O manuscrito K, anexado à carta datada em 1 de janeiro de 1896 , e cujo subtítulo é Um conto de Natal, compõe-se basicamente no mesmo modelo esquemático e pelos mesmos dados que irão ser apresentados em Novas observações.... O texto, contudo, não é idêntico, e traz, assim como o manuscrito H, certas tentativas de entendimento das afecções que acabaram sendo omitidas no artigo publicado, sendo que uma delas é realmente expressiva para a nossa questão, e isso por conta do papel que ela desempenhará na evolução das idéias de Freud sobre o tema.
Estamos falando obviamente de uma hipótese levantada sobre a paranóia, e que diz respeito tanto àquilo que é reprimido por projeção quanto às conseqüências desta repressão para a formação dos sintomas.
Ainda no início do texto Freud aventa a possibilidade – e aqui está o passo adiante deste escrito - de que em um caso de paranóia apenas o afeto seja reprimido por projeção, sendo mantidas na consciência as representações a ele ligadas, ou seja, o conteúdo da vivência desprazerosa. Ocorrência puramente conjetural, pois não há um caso que comprove tal possibilidade. Acontece que, para que possamos entender como as coisas se dão neste momento e quais as questões que aqui surgem, devemos nos ater em outro ponto – e este grandemente delicado e significante, a saber: como se configura no exterior, e aparece ao eu, o conteúdo representacional projetado. Voltemos, pois, aos textos analisados sobre a projeção para um melhor vislumbre do problema.
No texto publicado, quando da análise do trâmite do conteúdo das representações - e aí tanto na histeria quanto na neurose obsessiva - a afirmação é clara: em ambos os casos o conteúdo, ao ser reprimido, se encontra ausente da consciência. Já no que diz respeito à paranóia, a lembrança da cena originária se encontrará presente, mas projetada. A questão que surge aqui é: ora, mas como isto se daria concretamente? O conteúdo seria plenamente mantido, com a preservação das imagens, só que agora instauradas através das interpretadas falas alheias?
Freud, em nenhum momento e em nenhum dos textos, é claro sobre a questão. A estrutura da neurose é consecutivamente, ou seja, em ambos os textos anteriormente analisados, reiterada, e nela a projeção aparece como o mecanismo que gera o sintoma primário. Este, por sua vez, parece ser sempre algo do campo afetivo, ou seja: não há referência às lembranças quando Freud trata do primärsympton, somente auto-acusações transfiguradas. Os delírios, então, ocorreriam não mais do que como formas de adequação da realidade externa à realidade psíquica: uma forma de dar sentido à sensação de ser perseguido. As representações começariam pois a surgir apenas quando a doença se instalasse concretamente, sendo que as alucinações apareceriam como fatos reajustados pela formação de compromisso.
Para articular as questões postas aqui em jogo, a fim de que na projeção afeto e conteúdo representacional fossem tratados com igual aprofundamento e que ainda se esclarecessem as suas relações com a formação dos sintomas, algo teria que mudar de estatuto como, por exemplo, a atuação da formação de compromisso já no aparecimento do sintoma primário. E não é isso o que Freud, ao que nos parece, faz no manuscrito K. Vejamos nesta longa citação:
“O sintoma primário formado é a desconfiança... o conteúdo da experiência retorna sob a forma de um pensamento que ocorre ao paciente como alucinação visual ou sensorial. O afeto reprimido parece retornar invariavelmente nas alucinações auditivas.
As partes das lembranças que retornam sofrem uma distorção ao serem substituídas por imagens análogas, extraídas do momento presente - isto é, são simplesmente distorcidas por uma substituição cronológica, e não pela formação de um substituto. As vozes, igualmente, lembram a autocensura, como sintoma de compromisso, e o fazem, em primeiro lugar, distorcidas em seu enunciado a ponto de se tornarem indefinidas e de se transformarem em ameaças; e, em segundo lugar, relacionadas não com a experiência primária, mas justamente com a desconfiança - isto é, com o sintoma primário.
Como a crença foi separada da autocensura primária, ela assume o comando irrestrito dos sintomas de compromisso. O eu não os considera como estranhos a si mesmo, mas é impelido por eles a fazer tentativas de explicá-los, tentativas que podem ser descritas como delírios assimilatórios.
Nesse ponto, com o retorno do recalcado sob forma distorcida, a defesa fracassa de vez; e os delírios assimilatórios não podem ser interpretados como sintomas de defesa secundária, mas como o início de uma modificação do eu, expressão do fato de ter sido ele subjugado.”
Tal pendência, conforme apontada por nós, terá de esperar alguns anos para que possa ser, ainda que não totalmente, resolvida.
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