desde o século passado quando me deliciava vendo o comercial do cigarro Hollywood ao som de Run Like Hell que isso me chama bastante a atenção. Que a criação de temas que, em certo sentido, contextualizam a marca dando o tom do que ela quer ser fazendo uso de imagens atreladas à musica me deliciam. Sim, me deliciam* - porque o que se vê ali é algo do campo da distração, do vídeo clipe, e querendo ou não, faz com que passemos o tempo de espera de um modo um tanto mais divertido.

Há um comercial no ar no qual conseguiram fazer o tal casamento anúncio - imagem - música de uma maneira magistral. Pra quem ainda não viu, a propaganda do Ford Focus é fabulosa: divertida no ponto certo, leve e não insistente. A música usada? Happy Together, dos Turtles: uma canção que rendeu mais dinheiro por sua aplicação comercial do que por venda de disco. Há no site da banda, que hoje se resume a dois senhores um tanto quanto ridículos porque se recusam a envelhecer, até uma página onde se vê uma listagem dos anúncios feitos com a música.

Pra não dizerem que dei crédito apenas ao resultado, e não ao seu real causador, aí vai o clipe de 1967.

É isso.

*Aos pentelhos arrubrados que vão me encher o saco por eu estar falando de propagandas comerciais: guardando a devida proporção, não é porque sou ateu que não vou gostar de arte sacra. Sacaram?


7.11.08

Pulando poças

Há momentos da vida que são decisivos. Há instantes nos quais nossas escolhas acabam por determinar um número gigantesco de acontecimentos, fatos, memórias, e mesmo de outras opções que você fará durante toda a vida, numa espécie de caminho como aquele feito por pedras de dominó que derrubam umas as outras, formando uma figura qualquer no final.

Ontem houve isso.

Passei a tarde fazendo provas para um emprego ruim. Mostrando que eu sei a diferença entre "há" e "a", que posso calcular porcentagens, que consigo entender sequências lógicas simples. É difícil constranger-se consigo mesmo, decepcionar-se com as expectativas que criou sobre si. Isso talvez seja o que nomeiam por frustração.

Saí dali um quanto tanto derrotado. Fui buscar meu filho na escola. O tempo estava péssimo.

Demos dois passos e a chuva desabou: pesada, quente, absolutamente horizontal. Foi aí que veio a escolha: não, não - não vamos nos esconder, esperar, ou o que seja - vamos embora. Mas pai? Ih, você de papel, é? Não: huhu!!!

E viemos na chuva, morrendo de rir, chutando as águas das guias, pulando em poças, levando banho dos carros pra ver quem se ensopava mais. Fujimos das árvores porque embaixo de árvore não se molha, tiramos as camisetas e as enrolamos no ar, fizemos penteados engraçados nos cabelos que pingavam. Chegamos em casa às gargalhadas, tiramos a roupa na garagem e entramos de cueca e todo mundo riu.

Além de saber a diferença entre "há" e "a", de calcular porcentagens e de entender sequências lógicas simples, é possível que eu saiba divertir e criar boas memórias, como a peça de dominó feita de chuva, de poças saltadas.

Hoje, sinceramente, isso já me basta.

Hoppipolla, o nome da música, quer dizer poças de pular

5.11.08

João Pereira Coutinho

Para que não conhece João Pereira Coutinho, trata-se de um português que escreve coisas das mais sensatas e de uma maneira impecável. Provável que uma de suas principais qualidades seja a de reduzir complexidades conceituais em temas diários, palpáveis, demasiadamente humanos. O texto é de uma claridade infalível e pode-se sentir, ao ascultá-lo com cuidado, um tanto daquela tristeza, daquela angústia, daquele sofrimento curto tão característico da lusitânia: o fado que se observa em cada olhar português.

Mando dois de uma só tacada. Não deixem de ler. Para quem se interessar, inseri o link para o site aí ao lado.


A Sagrada Família

Já tudo foi dito e escrito sobre o último livro de Reinaldo Azevedo, "O País dos Petralhas" (Record, 337 págs.). Uma feroz e divertida denúncia da política brasileira e do "establishment" petista atualmente em cena? Sem dúvida.

Mas existe uma passagem do livro que não é para rir. É para ler, meditar, talvez chorar. Acontece a propósito de nada: Reinaldo Azevedo prepara-se para sair de férias e, em momento de trégua, partilha com os leitores do blog a memória feliz de um livro aparentemente menor, "A Morte de um Apicultor", do sueco Lars Gustafsson.

Quem leu Gustafsson? Curiosamente, eu li. E perguntei-me, durante anos, se seria a única criatura do mundo a lembrar com ternura desse livro imensamente melancólico e belo. É a história de um velho, condenado por doença mortal, que vai anotando, em vários cadernos, os pensamentos, as rotinas e até as dores físicas de uma vida a caminho do fim. "Recomeçamos. Não nos rendemos", escreve o velho, vezes sem conta. E, com essa frase, termina a sua odisséia, momentos antes de a ambulância vir buscá-lo.

Reinaldo Azevedo evoca "A Morte de um Apicultor" para dizer o que de mais profundo alguém pode dizer sobre a função de uma democracia civilizada: ela existe, precisamente, para que possamos tratar das nossas vidas banais. Para que possamos ser como o velho apicultor do livro: simplesmente interessados nas nossas rotinas, nas nossas famílias, nas nossas memórias privadas. E conclui o colunista: o que é imperdoável na política brasileira não é apenas a corrupção, a boçalidade e a ignorância dos próceres. O que é imperdoável é a existência de uma elite política moralmente miserável que impede esse espaço pessoal e intransmissível onde podemos ser "senhores das nossas lendas" e alheios ao ruído do mundo. No Brasil, tudo é ruído. E no resto do mundo?

No resto do mundo, talvez não. A tese pertence a Luc Ferry e ninguém diria que Luc Ferry e Reinaldo Azevedo dariam um bom par. Mas as aparências enganam. Em "Famílias, Amo Vocês", um breve ensaio publicado no Brasil pela Objetiva, Luc Ferry retoma a observação pessoal de Reinaldo e elabora uma questão filosófica fundamental: nos tempos que passam, seremos capazes de nos sacrificar por algo ou por alguém? Ao olharmos para o brilhante século 20 e para o longo cortejo de matanças em que a centúria foi pródiga, encontramos milhões de seres humanos que marcharam e mataram em nome de puras abstrações. A Nação. O Partido. O Progresso. A Raça. O Império. O baile terminou em chamas e, hoje, no meio das cinzas, alguns zelotes ideologicamente nostálgicos lamentam o "recolhimento individualista" das nossas sociedades "burguesas" e clamam pelo inevitável, e tantas vezes sanguinário, regresso da "imaginação ao poder".

A resposta de Luc Ferry é a oposta: devemos festejar o recuo das grandes causas; e devemos, sobretudo, celebrar as pequenas. Devemos celebrar os nossos familiares, os nossos amigos. A nossa tribo. O nosso "pequeno pelotão", como dizia Burke no século 18. São eles as causas por que vale a pena lutar. São eles que constituem o princípio e o fim das nossas "transcendências".

Nas palavras do filósofo francês, houve uma "divinização do humano" ou, se preferirem, uma "transcendência na imanência" que leva o Homem ocidental a apenas "sair de si mesmo" para participar no destino daqueles que lhe estão mais próximos. As nossas utopias são pessoais, não coletivas; e esse recuo é prova da nossa maturidade política e de uma certa decência moral.

Ao longo da história, as famílias sempre estiveram ao serviço da política e foram, por vezes, estilhaçadas por ela? É hora de virar o disco: uma sociedade política civilizada deve servir as famílias; deve permitir que estas possam cultivar as suas virtudes sem a intervenção e os constantes abusos do Estado.

E o Brasil será essa sociedade política civilizada no dia em que o ruído do mundo der lugar ao silêncio dos lares. No dia em que for possível, como escreve Reinaldo Azevedo, ter uma alma, cultivar intimidades, guardar as pequenas coisas ridículas, sem que a República conspire com suas sujidades e violências. Será esse o dia em que o famoso dilema de Camus deixará de fazer sentido: a justiça ou a minha mãe?
Obviamente, a mãe.

Porque, como diria um velho apicultor sueco, nós nunca nos rendemos perante o que nos é sagrado. Recomeçamos.

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É a política, estúpido!

Vejam só como eu sou ingênuo: uns tempos atrás, em Nova York, acordei pelas dez da manhã, saí para a rua e encontrei dezenas e dezenas de jornalistas à minha espera. Eu, pelo menos, acreditava que sim. E acreditava mais: num acesso de megalomania, julguei que a Academia Sueca resolvera reconhecer, pela primeira vez na sua história, a crônica como gênero literário digno de um Nobel.

Puro engano. Olhando em volta, descobri que o meu hotel ficava ao lado da sede da Lehman Brothers. Ali, a dois passos da minha cama, Wall Street entrava pelo buraco. Limitei-me a sorrir e, levemente ressacado, marchei para a Starbucks mais próxima, em busca da cafeína redentora.

Por que motivo sorria eu?

Não pretendo abismar os leitores desta Folha com meus conhecimentos econômicos, aliás primitivos. Mas posso confessar, de alma aberta, que a presente crise financeira estava escrita nas estrelas!

Eu sei que os leitores estão cansados da crise e não estão dispostos a ler mais uma análise sobre ela. O vocabulário é esotérico ("leverage", "toxic debt", "shorting") e o caos geral dos mercados tem reflexo direto na cabeça histérica dos comentadores.

Mas é importante, no meio do nevoeiro, começar por dizer que a crise financeira atual não é, apenas, uma crise financeira. É também uma crise política, que nasceu diretamente de uma concepção igualitária de sociedade que só podia terminar pessimamente.

Essa concepção nasceu no seio de várias administrações americanas que, nos últimos anos, movidas por noções aberrantes de "igualdade" social, entendiam ser possível operar o milagre da multiplicação do consumo.

Comprar casa, por exemplo, não era o resultado de anos de trabalho, poupança e investimento esse trio que, infelizmente, não está ao alcance de todos. Comprar casa era um direito e, mais, um dever. E como cumprir esse dever, que permitia, ainda por cima, fazer de cada investimento um novo negócio para um novo investimento?

Ninguém tem recursos ilimitados; mas houve, pelos vistos, empréstimos ilimitados: bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a bancos que emprestavam a privados. Quando os empréstimos começaram a não ser pagos (inevitável); e quando o mercado imobiliário, depois da euforia, começou a derreter (idem), o mundo acordou para a evidência de que a única coisa que começava a faltar no sistema era, tão simplesmente, dinheiro.

Não foi a ganância de Wall Street que pariu a crise presente. Foi a ganância de toda a gente: governos, bancos, pessoas.

A euforia terminou em depressão e hoje, com a economia mundial à beira do abismo, talvez só um plano global de intervenção pública na banca possa evitar o descalabro. Um plano de emergência que, como todas as emergências, deve ser forte e temporário.

Mas seria um erro passar pelo momento atual sem aprender as suas lições. Quais? Dos governos, espera-se que aprendam como é perigoso e abusivo projetar construções ideológicas equitativas no funcionamento impessoal do mercado. Das pessoas, espera-se que relembrem o que têm e o que podem gastar, esse cálculo mínimo que é a base de qualquer economia doméstica. E, da banca, espera-se apenas que o velho equilíbrio entre prudência e risco possa regressar. De preferência, sem as pressões de cima ou as ilusões de baixo.

Uma receita básica? Precisamente. Mas, às vezes, é necessário começar pelo básico.