12.1.09

Feito!


A filosofia é capaz de propiciar, a quem aceita e trabalha o suficiente para isso, o desenvolvimento de uma relação muito, mas muito peculiar entre o iniciado, entre aquele se dispõe a encará-la, e os textos a partir dos quais ela se apresenta. Eu diria sem ressalvas que se trata de uma relação quase psicótica, na qual ocorre uma espécie de fundição entre aquilo o que Kant chama de sujeito transcedental, somadas aí as experiências preenchedoras deste sujeito, e os dados dos texto. E quando digo dados não afirmo apenas o conteúdo semântico mais geral como também as relações gramaticais, as ondulações discursivas, o ritmo, a simpatia - sim! - e tudo o mais o que um escrito teórico pode comportar.

Lembro-me da minha primeira leitura esquizofrênica de um texto. Foi em 1994. Fausto Castilho - e que professor era, e é, Fausto! que cabeça poderosa tem esse homem! - pedia como trabalho semestral uma paráfrase das meditações cartesianas. Quem já teve o prazer de atravessar uma Meditatio que seja sabe que o texto já é pra lá de embrumador. É como se Descartes pegasse na mão do leitor e, através de rigorosas deduções, o fizesse caminhar por um espaço qualquer. É esta a sensação ao final da leitura: de deslocamento, de passagem. É a lógica atuando como poesia. Sentei-me no segundo andar da biblioteca às 9h. Saí para almoçar às 13h e retornei às 15h. Às 19h30 mais ou menos começou a me bater um pavor. Eu havia me misturado ao texto. Eu era Descartes, eu era a cêra, eu era o gênio maligno embusteiro, eu era eu mesmo, a folha branca, o texto em latim da página ao lado, Deus, o ergo sum.

Levantei a cabeça completamente apavorado, com um medo terrível daquilo. Aconteceria de novo? O que foi: Hume, Hobbes, Kant, Platão, Montesquieu, Schopenhauer, Nietzsche, Bachelard, Hegel, blá, blá, blá, blá. Até que resolvi estudar filosofia da psicanálise; até que resolvi tentar compreender o que aquele tal de Freud dizia e o que estava em jogo ali para a história das idéias. Hummm: que embaraço!

Lidar com os escritos freudianos através de uma leitura filosófica não é fácil. Alguns que aqui aparecem o sabem. É uma porrada na cara atrás de outra. Espetos no cérebro. Agulha sob as unhas. Pau-de-arara. Uma terapia das mais cruéis pelas quais se pode passar. Talvez a pior delas. Uma simbiose extremamente doentia. Os psicanalistas mesmo admitem esta posição, e se sentem acuados frente a ela.



Escrevo este texto porque finalmente eu consegui. Porque finalmente eu ultrapassei algo que por pouco não me venceu. Sim, sim: eu senti cada linha de Inibição, sintoma e angústia. Demorei 1 ano para completar as suas 70 páginas, e para isso tive que enfrentar as minhas resistências mais duras. Avançava dez páginas e voltava. Tinha fortes crises de tremor em muitas delas. Olhava pro texto e tinha vontade de chorar. Eu não olhava pro texto: eu olhava pra mim, que era picotado em tiras pelas linhas impressas. Pisoteado por parágrafos. Para todas as minhas inibições, para boa parte do meus sintomas. As angústias...
bem...

Foi isso meu caros, mas agora passou. Estou finalmente a salvo. Posso seguir pela vida com muito mais donaire e segurança. Andar lépido e intrépido por aí, com estes novos chumbos instalados nos calcanhares.

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