1.1.12

O dia em que apertei a mão do poeta

Sim, eu também tenho ídolos. Todos nós os temos. A maioria dos meus escrevem ou escreviam.


Na semana passada, eu apertei a mão de um deles e me senti novamente criança: cumprimentando o Papai Noel, achando os ovos de Páscoa, um passo acima da realidade, no mundo da ideias, na lua.

os fios telegráficos simplificam as enchentes e as secas
os telefones anunciam a dissolução de todas as coisas
a paisagem racha-se de encontro com as almas


Ele estava lá, bem na minha frente, lendo seus poemas, dizendo seus textos, fazendo suas divagações, sendo sarcástico consigo mesmo.

O poeta tem 68 anos, sofre de Mal de Parkinson, mas não perde a fala potente, a língua construtora.

o vento sul sopra contra a solidão das janelas e as gaiolas de carne crua
Eu abro os braços para as cinzentas alamedas de São Paulo
e como um escravo vou medindo a vacilante música das flâmulas



Eu, como um aluno aplicado, levei os meus livros e acompanhei as leituras com o poeta. Descobri coisas novas em palavras que havia lido cem vezes. Nas fotos que havia olhado tantas e tantas. Novas revelações que eu via como quem vê pela primeira vez um acrobata.

e um milhão de vaga-lumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade


O encontro estava próximo do fim. O que eu faria depois? Será que o poeta maldito, que sabia muito de filosofia, muito de história, muito de literatura, receberia alguém? Daria autógrafos? Algumas pessoas se dirigiram à mesa. Eu fui atrás.

minha vertigem entornando a alma violentamente por uma rua estranha
os insetos as nuvens costuram o espaço avermelhado de um céu sem dentes


O poeta visionário, louco, era naquele momento um senhor doce, tranqüilo, que trazia carimbos para os autógrafos.


Pegou o meu livro e disse – Ah, você gosta de Paranóia é... – e eu – Poxa, é uma referência pra mim, uma paixão - ou seja, aquela fala inútil de fã.

E ele - Eu tinha 22 anos nesta época. Eu era bonito, né? Agora virei este caco.

O poeta colocou os carimbos, assinou com a mão trêmula.




Eu disse – Olha, eu trouxe uns poemas que escrevi pensando na sua obra, mas não sei se tenho cópias em casa.

Ele pegou os papéis, escreveu um endereço e falou – Mande pra cá, pra minha casa. Devolveu pra alguém uma caneta que havia emprestado, virou-se pra mim e perguntou - Qual o seu nome? Eu respondi.

Ele estendeu a mão e me disse – Muito prazer.






Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?
É noite. E tudo é noite.


E eu fui embora com meus presentes. Com minhas novas lembranças de criança. Divagando.

Eu havia apertado a mão do poeta. A mão que havia produzido sonhos que eu adorava ter.

Estranho, isto me fez produzir lembranças do tipo das que eu não deveria mais guardar na minha idade. Lembranças que de tão doces parecem carinhos de avó.

Onde exercitas os músculos de tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde estrelas se refletem
Como numa lagoa


Eu também tenho ídolos.

P.S - Este texto é de 16/10/2006. O poeta se foi em 03/07 de 2010.

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