10.5.07

Haroldo de Campos, poesia, povo...

Quem me conhece sabe de minha adoração pela poesia concreta e, mais especificamente, por Haroldo de Campos e suas Galáxias. Quem me conhece deve saber também de minha estranheza em relação a alguns poetas, Drummond por exemplo, que diz coisas simplórias de maneira simples, o que me faz perguntar qual a graça de seus textos, que são bem diferentes de um Bandeira, que está em um outro lugar, que expõe peculiaridades e finezas desconcertantes de modo simples, o que é bem diferente.

Bem, o fato é encontrei este texto do Régis Bonvicino que coloca algumas coisas em seus lugares, propondo uma análise muito perspicaz daquilo que vagava em minha cachola mas jamais havia conseguido elaborar direito. Aí vai:

Haroldo de Campos, morto no último dia 16 de agosto, aos 73 anos, foi um poeta que operou no paradigma internacional-erudito em contraposição ao nacional-popular, um dos vetores do século XX - um século onde os artistas perseguiram, como uma obrigação imposta pelos ideólogos marxistas, a idéia de "povo". Esta operação custou-lhe o preço, em vida, de ataques e muita incompreensão simultâneos a homenagens e reconhecimento, quase sempre provenientes do "exterior", onde, num paradoxo, não foi suficientemente traduzido. Desapareceu sem ter uma edição de seus poemas e textos críticos em inglês - a língua universal. Na verdade, o percurso de Haroldo revela-se, bastante, no confronto tenso entre estes dois paradigmas, com a prevalência irradiante do primeiro, o que o poderá projetar como um artista do século XXI, com a galopante relativização das fronteiras nacionais e com o fim à vista de muitas oposições como estética versus tecnologia etc. Apesar de que, pontue-se, seu internacionalismo se cruza, algumas vezes, com vieses nacionalistas, como, por exemplo, quando reivindica Gregório de Mattos como "poesia brasileira", quando não mais se aceita a idéia de "brasilidade" na colônia ou em qualquer outra época, conceito equivocado, já que não há, sobretudo, naquele período, nacionalidade brasileira distinta da portuguesa. Não há, na verdade, Brasil mas "província ultramarina". Gregório de Mattos, antes de ser um poeta "brasileiro", é, como me lembra Alcir Pécora, numa carta, "um caso bem sucedido de aplicação de modelos satíricos ibéricos no caso colonial. Não há nada no mesmo patamar em Portugal".

O internacional-erudito foi também o móvel inicial e fundante do modernismo brasileiro de 1922. Uma leitura, mesmo que rápida, do Prefácio Interessantíssimo, que abre a Pauliciéia Desvairada, primeiro livro modernista de Mário de Andrade, datado de 1921, patenteia-nos a vocação internacional do autor: "Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?" ou "Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo". Oswald de Andrade escrevia, em 1928, em seu Manifesto Antropofágico, a confirmar a inflexão internacionalista do modernismo, que: "Só me interessa o que não é meu". Esta frase, de Oswald, sintetiza, igualmente, todo o percurso de Haroldo de Campos, poeta, tradutor e crítico. Sua primeira poesia, mesmo sendo um tanto antimodernista, apresentava, de plano, já um caráter de busca do internacional-erudito. Leia-se o verso do poema "Super Flumina Babylonis", do livro Auto do Possesso, datado de 1950: "Animei as estátuas. Babilônia,/ para dançar diante de ti...". Pouco anos depois, Haroldo estaria participando ativamente, como um de seus idealizadores, do movimento concretista, em meados dos anos 1950, que, além de libertá-lo de um tom, como já se disse, um tanto passadista de seu primeiro momento, projetá-lo-ia para mais adiante da fronteira nacional, em todos os aspectos. Vieram as traduções de James Joyce, Ezra Pound, o interesse por e.e. cummings, por Stéphane Mallarmé, a retomada dos princípios das vanguardas européias do início do século XX, sobretudo, dos das mais construtivistas e que se propunham como linha evolutiva da cultura e da arte e de aspectos do modernismo brasileiro, como a teoria da antropofagia, que se pode resumir com a frase de Oswald, retirada do manifesto já mencionado: "Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo".

O concretismo foi um movimento que repropôs o paradigma internacional-erudito, valendo-se, também, dos instrumentos da cultura popular mas não nacional: a ele interessava o poema cartaz e o design dos letreiros, o design da luz em movimento, o confronto da palavra com página branca. Haroldo escreveu pouquíssimos poemas concretos estrito senso, apesar da fama em direção oposta. Leia-se um deles (em diálogo aberto com Mondrian) que, décadas depois, inspiraria a canção Lua, 1974, de Caetano Veloso: "branco branco branco branco/ vermelho/ estanco vermelho/ espelho vermelho/ estanco branco". Veloso: "... Lua lua lua lua/ [...]/ Estanca/ [...]/ Branca branca branca branca...".

Há dois momentos altos , em minha opinião, na trajetória do Haroldo de Campos poeta, sempre mais questionado do que o crítico (a redescoberta de Sousândrade), pensador e tradutor (criou uma teoria própria da tradução), respeitado na maior parte das vezes, desde um Arte no Horizonte do Provável (1969), passando por Metalinguagem , reeditado depois domo Metalinguagem e Outras Metas (1992) e ideograma (1977) até uma Poesia Russa Moderna (1968), passando pelas traduções de Stephane Mallarmé (1974) e pelas traduções de Homero, estas últimas a acentuar que, na última quadra da vida, radicalizou no paradigma internacional-erudito, universalizante, distanciando-se um tanto, por exemplo, do tropicalismo, com o qual não só dialogou como se encantou/deslumbrou num determinado momento de sua carreira. Esses dois momentos altos são Galáxias (1963/1976) e Educação dos Cinco Sentidos (1985), este emblemático dos problemas de sua poesia, em algum sentido. Problemas: quando compara Gal Costa a Safo, por exemplo. Uma qualidade inédita: um despojamento nunca antes visto em seus textos, exceto nos raros poemas concretos ; um despojamento mais livre e intrínseco.

Numa definição precária, poderia chamar Galáxias, uma "proesia" forjada com o auxílio de várias línguas, de um caderno de viagens. Um caderno internacional, escrito por um brasileiro. Nele estampa-se, com nitidez, a vocação internacional-erudita do Haroldo poeta, como no fragmento onde percebe, crítica e duramente, a Espanha franquista dos anos de 1960: "[...] reza calla y trabaja em um muro de granada trabaja y calla y reza y calla y trabaja y reza em granada um muro da casa del chapiz ningún holgazán ganará el cielo olhando para baixo [...]". Holgazán quer dizer mandrião ou vadio. Neste pequeno trecho, registra-se a ditadura do General Franco e seu uso do catolicismo: nenhum vadio ganhará o céu! O traço popular aparece muitas vezes nos fluxos de Galáxias, mas mediado sempre pelo tom erudito - herdado, no âmbito brasileiro, das prosas de invenção de Mário e Oswald de Andrade e, depois, de Guimarães Rosa. É significativo o fragmento que se inicia desta maneira: "como quem escreve um livro como quem faz uma viagem como quem descer descer descer katábasis até tocar o fundo e depois subir...".

Perpetuou-se, infelizmente, no Brasil o conceito de que grandes poetas são nordestinos ou mineiros que migraram para o Rio de Janeiro e não até mesmo os cariocas ou fluminenses. Só um carioca, ligado à Bossa Nova, foi considerado um grande poeta no século XX: Vinícius de Moraes e ainda assim era chamado de "poetinha". Grandes poetas brasileiros são Manuel Bandeira ou João Cabral, pernambucanos no Rio, ou Drummond, mineiro no Rio. E agora Ferreira Gullar, maranhense no Rio. São Paulo precisou criar movimentos culturais para ser "aceito" na federação e, assim mesmo, até hoje, convive com a fama de que não produziu "grandes poetas": Mário e Oswald de Andrade, por exemplo, são considerados "grandes figuras". A idéia do "poeta" vinculou-se, no país, à daquele que, erudito, manteve sentimentalmente um elo com a idéia do popular e do nacional, com a idéia do puro, do não industrializado...

Em A Educação dos Cinco Sentidos encontra-se um Haroldo de Campos fascinado pelo popular. Ao mesmo tempo em que se lê poemas dedicados a Octavio Paz, o belíssimo "Transblanco" ("[...] tomei a mescalina de mim mesmo/ e passei esta noite em claro/ traduzindo BLANCO de octavio paz"), depara-se com, a propósito de Diana e do amor: "[...] Mas diz-lhe que me esgana/ passar tanta tortura/ e que desde a Toscana/ até o Caetano/ jamais beleza pura/ tratou com tal secura/ um pobre trovador [...]". Aqui, percebe-se com clareza o confronto tenso entre internacional-erudito e nacional-popular. É o Haroldo pressionado pelo sucesso da palavra falada (pela busca equivocada da brasilidade, um conceito equívoco, como já se disse...) em contraste com a solidão da palavra escrita. Toscana e Caetano, um ótimo letrista, compositor e cantor mas não um poeta como Eugenio Montale, por exemplo, mesmo que assim de Campos o tenha generosamente homenageado.
Sem declarar expressamente creio que Haroldo percebeu que, a partir de meados dos anos 1980, o concretismo fazia já pouco sentido, como movimento de renovação, e que o tropicalismo, outro movimento de cunho mais internacional, importante, que denunciara a "geléia geral brasileira", havia começado a integrar a ela, apesar da qualidade da produção de seus protagonistas, principalmente de Caetano Veloso e Tomzé. Assim, retomando o paradigma inicial, retornou ao internacional-erudito, findando seus dias ao lado de Homero, escrevendo uma poesia novamente de cunho um bocado passadista e já igualmente, a meu ver, distanciado da idéia de vanguarda, que abraçara com paixão no meio-dia e na tarde solar de sua existência.

Régis Bonvicino, 20 de agosto de 2003

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