A distinção entre as chamadas ciências naturais e as ciências do homem ocorre de forma tão arraigada que parece encontrar base em um princípio dado a priori, próximo do campo da metafísica.
Tal recorte, de cunho epistemológico sim, mas também, ou mais ainda, social, reflete-se dentro das universidades, das publicações de caráter científico, e do mesmo modo e por que não pensar nisso, na valoração e na conseqüente aplicação de recursos em determinadas áreas do saber. Ao menos no que diz respeito aos campi nacionais, é muito clara e ocorre a olhos vistos a ascensão econômica dos departamentos de química, biologia ou física, enquanto que as chamadas humanidades sucumbem em uma deterioração contínua.
Os motivos que levariam a essa separação? Colocando as coisas a partir de um senso comum, distante em alguns pontos de estar errado, podemos dizer que ciências ditas humanas não se transformam tão rapidamente em tecnologia, o que significa que suas descobertas ou clarificações não apresentam potencial necessário para se converterem em itens de mercado. Isso acontece, também e porque, as ciências naturais são exatas, cumulativas, e seus resultados oferecem predições importantes e de certa maneira infalíveis para a vida dos indivíduos. A delimitação entre as “ciências” se apresenta, desta forma, como algo estrutural, o que pode significar que ela sempre existiu e sempre existirá. Mas será mesmo que as coisas se passam ou se passarão sempre desta forma?
É preciso, ao menos, que duvidemos disso, e alguns bons argumentos não nos faltam. Aqueles apresentados por Thomas Kuhn em seu artigo As ciências naturais e as ciências humanas são exemplos. Para que possamos compreendê-los com mais precisão é necessário, entretanto, que passemos rapidamente por um artigo publicado pelo filósofo canadense Charles Taylor, texto a partir do qual Kuhn fará o arranjo de seus contrapontos.
Interpretação e as ciências do homem
O artigo que abre o segundo volume dos Escritos Filosóficos de Taylor está longe de se fazer através de malabarismos conceituais. O texto é claro, e a linha demarcatória que ele deseja incluir é a seguinte: há ciências hermenêuticas, nas quais a interpretação dos documentos ou fatos é tão importante quanto o material que anuncia as pesquisas ou descobertas; em contrapartida, há aquelas ciências que lidam tão somente com dados brutos, que são definidos como unidades de informação não derivadas do julgamento, isto é: informações que não têm em si nenhum elemento de leitura ou interpretação.
O que se pratica em uma ciência hermenêutica é a tentativa de fazer com que o significado expresso pelo autor se torne explícito. Isto significa criar um sentido que perpassa várias subjetividades: a do autor, a do intérprete e as daqueles que os lerão e darão seqüência ao trabalho.
A dificuldade aqui é que, para tanto, uma intrincada rede de estruturas interpretativas se arma, e esta leva em conta elementos de um campo prolixo: o dos desejos humanos, dos sentimentos, das emoções. Considerando que estas construções da subjetividade se erguem também a partir das relações dos indivíduos com aqueles que o cercam, teremos por fim que as interpretações se ligam a um tipo de cultura, o qual, por sua vez, é inseparável das distinções e categorias marcadas pela língua falada pelo povo do qual o leitor/pesquisador faz parte. Os entrelaçamentos são, desta maneira, infindáveis. Não é à toa, pois, que os resultados encontrados nas ciências humanas sejam muitas das vezes problemáticos e, até certo ponto, escassos.
No caso da física, por exemplo, é certo argumentar que se um indivíduo não aceita uma teoria, ou ele não foi apresentado a um número suficiente de evidências (ou estas ainda não existem), ou ele não pôde aprender e aplicar alguma linguagem formalizada, necessária à leitura dos dados. Já em uma ciência hermenêutica uma certa medida de compreensão é necessária, e essa compreensão acaba sendo comunicada à coleta do que deveriam ser seus dados brutos. O que se abre a partir destas transcrições de conhecimento é o que Taylor chamará de lacuna intuitiva, isto é: quando alguém não pode compreender os tipos de autodefinição nos quais os argumentos se montam, isso porque a linguagem no qual eles são propostos é subjacente a uma determinada sociedade ou conjunto de instituições.
Está sempre à espreita, conseqüentemente, aos que lidam com as ciências hermenêuticas, a impossibilidade de compreender o campo de significação na qual suas questões se inscrevem.
Além dessa diferença capital entre as ciências naturais e humanas, Taylor levanta ainda três dificuldades que se apresentam ante o estabelecimento das ciências do homem. A primeira delas é de que não há como blindar certos domínios humanos, como os psicológicos, os econômicos ou políticos, de interferências externas. Ou seja: estes domínios não podem ser tratados como sistemas fechados para análise, e não há como reproduzi-los de maneira isolada e repetidas vezes.
Uma segunda dificuldade é de que uma ciência interpretativa não pode alcançar graus de exatidão como aqueles que se tornam possíveis a partir dos dados de uma ciência natural. Isso porque diferentes nuances de interpretação devem levar a diferentes predições em determinadas circunstâncias.
O último e mais complexo entrave nasce do fato de o homem ser uma criatura que se autodetermina ininterruptamente. As mudanças em sua autodeterminação significam mudanças em o quê este homem é. Resultado: as chaves de interpretação dos fenômenos humanos são alteradas com elevada constância.
Ao contrário disso, o sucesso da predição em ciências naturais está ligado ao fato de que todos os estados do sistema, passado e futuro, podem ser descritos em uma mesma classe de conceitos, ou seja: a partir das mesmas variáveis. Por isso uma teoria é, nesse lado da divisão da ciência, capaz de predizer um evento tão facilmente como explicou eventos passados, já que se tratariam sempre de um mesmo processo, já elucidado.
A crítica e as aproximações de Kuhn
Em seu livro O caminho desde A estrutura, Thomas Kuhn retoma certos posicionamentos de Taylor a fim de indicar a sua não concordância com alguns dos pontos do artigo de 1985 . O primeiro deles, e que será retomado em diferentes formatações ao longo de As ciências naturais e as ciências humanas , será justamente o que diz respeito ao caráter hermenêutico das ciências humanas. Kuhn diverge, de fato, quanto a não extensão dessa característica às ciências naturais, o que significa dizer que esta não seria uma linha demarcatória entre as duas empreitadas.
A fim de ilustrar a sua afirmação, o pensador edifica um exemplo: o da observação do céu. Quando olhamos para cima, não vemos o mesmo céu que os gregos viam. Isso não acontece, todavia, porque os objetos observados são diferentes, mas sim porque as taxonomias celestiais das quais fazemos uso são bastante diferentes. Os gregos antigos classificavam os objetos celestes em três categorias: as estrelas, os meteoros e os planetas. O Sol, Marte, Júpiter ou a Lua, pertenciam ao grupo dos planetas. Já a Via Láctea ocupava o conjunto dos meteoros, juntamente com o arco-íris e as estrelas cadentes. Isso quer dizer que, quando falamos de objetos que são os mesmos, estamos propondo-os através de esquemas interpretativos distintos. Há, portanto, uma hermenêutica subjacente a esta ordenação, e que atua sobre a nossa forma de perceber os elementos e os fenômenos da natureza.
O que Taylor e seus adeptos poderiam argumentar neste momento é que essas interpretações diferentes do mundo celeste seriam, na verdade, meras crenças a respeito de um mesmo objeto, e que essas não são constitutivas dos mesmos. Ao apontar ou calcular as posições dos astros, por exemplo, tais crenças se esvairiam, não fariam mais sentido frente ao dado bruto.
Em contrapartida, essa distinção entre objeto e interpretação não existiria, como já foi dito aqui, nas ciências humanas. Uma descrição qualquer sobre um fato antropológico conteria já uma hermenêutica. O evento seria colado à sua interpretação, e os dois atuariam conjuntamente em uma espécie de fusão. O resultado disso é que os conceitos sociais dariam forma ao mundo que esclarecem. Acabariam por se tornar, de certa forma, como que uma representação direta desse mundo; se transfigurariam na coisa explicada.
Na análise do pensador canadense os conceitos das ciências naturais não são capazes, como os das ciências humanas, de “moldar o mundo a que são aplicados”. E mais: não dependem da cultura na qual são gestados. Kuhn não irá concordar nem com uma afirmação, nem com a outra.
O argumento para o contraste, baseado no trabalho de Wiggins , é o seguinte: para que um certo dado seja recolhido ou, seguindo o exemplo, um objeto celeste seja analisado, é necessário que a ele voltemos nosso olhar por várias vezes, sistematicamente. Os olhares que se seguem ao primeiro já carregam em si uma tipologia, uma classificação, algumas determinações. Não há como estudar algo sem que uma conceituação deste já esteja minimamente definida, pois o segundo encontro com o objeto a analisar traz em si os elementos captados na primeira empreitada. Assim acontece nas ciências humanas, e assim acontece também nas ciências naturais. E por mais que haja nas segundas uma tentativa de descrição neutra, uma busca de uma linguagem devidamente calibrada, é impossível que seus dados se projetem isentos da cultura na qual são ou gestados, ou analisados.
Seriam as ciências sociais e naturais diferentes, ou estariam apenas em diferentes estados?
Tendo assegurado a não existência de uma linha demarcatória, Kuhn pode então se perguntar se as diferenças que podem ser vistas entre as ciências naturais e sociais são de princípio, ou se ligam ao grau de desenvolvimento de ambas.
A resposta a essa questão começa no argumento anterior: o de que os conceitos nas ciências naturais também são produtos hermenêuticos e, portanto, históricos. Sendo desta forma, o que acontece é que tais conceitos são transmitidos aos iniciados, muitas vezes a partir de um processo de genealogia das idéias, que tenta fazer com estas sejam compreendidas de maneira aproximada em diferentes culturas e momentos históricos. Ou seja: os diversos períodos das histórias das ciências seriam marcados por diferentes bases hermenêuticas de compreensão de seus conteúdos. Ora: isto estaria muito próximo a um dos mais importantes e caros conceitos kuhnianos: o de paradigma.
O que acontece nas ciências naturais é que, ofertada uma base hermenêutica, podendo essa ser considerada um paradigma, os pesquisadores não realizam hermenêutica sobre hermenêutica, interpretação sobre interpretação: eles buscam solucionar quebra-cabeças, resolver os problemas da ciência a partir de um mesmo sistema interpretativo, aperfeiçoando a correspondência entre a teoria e a experiência. A produção de novos paradigmas ocorre, mas não de forma intencional e sim como resultado de uma espécie de saturação do paradigma anterior, que em dado momento é incapaz de dar conta de certas peculiaridades surgidas durantes as pesquisas. As ciências naturais produzem hermenêuticas, mas este não é o seu papel.
Já as ciências humanas, ao menos na leitura feita por Taylor - e talvez seja essa mesmo a atual situação de seu modo de operar – fazem da busca de novas e mais densas interpretações o seu objetivo de trabalho.
Devemos questionar, então, se seria este mesmo o papel das ciências humanas, se ela estará sempre atrelada a essa produção infinita de hermenêuticas, ou se com a crescente especialização dentro desse campo, poderão ser desenvolvidos paradigmas mais fixos e, portanto, viabilizadores de uma pesquisa normal, mais atrelada à solução de problemas.
Kuhn levantará aqui duas vias de resposta. A primeira é de que, ao observarmos a história das ciências naturais, veremos que áreas como a química ou a biologia já se depararam com as mesmas dificuldades encontradas hoje pelas ciências humanas. O que houve, e espera-se que o mesmo ocorra com os estudos do homem e da sociedade, é que haja a possibilidade de que certos paradigmas devidamente estanques sejam produzidos, e que esses permitam a entrada de certos campos do saber na produção daquilo a que chamamos de pesquisa normal. É possível, inclusive, que tal estado epistemológico já tenha encontrado lugar na psicologia e na economia, por exemplo.
O que talvez impossibilite que tal via seja tomada por algumas das ciências humanas diz respeito a um problema corretamente apontado por Taylor. O céu, sobre o qual certos paradigmas foram desenvolvidos, e para o qual alguns deles se mostraram devidamente estáveis para o desenvolvimento de uma pesquisa normal, permaneceu praticamente o mesmo desde os gregos. Essa constância, entretanto, não pode ser esperada e é praticamente impossível em determinadas unidades de estudo. Nestas, constantes reinterpretações e, por conseguinte, as reintegrações culturais dos conceitos e leituras podem ser necessárias.
A resposta à pergunta que inaugura esse texto fica, pois, não exatamente em aberto. Há semelhanças onde o que se viam eram diferenças, mas há determinadas peculiaridades que podem não ser superadas. Não sabemos, também, se é exatamente ruim que as coisas se passem desta maneira.