5.3.07

O INSUPORTÁVEL não é a dor, mas a falta de sentido da dor, mais ainda, a dor da falta de sentido. João Hélio, morto aos seis anos, arrastado em macabra agonia pela Cidade Maravilhosa, nos confronta com a abominação. Tais espasmos de brutalidade repõem, com insistência, a antiga pergunta pelo "porquê" da insânia. Por que a atrocidade?

Revoltados e humilhados, assalta-nos o desejo e a busca pelo sentido. A reação indignada, até desesperada, exige razões e providências -pois, como se sabe, "razões aliviam".

Uma das reações mais compreensíveis é: "O que fazer?" De pronto, exigimos a paga, clamamos por vingança, como por justiça. A competência jurídica é, então, requisitada: penas mais drásticas, rebaixamento do limiar de imputação penal, repressão severa e ostensiva, pena de morte. Com a solidariedade humana na dor, mescla-se a inevitável preocupação com a segurança própria e a da sociedade. Não é admissível que a sociedade permaneça refém da criminalidade.

Não é meu intuito minimizar o pungente sofrimento que assola a família, os amigos de João Hélio, enfim, toda pessoa sensível. No entanto, por penoso que seja dizê-lo, o açodamento das reações emocionais não é um bom companheiro do prudente equilíbrio que deve balizar nosso juízo e discernimento nessas ocasiões. É justo que exijamos punições exemplares. Mas não que nossa indignação se nutra no desejo de vingança.

Exigir a paga do sofrimento na medida do "jus talionis" não me parece justo ou justificado. Suplantar o espírito da vingança, mesmo no direito, é talvez o difícil caminho de auto-superação que uma sociedade pode encetar.

A esse respeito, Nietzsche tem muito a nos dizer. Lê-se num de seus textos: "O último terreno conquistado pelo espírito da justiça é o terreno do sentimento reativo! Quando ocorre, de verdade, que o homem justo seja justo inclusive com quem o prejudicou (e não apenas frio, comedido, estranho, indiferente: ser justo é sempre um comportamento positivo), quando a elevada, clara, profunda e suave objetividade do olho justo, do olho julgador não se turva nem sequer sob o assalto de lesões, escárnio, imputações pessoais, isso constitui uma obra de perfeição e de suprema maestria sobre a terra".

Não é indiferença, mas justiça positiva. Não é tibieza, apatia, tolerância irresponsável, concessão ao fácil perdão de boca para o qual fomos adestrados por milênios de civilização. Não me refiro a essa fachada de tolerância, desfeita pela mais tênue ameaça de lesão ao interesse próprio.

O olho justo, capaz de exercer a sobre-humana tarefa do julgar, não pode ser turvado pela parcialidade, tem de afastar de seu caminho tudo o que confunde e ofusca o juízo e ser capaz de não retribuir a culpa com a culpa, a humilhação com a humilhação.

Justiça significa espiritualização da potência e, portanto, poder julgar sem ter de se defender, sem querer se vingar. "O filósofo tem de dizer, como Cristo: "Não julgueis!". E a última diferença entre as cabeças filosóficas e as demais seria que as primeiras querem ser justas, as demais querem ser juízes" (Nietzsche). Como dizia Zaratustra, justiça é o amor que todos absolve, exceto o julgador.

Com isso, defendo a confiança na missão pedagógica das instituições, que não podem ser vistas como fins em si, mas como meios para a estabilização das sociedades humanas. Defendo instituições fortes e flexíveis, um ordenamento jurídico seguro e eficiente. É necessária a certeza de todos sobre a eficácia do sistema penal --tanto da condenação quanto (e sobremaneira) de um escrupuloso e sensato regime de execução da pena.

Num Estado poderoso, instituições permitem e induzem o aperfeiçoamento dos cidadãos, de modo que, reciprocamente, no âmago da mentalidade deles se entranha o respeito pela "res publica". A reciprocidade legitima a coerção das liberdades individuais, equilibrando-a com o legítimo esforço pela ampliação dos espaços de criatividade e realização pessoais.

Sou radicalmente contrário à pena de morte, pois tenho em elevado conceito a missão de julgar. Antes de qualquer condenação, uma sociedade tem de conquistar o direito de julgar. Nossa sociedade hedonista e carcomida tem esse direito? Bagatelizamos o valor da vida a tal ponto que esta pouco se diferencia de qualquer outro produto. Quantos instantes de nossa existência podemos bendizer e acolher com desejo de perpetuação? Já não vivemos, consumimos nossas vidas, como desgastamos o mundo.

Para muitos de nós, uma vida nova é um fardo, um pesado encargo social --quando não uma mercadoria que encomendamos ao sabor de preferências narcisistas. Soterrou-se em nossa memória coletiva o encanto e o mistério com que acolhíamos cada novo advento. No dia em que pudermos exultar com ele, como com uma luz num mundo de trevas, então talvez possamos repetir um novo começo.

OSWALDO GIACOIA JUNIOR, doutor em filosofia pela Universidade Livre de Berlim (Alemanha), é professor associado do Departamento de Filosofia da Unicamp.

Nenhum comentário: