Há um ano meio mais ou menos, em um dia no qual fui buscar o João no futsal, um menino com pouco mais de dez anos me abordou na porta do colégio:
- Hei, é você o pai do João não é?
- Sou sim, por quê?
- Ah, ele já vem vindo. É que eu vi o caminho que vocês fazem pra voltar e vocês passam em frente à minha casa.
- Hã.
- Eu vou com vocês tá? Assim a gente vai conversando.
E como ele conversava. E como ele falava. E como era engraçado o Jonatan. Perspicaz até o fim, já foi logo no primeiro dia tratando de coisas esdrúxulas para um menino de dez anos:
- Por que é que só você vem buscar o João no futebol?
- Como assim?
- Cadê a mãe dele? Vocês são separados?
- É isso, somos.
- Ah, e você tem a guarda dele?
- Não. Ele ficou comigo depois da separação, e só.
- Ah, porque esse negócio de guarda é muito complicado. Meus pais são separados também e eles estão quebrando o maior pau por causa da minha guarda.
- Você mora com quem?
- Moro com a minha mãe.
- Tá.
- Mas meu pai quer que eu more com ele. Semana que vem tem audiência e eu vou poder falar. Acho que vou dizer que quero ficar um pouco com meu pai. Vou dizer isso pro juiz.
Naquele semestre o Jonatan voltou com a gente quase todas as quartas e sextas, dias do futsal. Sempre mantinha a média: quanta abobrinha, quanta piada feita sem querer falava o Jonatan. No outro ano, o ano passado, ele sumiu. Mudou o horário do futsal porque seu pai havia conseguido a guarda. Foi morar com o pai, como queria. Como se manteve na escola, entretanto, encontrava com ele sempre. Falava oi, e ele vinha com aqueles cumprimentos doidos feitos com as mãos, comuns às crianças.
Na terça-feira cheguei do trabalho e o João estava meio estranho.
- Você ficou sabendo pai?
- Do quê?
- Do Jonatan. Lembra do Jonatan?
- Claro que eu lembro. O do futsal, né?
- Ele morreu.
- Hã?
- Ele tava com o pai dele, de moto, e eles foram ultrapassar um caminhão. Alguma coisa deu errado e eles foram parar embaixo do caminhão. O caminhão passou em cima deles. Hoje a sala dele nem teve aula. Foram pro enterro.
E então eu sentei; fiz cara de quem está pensando em algo mas não consegue articular nada. Olhei pro teto e soltei o clássico "que merda". Há coisas difíceis de se acreditar, e quando elas acontecem não adianta uma tentativa de racionalização: tudo, mas tudo mesmo, perde o sentido. O mundo passa a uma atonia sem fim. E esperamos o tempo passar, com aquela sensação esquisita, ruim demais, e só - só isso é possível. Que merda...
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Tenho três manias, apenas três. Uma delas, que carrego desde pequeno, é a de ficar lendo dicionário. Leio dicionários como se fossem bons romances. A segunda é a de saber quanto medem as pessoas. Nem quero entender o motivo disso, mas me pego às vezes procurando saber quanto media, sei lá, o Ricardo Montalbán. A terceira é a de ler o obituário do jornal. Não só o leio. Faço sempre uma redistribuição de vida. Não acho justo que alguns morram com 95 e outros com 33. Então repasso os anos. Em Campinas as pessoas morrem, normalmente - segundo o que vejo - bem velhas. Mas há sempre alguém que se vai com trinta e poucos e deixa filhos. Então passo cinco anos desse aqui pra cá. Tiro dois desse aqui e passo pra lá também, e tento pensar que assim poderia resolver o problema. No dia 10/02 daria pra conseguir, fácil, mais sessenta anos pro Jonatan, e todo mundo daquela data morreria certo, em uma época na qual se pode morrer. É difícil conseguir admitir que crianças morram. Eu não consigo, mas as coisas assim acontecem. Que merda...
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Sou ateu, mas se acreditasse em algo, iria com Veríssimo: Existe um ser superior que dirije os nossos destinos, só não se sabe como ele conseguiu passar no teste psicotécnico.
Um comentário:
Que merda! Dia 12/02 um garoto de 18 anos, aluno meu, faleceu num acidente de motocicleta... Renan era o nome dele... acho que os obtuários de Campinas não noticiaram, mas peço pra vc recalcular também a idade dele...que merda!
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