17.4.12

Por uma libertação onírica


Há uma potência causadora de dor, em meus sonhos.

Disso eu sabia há tempos. Reconhecia a forma agoniante que ele tinha e tem de me dizer coisas. Algumas delas necessárias; doídas, ricocheteantes; devidamente usurpadoras; tiradoras de unhas; mas necessárias.

No mês passado estava à minha frente o corpo nu de meu avô. Eu o observava através de uma porta. Em uma outra abertura minha mãe em pé, para quem comecei a dizer: Precisamos enterrar o vô - ele está nos pedindo pra que o enterremos. Precisamos enterrar o vô. E a figura e meu avô ali, silenciosa, mas me gritando, me pedindo.

Era e é preciso enterrar meu avô. O seu sofrimento final que acompanhei tão de perto. A sua figura pilar. O seu não estar mais aqui. O sonho ainda ressoa com sua imagem que poderia ser outra, com sua fala que poderia ser ainda mais latente. Mas os meus sonhos não são assim: têm uma sádica vida que parece ser própria. Acordo e os sinto reverberar por dias, meses. E eles às vezes parecem tentar acabar mesmo comigo. Nesse caso narrado só um pouco: a dureza excessiva me avisava de uma necessidade. Preciso enterrar meu avô. Sequer posso guardar seus óculos e relógio em minha gaveta de camisetas como ainda faço. Não. Ele precisar ir. Preciso deixar que isso aconteça.

Mas e quando o sonho só revive passados e diz:

- Você gostava disso, meu amigo? Gostava, não gostava? Então você vai ter isso aqui; só aqui, tá! E quando acordar vai querer voltar. Vai querer ficar por esse lugar. Vai querer dormir e dormir e dormir e dormir... Mas não garanto que essa situação retorne. Que esse momento específico com todos seus volteios confortáveis e reconfortantes ressurja. Quer arriscar?

E então não vejo sentido. Só angústia. Angústia. Angústia. E um pouco mais de angústia. E muito mais, na verdade. E coisas que estavam fechadas de uma forma tão bonitinha por fora se mostram e não as quero de novo; também coisas das quais eu jurava ter me desvencilhado há tempos. Como isso? Por que isso, e aqui?  Uma piscina com uma queda d’água enorme, eu lá em cima, água morna, ladrilhos brancos com riscos vermelhos, música vindo de algum lugar, eu olhando pra baixo. Sonho uterino que logo me jogará no desamparo da nostalgia, na agonia do retorno do impossível, ou do impossível retorno. E para quê? Como dar pontos nessas aberturas? Como colar isso? Realização de desejo só dentro do sonho não é realização de desejo: muitas das vezes é liquidificador de gente.

Teria Fabiano passado a mancheias pela fila da pulsão de morte?

Meus sonhos são na sua maioria pesadelos preconizados. Capricham na construção do que projetam para depois. Tornam a minha vigília larga e dorida. Preferiria ter maus sonhos na hora certa.   

                                                          A música do sonho 

2.4.12

Paisagem pelo sonho

Eu dormia dentro do sonho, e nesse apagamento secundário lidava com uma única sensação: calor, apenas calor.

E dentro do sonho acordei.

E acordei em um quarto todo bege bem claro, um quarto gigantesco, com o pé direito enorme e uma janela que cobria todo o meu lado direito.

Minha tinha Iara então caminhou até mim e disse, vagarosamente, com seu modo de falar tranquilo e aconhegante: Bom dia... Veja só o que tenho pra você...

E puxou uma cortina de uns 5 metros de altura por cerca de quinze de comprimento, a que cobria todo o espaço da janela.

E um vento bom entrou através daquele espaço sem vidros que tinha do outro lado um céu azul, um mar azul e a areia da praia.

Ainda que todas as coisas fossem muito claras, e solares, meus olhos não doíam ao olhar aquilo tudo.

E dentro do sonho pensei: conheço o  que estou sentindo agora... Hummm: sim, foi um poema que trouxe isso... É algo despertado por um poema.

Estou sonhando exatamente a mesma a sensação que tive ao ler Paisagem pelo telefone.

E tão logo me dei conta disso, acordei.

PAISAGEM PELO TELEFONE


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.